24 Agosto 2021
"A fraternidade - que na sua obviedade funciona quase como um dogma (o Filho de Deus é filho de Maria, nosso irmão) - mostra que a liberdade e a igualdade pressupõem a comunidade e que a comunidade só é legítima se produzir a verdadeira liberdade e abrir iguais oportunidades para todos. Salvar a fraternidade e a comunidade significa que "livres e iguais" não é nem o inferno garantido, nem as chaves do paraíso. Uma mediação fraterna da sociedade passa por uma nova fraternidade cultural, que se constrói sem excomunhões mútuas e sem irenismos formais", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo e membro do Grupo de Reflexão e Proposta da Associação Viandanti, em artigo publicado por Viandanti, 17-08-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Certamente muito se refletiu, no grupo que redigiu o Apelo[1], sobre a "forma" a ser adotada para permitir que as palavras sejam compreendidas, consideradas e avaliadas.
Várias vezes, ao longo das páginas, emerge essa "consciência infeliz" de uma teologia que corre o risco de "falar apenas de si mesma e para si mesma. O apelo é assim motivado por uma "descrição da condição eclesial e cultural" sobre a qual não se pede que se diga "sim" ou "não" - a aderir como poderia acontecer com uma série de teses ou declarações - mas a se confrontar.
Um dado de emergência, colocado com autoridade pela encíclica do Papa Francisco sobre a Fraternidade e amizade social, impõe à teologia uma descrição mais precisa da condição cultural e eclesial e estimula (em primeiro lugar os teólogos) a uma tarefa comum que abrange todo o espectro dos sujeitos possíveis: os internos e os externos à tradição eclesial.
O Apelo é para os Discípulos, enquanto uma Carta aberta é enviada aos Sábios. As formas são diferenciadas e os interlocutores pensados de modo não genérico. No entanto, é evidente que no texto falam "diferentes escolas". E este é mais um fato significativo.
Como é difícil não usar o próprio jargão. Como é difícil aprender o jargão alheio e fazê-lo frutificar.
Esse esforço, esse trabalho, essa dificuldade se percebe em todas as páginas desse apelo. Aqui está um de seus méritos relevantes: mostra o esforço de sair de um jargão. Isso permite um confronto muito mais amplo e diminui o nível de leitura com preconceitos e reduz os casos de "tecnicismo". Para um apelo, que queira falar a todos, esse é um elemento decisivo, que garante a sua possível fecundidade.
A introdução, além de fixar a forma da abordagem dialógica, fixa na encíclica Fratelli tutti aquela "provocação definitiva" que nos impulsiona a buscar o "clima de uma 'fraternidade intelectual' que reabilita o elevado sentido do 'serviço intelectual' de que os profissionais da cultura - teológica e não teológica - estão em dívida com a comunidade” (Introdução).
O "destino" da Igreja para a "comunidade de todos os homens" está inscrito no DNA do Evangelho: a diferença entre o Senhor e a sua Igreja não é um acessório secundário: a incorporação no Corpo de Cristo nunca é um substituto para o Senhor, mas sim seguimento e escuta. O vínculo com o Senhor "nunca se torna propriedade privada da communitas fidelium" (par. 1. Kairos atual da fé). Em nosso tempo, esta evidência é contradita por consagrações profanadas e vocações contrariadas.
A instituição deve abandonar as formas de vida e de governo eclesial que sofrem de uma deriva clerical patológica. Existem “sinais” que anunciam o “novo mundo que devemos aprender a habitar”. Aqui o texto retoma com novo ímpeto a solicitação que vem de João XXIII, de Paulo VI e ultimamente de Francisco: a Igreja pode/deve aprender com os “sinais dos tempos”, que são uma forma de aprendizagem.
Quais são esses sinais? Eles derivam de uma tensão progressiva entre secularização e religião, entre ética humanística e desenvolvimento material.
Aqui se insere uma reflexão de cunho antropológico, em que afetos e vínculos, indivíduo e sociedade, liberdade e autoridade são concebidos com vistas a um novo equilíbrio.
