01 Março 2021
“A atual pandemia feriu de morte os messianismos modernos da ciência e do progresso”, escreve Víctor Codina, jesuíta boliviano, em artigo publicado por Religión Digital, 24-02-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Messianismo é uma chave privilegiada para interpretar ideologias, movimentos políticos, científicos, sociais, econômicos e religiosos que sob um líder carismático convocam o povo a sair da prostração e transformar uma realidade histórica de pobreza e morte. Podem ser de esquerdas ou de direitas, oferecem uma salvação plena, uma mudança total de estruturas, ainda que muitas vezes desemboquem em morte: Auschwitz, Gulag soviético, Hiroshima, atentados ao World Trade Center de Nova York, etc.
Etimologicamente, messianismo provém do hebreu “messias”, que significa “ungido” e em grego traduz-se para “cristo”. O messianismo tem raízes judaico-cristãs, ainda que se desenvolva por canais seculares ou ateus. Talvez esta origem religiosa explique por que muitos messianismos sejam vividos com um fervor semelhante ao fervor religioso. Inclusive em países democráticos, a propaganda eleitoral ressalta um acento messiânico: “Vote em nosso partido e tudo melhorará”.
É impossível neste breve espaço abordar o tema dos messianismos, somente oferecemos alguns elementos para reflexão e diálogo. Pertencem aos messianismos, a revolução francesa e a revolução russa de 1917, o nacional-socialismo hitleriano do Terceiro Reich, o nacional-catolicismo franquista, os movimentos anticoloniais do terceiro mundo, a primavera árabe, a luta de Mandela contra o apartheid sul-africano, o movimento não-violento de Gandhi, a luta contra o racismo de Luther King, os movimentos feministas, ecologistas, indigenistas, sem-terra, LGBT, antitortura e contra o tráfico humano, também o peronismo, o zapatismo, o sandinismo, o socialismo do século XXI de países bolivarianos, o America First de Trump, a réplica brasileira de uma política anti-ecológica e anti-indigenista, etc.
A atual pandemia feriu de morte os messianismos modernos da ciência e do progresso, o estado de bem-estar neoliberal, a seguridade e a afirmação de Fukuyama de que já chegamos ao fim da história. Agora nos querem consolar com que logo voltaremos à normalidade de antes. Porém esta “normalidade” causou desigualdades sociais, venda de armas, guerras, violência e destruição da natureza, fome, machismo e feminicídios, migrações, morte de crianças, abusos sexuais, vítimas e caos. Não podemos voltar a esta “normalidade”.
É preciso discernir o messianismo, para isso ajuda a ir às suas origens bíblicas. Os profetas do Antigo Testamento anunciaram um Messias da família de Davi. Os Evangelhos, principalmente o Evangelho de Mateus que se dirige aos cristãos de origem judaica, anuncia Jesus Cristo, filho de Davi e Abraão, confessa que Jesus de Nazaré é o Messias ou o Cristo, anunciado pelos profetas. Em seu batismo, Jesus é ungido o Messias pelo Espírito e o Pai o proclama seu Filho amado. Jesus vai ao deserto para discernir como deve ser seu messianismo.
Seus contemporâneos, que viveram sob a opressão do Império Romano e da teocracia sacerdotal, esperavam um Messias davídico e político que os libertasse de Roma e da hipocrisia religiosa. Jesus não optou por um messianismo davídico de poder, riqueza e prestígio, mas por um messianismo nazareno de serviço humilde.
O teólogo bíblico brasileiro Jaldemir Vitório, apresenta-nos características fundamentais da utopia do Reino de Deus em Mateus: as bem-aventuranças, a fraternidade local e universal, o amor, o perdão sem vingança, a não violência, a predileção pelos marginalizados (crianças, mulheres, doentes, pecadores), não servir a dois senhores, a Deus e ao dinheiro; fazer a vontade do Pai, confiar em sua misericórdia, os pobres serão nossos juízes no juízo final da história.
Jesus, para evitar confusões, afirma que seu messianismo passa pela cruz, consequência da rejeição da teocracia judaica e do Império Romano ao seu projeto do Reino de Deus: Jesus reina da cruz. É a luta entre o Reino e o anti-Reino, mas a última palavra não é a cruz ou a sepultura, mas a ressurreição, a Páscoa e o dom do Espírito à sua comunidade e ao mundo. Seu Reino é uma alternativa à sociedade mundana, um Reino que começa na história como uma pequena semente, mas cuja plenitude é escatológica, apocalíptica. Esses critérios evangélicos nos ajudam a discernir messianismos na sociedade e na Igreja.
Infelizmente, os messianismos humanos frequentemente se desviaram do ethos do Reino de Deus de Jesus e causaram vítimas. Também na Igreja, o Reino foi muitas vezes reduzido a doutrinas, normas e ritos, a utopia do Reino tornou-se mundana, como se a Igreja já fosse o Reino definitivo, a missão muitas vezes degenerou em proselitismo, a unidade eclesial era quebrou, as elites eclesiais se distanciaram do povo, muitos cristãos corrompem a mensagem do Reino: lucro, violência, destruição da natureza, vítimas.
Mas o Espírito prometido por Jesus à Igreja e à humanidade até o fim da história está presente e em ação, não está em greve, mas sempre desperta, na Igreja e na sociedade, profetas, movimentos e comunidades proféticas que atualizam o messianismo de Jesus. Hoje, é Francisco que encoraja os cristãos a viverem a alegria do Evangelho, defende uma Igreja dos pobres e em saída, pirâmide invertida, poliedro, promove a fraternidade universal, o cuidado pela casa comum e o sonho de um mundo diferente e melhor. A pandemia é um sinal dos tempos que nos instiga a voltar ao ethos do Reino, à fraternidade, ao cuidado da criação e à confiança em um Deus Pai de todos.
O que podemos fazer agora? Aprendendo com o passado, discernindo o momento presente, nos convertendo novamente ao Reino de Deus, caminhando humildemente na história diante de Deus, semeando amor, direito e justiça e esperando, contra toda esperança, o dia em que o Senhor faça novas todas as coisas, enxugue todas as lágrimas e não haverá mais choro, nem morte (Apocalipse 21,4-5).
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A pandemia é um sinal dos tempos que nos impulsiona a voltar ao ‘ethos’ do Reino, à fraternidade. Artigo de Víctor Codina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU