"As palavras de fé são, ao mesmo tempo, pregos que ancoram na Rocha e aguilhões que estimulam a ir além. Hoje, os dois perderam suas pontas. Começamos a nos perguntar como será possível afiá-los novamente", escreve Angelo Reginato, pastor batista italiano, em artigo publicado na revista Riforma, publicação semanal das Igrejas evangélicas batista, metodista e valdense italianas, 22-10-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em nosso habitar a terra vivendo de fé, enfrentamos desafios variados. Nas diferentes épocas da nossa vida, enfrentamos o caso sério da fé medindo-nos em algumas questões específicas. Quando penso na minha experiência atual, posso dizer que me sinto, em certo sentido, companheiro de Jó. Não estou me referindo à experiência de uma dor injusta, que leva a gritar: "Por que fizeste de mim um alvo para ti, para que a mim mesmo me seja pesado?" (7, 20); o que eu fiz de errado para merecer isso? Nem penso na questão do quanto seja autêntica a fé do homem de Uz, algo que, no prólogo do livro, Satanás questiona: “Então respondeu Satanás ao Senhor, e disse: Porventura teme Jó a Deus debalde? Porventura tu não cercaste de sebe, a ele, e a sua casa, e a tudo quanto tem? A obra de suas mãos abençoaste e o seu gado se tem aumentado na terra. Mas estende a tua mão, e toca-lhe em tudo quanto tem, e verás se não blasfema contra ti na tua face” (1, 9-11).
Junto com o caso sério da fé de quem é atingido pelo sofrimento e de quem se descobre verificando se sua confiança em Deus não seja motivada por segundas intenções ou por condições favoráveis, o livro de Jó lhe dá um outro aspecto. Expresso de forma exemplar por um autor contemporâneo: “Quando discutia a verdade que lhe vinha dos pais e dos amigos, Jó descobria, como uma nudez, a inutilidade de uma tradição que permanece um saber: vocês me falam verdades, que são gerais; mas que relação elas têm com a minha situação? Elas decepcionam a minha expectativa porque a ignoram; as verdades são inúteis e vãs para mim, não me fazem viver. Mesmo que sejam reconhecidas como válidas em si mesmas, e talvez irrecusáveis em si mesmas (e nem sempre é o caso), as palavras dos sábios e dos estudiosos decepcionam, visto que não são proporcionais à questão" (M. De Certeau, La debolezza del credere. Fratture e transiti del cristianesimo, Vita e Pensiero, Milão 2020, p. 46).
Capa do Livro La debolezza del credere. Fratture e transiti del cristianesimo, Vita e Pensiero, de De Certeau (Foto: Reprodução)
Jó - como lemos no texto bíblico - não está sozinho em sua dor. Ele tem amigos que, ao saber da desgraça, vão até ele e compartilham em silêncio aquela situação para a qual não há palavras. Eles ficam em silêncio por uma semana inteira; mas então desfraldam toda a sua sabedoria teológica para oferecer uma explicação do que Jó está experimentando. Esses amigos são os portadores de um saber tradicional que Jó sente inútil e vão. Até mesmo Deus, no final do relato, usará palavras muito duras para com eles: "Não falastes de mim segundo a verdade, como fez meu servo Jó" (42: 7).
Frase surpreendente, visto que aqueles amigos nada fizeram além de reiterar a sabedoria tradicional de Israel. Embora os exegetas tenham tentado desencavar alguns pontos discutíveis de sua argumentação, as palavras de Elifaz, Bildade, Zofar e Eliu expressam a ortodoxia bíblica. No entanto, Jó rejeita esse conhecimento. E não o faz por falta de modéstia - sentia-se justo - nem porque engendrou um mecanismo de defesa, fazendo de tudo para se justificar. Nós, como os amigos de Jó, pensamos que se a Palavra não fala, é por culpa da preguiça ou, em qualquer caso, de um comportamento culpado.
Em vez disso, o livro de Jó narra de uma contestação das grandes palavras de fé que o próprio Deus aprova, julgando-as como um falar "segundo a verdade". Se as palavras não conseguem mais interceptar a vivência, não há necessidade de defesa padronizadas, é preciso repensá-las.
Parece-me que padeço, juntamente com outras pessoas, desta mesma situação. Eu também, como os amigos de Jó, prego todos os domingos, relembrando as grandes palavras de fé. Mas se coloco aquelas palavras na balança de Jó, parece-me ouvi-las como verdades gerais que têm dificuldade para falar concretamente sobre a existência daqueles que as ouvem. O desafio enfrentado por Jó é o mesmo de muitos de nós, em um tempo semelhante ao seu, onde a Palavra é "dita", mas não "significa" ou o faz apenas em determinados ambientes e condições.
Jó está em busca de palavras novas, que possam reescrever as palavras da tradição para que possam soar significativas em contextos onde o mundo de ontem foi virado de cabeça para baixo.
Todas as Escrituras nos exortam a repensar e reescrever as grandes palavras de fé. Mas nós - eu - temos a coragem de assumir esta tarefa? Sabemos como assumir o desafio tipicamente espiritual de nos deixarmos guiar pelo Espírito que se lembra tudo o que Jesus disse (João 14, 26) e anunciará o que está por vir (João 16, 13)? Ou seja, sabemos arriscar novas palavras para sermos fiéis à Palavra? De Certeau observou que para a linguagem do Espírito "o tempo é o elemento-chave". Permite a gratidão mútua, “se deixarmos ao passado o direito de resistir-nos (porque é outro e dele dependemos) e se tivermos força para resistir-lhe (porque ainda somos capazes de criar)”.
Como diz o Eclesiastes ou Qoheleth, as palavras de fé são, ao mesmo tempo, pregos que ancoram na Rocha e aguilhões que estimulam a ir além.
Hoje, os dois perderam suas pontas.
Começamos a nos perguntar como será possível afiá-los novamente.