Poderíamos dizer que os "três sinais dos tempos" de João XXIII (emancipação do trabalho, dos povos e das mulheres) são reconsiderados na sua complexidade, pelo nível de "injustiça" com que combatiam e ainda hoje combatem, mas também pelas novas injustiças e distorções que produzem.
Na descrição desse "impacto complexo" dos ideais de emancipação, destaca-se a ingenuidade de uma reconstrução "linear" do mundo. A denúncia dessa "perversão" do mundo dos "livres e iguais", pintada nessas páginas com uma lucidez quase impiedosa, abre espaço para uma retomada do tema da fraternidade e da comunidade.
Se o mundo que se projeta como composto de "livres e iguais" produz tanta injustiça, como remediá-la, resgatando a "terceira palavra" da tríade revolucionária, ou seja, a fraternidade? Mas será que a crescente "desmoralização" e a "indiferença" são realmente apenas o produto de uma "liberdade e igualdade sem responsabilidade"? Não é esse também o resultado de "comunitates" em que a autoridade não foi capaz de manter os laços? A pergunta é legítima. Por isso, a “promessa de liberdade” que o mundo moderno construiu sabiamente exige um suplemento de alma, de práxis e de pensamento sobre o tema da fraternidade e da proximidade, segundo quanto profeticamente diz Fratelli tutti.
O título do último parágrafo antes do Apelo e da Carta Aberta contém uma boa dose de sã provocação. Que a teologia seja um "bem comum" parece um dado desconhecido não só pela "cultura civil", mas pela própria teologia, muitas vezes empenhada apenas em "evangelizar a si mesma" e esclarecer o que o cristianismo "não é".
A qualidade criativa e hospitaleira, crítica e dialógica, mas também necessariamente reformadora no plano institucional do pensamento teológico exige mudanças radicais, mesmo na forma como a Igreja Católica pensa o trabalho do teólogo. A própria maneira como o Código de Direito Canônico pensa a função do teólogo desde 1983 – diversamente de 1917 - contrasta fortemente com esse nobre projeto.
A obediência teológica, pensada como pouco criativa e pouco hospitaleira, não encontra a sua verdade no silêncio, mas na palavra. Que esses termos, tão explícitos, de repensamento da teologia venham de um grupo de trabalho estritamente ligado a duas instituições oficiais é um sinal de grande esperança e uma verdadeira virada. Restituir a teologia ao seu destino popular, à multidão, e não apenas aos discípulos, implica uma profunda mudança de método, de linguagem e de objetivos. Mesmo nas formas do concreto exercício do trabalho teológico.
Uma visão da Igreja, entre Ecclesiam suam (1964) e Fratelli tutti (2020), é profecia de uma "evidência testemunhal da forma eclesial", isto é, do destino universal da salvação.
Este ponto-chave da doutrina cristã e da autoconsciência deve mais uma vez tornar-se "imediato na percepção de qualquer pessoa e firme na convicção dos crentes" (Um apelo aos discípulos). Isso requer uma "dupla despedida": da "direção eclesiástica da sociedade civil" e da "direção eclesiástica dos conhecimentos humanos". É reabertura, na história comum, de uma esperança de redenção para o mundo compartilhado, sobretudo para os pobres e para os descartados.
Isso constitui a superação de um "modelo de cristianismo" que o passado conheceu e que acabou. A assunção dessa novidade torna-se um desafio realmente decisivo, que teologicamente impõe o repensamento de um “duplo dualismo”: “O nosso apelo, enfim, é um apaixonado convite à teologia profissional - e em geral a todo crente - para que ofereça um espaço privilegiado e comum ao empenho de desconstrução do duplo dualismo que atualmente nos mantém reféns: entre a comunidade eclesial e a comunidade secular; entre o mundo criado e o mundo salvo” (Um apelo aos discípulos).
Por assim dizer, “as duas cidades” não são “duas cidades”: são uma dupla hermenêutica da única cidade comum. Não existem "histórias paralelas". É por isso que o dualismo deve ser superado: para sair de uma divisão interna à experiência.
