"Maldito foi Caim que matou seu irmão. Há outras maneiras de eliminar o irmão, não apenas fisicamente, mas através da exclusão, da indiferença, por palavras", escrevem Patrik Bruno Furquim dos Santos, pós-graduando em Biblioteconomia e Gestão de Bibliotecas Públicas pela Faculdade Única-Mg, Bacharel em Teologia pela PUC-SP, Licenciado em Filosofia pela PUC- Campinas e membro do Grupo de Pesquisa LERTE da PUC-SP, e Karolayne Camargo, bacharel em Teologia pela PUC-SP e membra dos grupos de pesquisa José Comblin e PHAES da PUC-SP.
Che cosa è l’uomo? Procura refletir o último documento da comissão bíblica de 2020 e nesta mesma perspectiva o faz o presente texto. Para a antropologia teológica, buscar compreender o que, ou melhor, quem é o homem, consiste em voltar à fonte primeira das Sagradas Escrituras, debruçando-se, mais especificamente, sobre as chamadas narrativas da criação, mas não só. É nelas, que por meio da revelação divina compreendemos a grandeza do homem, bem como a sua capacidade de autodestruição. Isso fica bem claro quando observamos atentamente os relatos de Gn 2,4b-25 e Gn 4,1-16. O ser humano, com base na análise desses textos revela-se como um ser dotado do sopro divino, que o torna um ser vivente. Ademais, é criado essencialmente para a relação, tanto com o divino quanto com o Outro, semelhante a si mesmo, e com a criação toda. Temos aí a relação diagonal da fraternidade. Não obstante, essa característica sublime do ser humano, capítulos depois, transforma-se em fratricídio; isso porque o ser humano (retratado pela figura de Caim) deixa-se domar por sentimentos de morte que o conduzem a agir dessa mesma forma contra Abel. Contudo, destruindo Outro que “lhe ameaça” o homem destrói a si mesmo tornando-se réu do seu egoísmo.
A antropologia que se pode haurir das Sagradas Escrituras, sobretudo, do livro do Gênesis, condensa uma profunda riqueza para pensar as relações humanas em todos os tempos, inclusive dito pós-modernos. De tradição javista, o segundo relato da criação (Gn 2,4b-25) é um bom exemplo disso ao revelar o caminho pedagógico relacional que Deus estabelece com o ser humano, homem e mulher, a fim de manifestar-lhe quem ele é a si mesmo e como isso se dá por meio de relações saudáveis, com Deus e com outro, que é ao mesmo tempo semelhante na dignidade e diferente a si mesmo na singularidade.
O segundo relato da criação, provavelmente também o mais antigo, surgiu no tempo do rei Salomão (971-931 a.C.). Sua preocupação principal consiste em mostrar especificamente quem é o ser humano e o carinho que o Senhor tem por ele. O homem é descrito como moldado por Deus, que o insufla em suas narinas o hálito da vida tornando-o um ser vivente e capaz de relacionar-se com o seu criador (v. 7); ele vive num jardim paradisíaco (lugar da relação), criado pelo Senhor, onde nada lhe falta; tem a mulher como auxiliar e companheira (v. 22), e são descritos ambos como estando nus (v.25), o que, segundo Bertolini, corresponde ao pleno e total respeito um pelo outro, o que não acontecia no tempo em que essa história foi escrita (BERTOLINI, 2018a, p. 16-17).
O ponto alto dessa narrativa, que aqui se deseja destacar, corresponde justamente aos últimos versículos da perícope, sobretudo, os v. 18-23. Nesse trecho, o Senhor alerta para o perigo do homem estar só, sem uma auxiliar que o correspondesse (v. 18). Segundo Giraudo, essas palavras advertem para a insuficiência da relação humana apenas vertical, isto é, só com o divino, pois necessita também das relações horizontais, em outras palavras, que se situam no mesmo plano que o seu (GIRAUDO, 2003, p. 34). O Senhor então plasma diversas outras criaturas que povoam o jardim e os envia para que o homem as nomeie, mas esse não encontra nenhuma semelhante a si.
Para Giraudo, essa “demora de Deus” na criação da mulher corresponde a uma pedagogia de ensino a Adão de como nenhuma das outras criaturas, apesar de importantes, são capazes de ocupar o lugar da experiência humana com um outro semelhante a si, pois elas são distintas, de modo que Adão não encontrou ali ninguém como ele, tornando mais intensa e operosa a busca que culmina com a criação da mulher (cf. GIRAUDO, 2003, p. 34, grifo nosso). Somente a mulher, que não é plasmada do solo, mas criada a partir da sua costela pode ser a auxiliar de que precisa. Por isso, a identificação de Adão com Eva, logo que a vê, revela muito mais que uma atração e felicidades humanas. Nas palavras “carne da minha carne e osso dos meus ossos” (v. 23) Adão se depara finalmente com alguém que comunga da mesma condição humana que a sua, embora seja diferente e singular, ela é mulher (isha). Trata-se aqui do corpo como aquilo que torna o homem e a mulher semelhantes e singulares, capazes de viver a experiência do encontro e da complementaridade que só se dá com o diferente.
A dimensão da fraternidade, em seu sentido mais profundo, que atualmente encontra-se dilacerada pela indiferença, encontra nesses versículos um de seus principais fundamentos: além de termos um Pai em comum que nos criou, é preciso reconhecer o outro como criatura humana de igual dignidade, alguém semelhante que comunga da mesma condição de pessoa, de ser relacional, embora singular e diferente, cujo encontro me desvela verdadeiramente quem eu sou. Ademais, esse êxodo de si mesmo, ao qual o homem é chamado a realizar, que desde já apontava, para um dos mistérios mais profundos da fé cristã, a encarnação do Verbo de Deus, ratificando assim a mediação por excelência em que encontramos com o Senhor e devemos amá-lo concretamente, a saber: na humanidade ferida do outro que é meu irmão e pelo qual sou redimido.
A narrativa sobre os irmãos Caim e Abel consiste em um verdadeiro paradigma para pensar o fratricídio. O ser humano, além de concorrer com Deus e querendo tornar-se igual a Ele (Adão e Eva), agora se volta contra o irmão. É a violência do irmão contra o irmão, gerando, assim, o pecado – termo utilizado pela primeira vez nas Sagradas Escrituras, que fala sobre as relações humanas.
A história faz menção, inicialmente, às oferendas de Caim e Abel, em que Abel é bem recebido por Deus e Caim, não. De acordo com Wénin, a reação que o leitor tem é de que “Deus é injusto! É tanto mais injusto aos olhos de Caim, porque o preferido é o caçula, o ‘Fumaça’, aquele que não conta.” (WÉNIN, 2006, p. 47)
Os sentimentos que invadem Caim são o da inveja e do ciúme. Sentimentos humanos, pois são um movimento espontâneo do coração. Porém, destaca-se que a narrativa não condena tais sentimentos, apenas questiona. O texto mostra que o Senhor dá a solução para Caim de como deve administrar determinados sentimentos, basta: agir bem. E para agir bem:
Caim deve domar, dominar em si este ímpeto, esta fera que está pronta para estabelecer sobre ele o domínio. Ele deve se mostrar mais forte que ela, mais forte que seu ciúme, que sua inveja. Não negando seu sentimento – não pode fazê-lo -, mas permanecendo senhor, não deixando dominar por ele. (WÉNIN, 2006, p. 48)
Caim, contudo, deixa-se contaminar pelo ciúme e pela inveja, planejando matar seu irmão. O lugar da cena é o campo, aparece uma única vez na narrativa e indica um lugar aberto e afastado. É um local perfeito para um crime, Caim já havia concebido o crime, e agora estava a ponto de realizá-lo. A cena do fratricídio é breve e rápida “lançou-se Caim sobre Abel, seu irmão, e o matou”. Como diz Nandi:
Caim transgrediu o limite sagrado da vida mais próxima dele: de seu irmão. O episódio é conciso, parecendo indicar que diante da eloquência da ação, nada mais precisa ser dito. No silêncio vasto de um campo deserto, sob o corpo feroz do irmão Caim, o “sopro” de Abel cessou. (NANDI, 2016, p. 99)
A consequência deste crime é a maldição que Caim recebe após ter cometido o delito. Nas Sagradas Escrituras “ser maldito é ser marcado pela morte, levar a morte em si, ser incapaz de produzir frutos de vida. Assassinando seu irmão, Caim se tornou portador da morte, sinal de morte.” (WÉNIN, 2006, p. 48)
A ação fraticida de Caim revelou seu interior, suas palavras confirmam e ajudam a expressar ainda mais seu caráter falho e violento, expondo-o totalmente. De forma mais nítida, o “animal agachado” (v.7) é um reflexo do próprio Caim que ao levantar ataca o irmão (v. 8), e o Senhor (v.9). Caim, negando a alteridade e, ao mesmo tempo, a reconhecer uma essencial unidade fraterna, sucumbiu em sua humanidade e deixou-se transformar no feroz animal que deveria dominar.
Vale destacar que Caim é o primeiro maldito das Escrituras. O primeiro casal que recusou e desobedeceu a Deus não é maldito. Maldito foi Caim que matou seu irmão. Há outras maneiras de eliminar o irmão, não apenas fisicamente, mas através da exclusão, da indiferença, por palavras. De acordo com Wénin, o “relato bíblico nos adverte: a morte daquele que eu excluo para ocupar todo o espaço é também minha morte, porque, sem o outro, quem sou eu?” (WÉNIN, 2006, p. 47).
Eliminação do irmão através da exclusão (Foto: Iliana Ochoa | Flickr)
Portanto, como diz o romancista João Ubaldo Ribeiro “a nós cumpre cuidar do nosso irmão, não sendo nós Caim, mas gente que ansiamos imitar o Cristo” (RIBEIRO, 2012, p. 40). O encontro com o outro deve se dar no horizonte da fé e da caridade, e principalmente, com os mais excluídos, em que se reconhece “nele um ser humano com a mesma dignidade que eu, uma criatura infinitamente amada pelo Pai, uma imagem de Deus, um irmão redimido por Jesus Cristo.” (GE. 98).
AGASSO JR, Domenico. "Às vezes, a Igreja caiu em uma teologia do 'pode' e do 'não pode'” de 25 de abril de 2017. Disponível aqui. Acesso em 13 de abril de 2020.
BERTOLINI, José. Pentateuco e história deuteronomista. Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis. Aparecida, SP: Santuário, 2018
FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Fratelli tutti sobre a fraternidade e a amizade social. São Paulo: Paulinas, 2020.
___________. Carta Encíclica Gaudete et Exsultate sobre a santidade. São Paulo: Paulinas, 2018.
GIRAUDO, Cesare. Num só corpo: tratado mistagógico sobre a eucaristia. São Paulo: Loyola, 2003.
LUZA, Nilo. Uma introdução ao pentateuco. São Paulo: Paulus, 2019.
NANDI, Leandro Edmar. Caim como paradigma de violência em Gn 4, 1-16. Orientador: Leandro Agostini Fernandes. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia, 2016.
RIBEIRO, João Ubaldo. Vila Real. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
WÉNIN, André. O homem Bíblico. São Paulo: Loyola, 2006.