Em suma, a saída do primeiro dualismo acarreta consequências institucionais claramente delineadas: a “inadequação dos aparatos teológicos, canônicos e formativos” exige uma pronta reforma, para que as energias positivas dessa mudança de paradigma possam ser liberadas. Porém, nessa mudança será necessário ter cuidado para não reinserir os “dualismos” por meio do uso de categorias que não estejam suficientemente calibradas.
O segundo dualismo, do qual se despedir, é a mudança de registro que diz respeito à oposição entre natural e sobrenatural, entre criação e redenção. Aqui, também, o trabalho de conversão e de transcrição a que a teologia é chamada deve deixar cair as evidências demasiado fáceis pelas quais em alguns casos é a natureza que garante a graça, enquanto em outros a graça tem lugar apenas "além", se não "contra" a natureza.
A última parte do texto consiste numa “carta aberta” cujos destinatários são os intelectuais externos à tradição eclesial. Com uma súplica, os intelectuais contemporâneos são convidados a "purificar a cultura dominante de toda complacente concessão aos espíritos conformistas do relativismo e da desmoralização" (Carta aberta aos sábios).
Isso abre espaço para uma visão que contrapõe o indivíduo moderno às formas da verdadeira comunidade. Ressurge a possibilidade de uma leitura um pouco contraposta e com alguns traços nostálgicos. Não seria arriscado esperar aqui, para além da justa crítica, também uma valorização da "descoberta do sujeito", da "consciência histórica", do "pluralismo vital", que certamente não está ausente nas mentes dos redatores, mas não aparece no texto.
A cultura é censurada por quase não ter palavras para aqueles milhões de homens e mulheres que continuam a ter fé, com dignidade, à tarefa do respeito, da confiança, da hospitalidade e da generatividade. É mais fácil isolar, dividir, contrapor, suspeitar.
A súplica se dirige, portanto, a um "ato de custódia": que o "Nome de Deus" seja guardado por todos. Que tudo possa ser criticado, submetido a juízo, desmascarado, mas que seja guardado o Nome de Deus, que brilha no rosto do próximo para todos.
Redescobrir essa origem comum e essa destinação comum, que se torna visível no amor ao próximo, implica uma descoberta radical: “Ou alguém nos ama, antes e depois do abismo, ou nada resta. Para ninguém” (Carta aberta ao sábio).
A crítica exercida pelas "razões humanas" e a autocrítica que a teologia deve assumir a respeito das "perversões do sagrado" torna-se tarefa decisiva para "salvar a fraternidade".
Se quiséssemos retomar o sentido desse belo documento, poderíamos dizer o seguinte: 60 anos depois do Concílio Vaticano II, com tudo o que aconteceu dentro e fora da Igreja, a solicitação que vem do Papa Francisco, em particular de seu texto Fratelli tutti, ressoa simultaneamente "de dentro" e "de fora" da tradição eclesial: porque chegou a Roma, mas "do fim do mundo". Porque ele trabalha no Palácio Apostólico, mas mora do lado de fora, em um hotel. Porque depois de uma série interminável de papas europeus, ele é o primeiro a vir da geografia, da história e da cultura extra-europeias. Com todas essas dinâmicas de diversidades, Francisco nos faz sentir a urgência de uma mudança de paradigma, que ponha de lado as "guerras de posição" nas quais, durante quase dois séculos, havíamos nos tornados mestres, como teólogos e como intelectuais.
A fraternidade - que na sua obviedade funciona quase como um dogma (o Filho de Deus é filho de Maria, nosso irmão) - mostra que a liberdade e a igualdade pressupõem a comunidade e que a comunidade só é legítima se produzir a verdadeira liberdade e abrir iguais oportunidades para todos.
Salvar a fraternidade e a comunidade significa que "livres e iguais" não é nem o inferno garantido, nem as chaves do paraíso. Uma mediação fraterna da sociedade passa por uma nova fraternidade cultural, que se constrói sem excomunhões mútuas e sem irenismos formais.
[1] P. Sequeri et alii, Salvar a Fraternidade - Juntos. Um apelo à fé e ao pensamento (Posfácio de Vincenzo Paglia) [site da Pontifícia Academia para a Vida, 2021].
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Por uma fraternidade cultural: um apelo aos discípulos e aos sábios. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU