Publicamos a seguir o texto da conferência A crise do cristianismo e o futuro da fé cristã. Desafios e possibilidades para a teologia hoje, com o teólogo italiano Andrea Grillo, que ocorre nesta quinta-feira, 07 de outubro de 2021, com transmissão ao vivo pelo Youtube. A atividade integra o XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição, evento promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Andrea Grillo é filósofo, leigo, especialista em liturgia e pastoral. Doutor em teologia pelo Instituto de Liturgia Pastoral, de Pádua, é professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua. Também é membro da Associação Teológica Italiana e da Associação dos Professores de Liturgia da Itália.
A tradução é de Luisa Rabolini.
A teologia em nosso tempo é demasiada tranquila. Facilmente se encerra "intramuros" e cultiva um jardim muito pequeno, muito abrigado, muito cômodo. Essa peculiaridade burguesa de grande parte da teologia católica não é estranha também a outras tradições. De fato, o pai de Dietrich Bonhoeffer escrevia ao filho em 1934:
"Quando na época você decidiu pela teologia, pensei em silêncio que uma existência quieta e silenciosa de pastor, como a conhecia pelos meus tios suábios e como a descreve Moerike, teria sido quase um pecado para você. Quanto à tranquilidade, errei longe” (citado por F. Ferrario, Bonhoeffer, Milan, Carocci, 2014, 15).
A teologia “militante” continua a ser um caso extremo para a teologia. Mas por quê? Porque a tradição liberal, à qual todos pertencemos, não apenas os protestantes, mas também os católicos, desde que vivemos em "regimes liberais", tende a "privatizar a fé". Assim, o grande desafio para a teologia passa a ser o de não cair vítima nem do relativismo da privatização nem do absolutismo (fundamentalismo e integralismo) de relevância pública imediata. Porque reagir à "privatização" não é fácil: não basta contornar as mediações e pretender um "valor absoluto" para a fé. Este é, hoje, um dos pontos delicados do nosso destino.
Temos, assim, uma tensão quase insuperável entre um mundo que descobre a “liberdade” como grande conquista, efetiva e aparente, e uma tradição teológica que se encontra quase “obrigada” a defender, contra a liberdade, os direitos da autoridade. Faz isso de uma maneira e uma forma muitas vezes totalmente marginal ou descaradamente intrusiva. Justamente "em privado" ou "autoritariamente". E assim pensa que está defendendo a autoridade, mas confirma o modelo de irrelevância da autoridade.
O que eu gostaria de tentar fazer hoje, aqui com vocês, é assumir isso como "tarefa de uma teologia pública": isto é, tematizar a correlação original de liberdade e autoridade, contra todas as evidências tanto de grande parte da cultura civil, que não suporta nem mesmo a palavra "autoridade", quanto de grande parte da cultura teológica, que não pode realmente conceber a liberdade. Uma "definição teológica de liberdade", que realmente assuma o mistério e o enigma do homem como "ser cuja natureza é confiada ao próximo e a Deus", torna-se um dos desafios mais interessantes para uma "teologia pública" hoje, neste mundo "em viagem", marcado por uma "mudança de época" que é difícil de interpretar.
Uma definição "teológica" da liberdade é um elemento originário da cultura ocidental, que tem a ver com a definição de uma "teologia tripartida" dos tria genera tradita deorum, que de Quinto Mucio Cévola, através de M. Terêncio Varrão, chega a Agostino [1], e com ele entra na cultura medieval e moderna. Tal correlação "teológica" de liberdade conhece três níveis:
Tudo isso, que vem do mundo clássico, muda a partir do momento em que o teológico se identifica com uma abordagem "revelada", que se coloca em um "outro lugar" em relação à reflexão poética, política e filosófica, ainda que mantendo relações mais ou menos diretas com cada uma das três. Mas, como é inevitável, essa "nova acepção" olha para essas três dimensões clássicas com certa desconfiança. A escolha que gostaria de fazer, nesta breve reflexão, é permanecer tanto quanto possível dentro da "forma clássica" de consideração da relação entre liberdade e teologia, sem trair, porém, a inspiração judaico-cristã. Coloco a liberdade em uma mediação filosófica da teologia e em uma mediação teológica da filosofia.
Para traçar o meu percurso, gostaria de me deter um pouco naquele "lugar comum", em que Aristóteles define o homem como "zòon politikòn", ("animal/vivente político"). A explicação que Aristóteles fornece dessa definição, e que determina uma nova definição do homem em termos de "zòon logon echon" ("animal/vivente que tem a palavra"), descerra um espaço de meditação sobre a liberdade humana, que autoriza a discutir, já no pensamento antigo, uma leitura simplesmente "metafísica" do homem. A tese que gostaria de oferecer para sua consideração é, portanto, a seguinte.
O sistema metafísico de interpretação do ser, que "pode ser dito de muitas maneiras", propõe a grande divisão entre "substância" que permanece e "acidente" que passa - e, portanto, distingue o "próprio" do "diferente", a "identidade” da “alteridade”, a “necessidade” da “contingência”. No entanto, graças à surpreendente afirmação da Política de Aristóteles sobre o homem como "animal que tem a palavra", esse sistema metafísico pode reconhecer, na sua origem, um duplo ponto cego, que tem a ver com a liberdade humana e a graça divina. Desse modo, liberdade e graça tornam-se, em recíproca relação, releituras abrangentes da realidade.
Existem, de fato, dois "entes" para as quais a distinção entre substância e acidente não funciona: Deus e o homem não correspondem a essa lógica ontológica, a derrubam e juntos a modelam. Todo o universo é compreensível por essa distinção, mas não é válida nem para o homem nem para Deus. Poderíamos dizer que "toda a natureza" é compreensível por meio dessas categorias, que, no entanto, permanecem aquém de seu significado quando aplicadas a Deus e ao homem. Por isso, falar de “natureza humana” e de “natureza divina” é usar a linguagem além de seus limites (Schleiermacher). Se, além disso, uma tradição, como aquela cristã, coloca no centro de sua identidade "uma só pessoa em duas naturezas" - justamente conjugando em um único ponto a dupla exceção à regra comum, constituída pela "natureza" divina e pela "natureza" humana - então o desafio trazido ao pensamento clássico pela experiência cristã é realmente da maior magnitude.
Deus e homem se colocam no limiar externo dessa lógica metafísica, constituem sua fonte, mas desmentem sua estrutura. Na verdade, a "permanência" da substância e o "devir" do acidente são reconhecíveis apenas a partir de uma perspectiva - isto é, de um ponto de observação e quase de um mirante - que é constituída por uma "comunhão/confusão originária" entre permanência e devir [2], assim como resulta da experiência não só do homem, mas também de Deus, pelo menos como atestada pela tradição judaico-cristã.
Neste texto não estou tratando de uma "teoria sobre Deus", com todas as suas implicações, mas limitando-me a uma "teoria antropológica" capaz de dar conta dessa surpreendente verdade e capaz de guardar sua memória. A estrutura metafísica da realidade não aparece aqui como "fonte", como "começo", mas é mais um "efeito" da antropologia e da teologia. Não é uma teoria sobre o ser que garante uma antropologia e uma teologia, mas é uma teologia/antropologia que pode aceder a uma ontologia plenamente convincente. A primeira filosofia estaria, portanto, enraizada na contingência abençoada do sujeito, situado e "lançado" em uma comunidade de relação (Lévinas). A primeira evidência seria, portanto, estruturalmente "autorizada", possibilitada por outro e por Outro. Em princípio, evidência e autoridade não se deixariam distinguir radicalmente [3]. Autoridade e evidência deveriam, portanto, ser reconhecidas como cooriginárias.
Essa natureza cooriginária de evidência e autoridade constitui o desafio ao pensamento filosófico por parte da teologia e da antropologia. A primeira, isto é, a filosofia, deve descobrir a autoridade na evidência, enquanto a segunda, a teologia e a antropologia, devem descobrir a evidência na autoridade.
O significado dessa afirmação terá que ser cuidadosamente esclarecido, a fim de evitar qualquer forma de deslizamento "autoritário", hoje tão fácil para qualquer pensamento não satisfeito pelo "liberalismo/relativismo" que corre o risco de se fazer afirmar como um novo dogma. Apenas uma delicada genealogia que tenha autoridade da liberdade e da evidência pode resgatar os direitos da autoridade e da tradição em uma forma que não resulte simplesmente pré-moderna ou anti-moderna. E, portanto, com o risco de que tal reavaliação não consiga escapar do enredamento - sempre fascinante - por um pensamento habitado por uma grande dose de ressentimento, mas sem nenhuma verdadeira relação com a realidade.
Prosseguirei, agora, com mais duas breves etapas: em primeiro lugar, reevocarei a conhecida passagem da Política de Aristóteles mencionada no título, para oferecer uma leitura, espero, plausível (§.2); depois tentarei elaborar uma hermenêutica “temporal” dessa famosa passagem, da qual deveria resultar a mediação que a “palavra” exerce para configurar o tempo infinito da substância (§.3). A partir disso, tirarei algumas conclusões sobre a teologia pública do futuro.
Sem nenhuma pretensão de esgotar a antropologia aristotélica na famosa definição do homem, gostaria de propor agora uma análise pontual, que nos permita apreender sua lógica férrea e coerente. O texto é conhecido, mas reproduzo-o aqui para facilitar:
“E o porquê de o homem ser um animal político (vivente sociável) em maior medida que qualquer abelha ou animal gregário, é evidente. Pois como dizemos, a natureza não produz nada sem propósito; apenas o homem, dentre os animais, possui o logos. É assim que a voz pode configurar dor ou prazer e, deste modo, outros animais inferiores também a possuem (já que a sua natureza própria foi levada até o ponto de perceberem o que é doloroso ou prazeroso e transmitirem isto uns aos outros), enquanto o logos existe para tornar manifesto o vantajoso e o ruim, assim como o justo e o injusto; pois isto é o que faz o que é próprio ao homem e o diferencia dos outros animais: que ele sozinho tenha a percepção do bem e do mal, do justo e do injusto, etc. E é a comunidade dessas percepções que produz a família e a pólis" [4].
Sobre esse texto, tão famoso, podemos realizar algumas considerações iniciais.
A diferença entre homem e animal é identificada na "palavra" (logos) e aparece entendida em sua diferença em relação à "voz" (phoné). A palavra permanece certamente ligada à voz - que continua a ser o "suporte" de cada palavra "dita" - mas adquire uma sua “autonomia”, a ponto de poder ser “escrita”, isto é, a ponto de se tornar palavra sem voz. Essa diferença é imediatamente considerada no plano da "expressão": enquanto os animais se expressam com a sua voz, o homem "fala", expressa-se com as palavras. O animal "fala com a voz", o homem "fala com a palavra". Aqui, o texto parece conceber a linguagem da maneira intelectualista clássica: "voces sunt signa intellectuum, intellectus rerum similitudines", para citar a conhecida definição da Suma Teológica de São Tomás de Aquino (S. Th, I, 13, 1, c).
Mas a diversa "expressão" é, ao mesmo tempo, efeito e condição de diferentes níveis da percepção e da experiência (do agradável, do útil e do justo). Em outras palavras, a diferença entre voz e palavra não apenas atesta, mas institui uma diferente percepção e experiência da realidade.
Além disso, deve-se observar que esses diferentes "juízos" correspondem e instituem diferentes expressões/experiências temporais. Voz, palavra falada e palavra escrita possibilitam, assim, diferentes experiências do tempo, ou seja, “abrem o acesso à liberdade”. Vamos tentar descrever brevemente essas diferentes “dimensões” do tempo a que introduz a sequência expressiva e experiencial de voz, palavra falada, palavra escrita.
A voz expressa o bem imediato, no presente, diante de mim. A palavra torna-se condição para poder expressar o diferimento/a permanência do bem. Em outras palavras, expressa o bem que não se vê (ainda), que não está diante de mim.
A palavra é, portanto, condição para a experiência da utilidade diferida e da justiça infinita. A palavra é diferimento tanto como tal quanto por poder ser confiada a um escrito e fala mesmo na ausência do falante. Assim, a palavra preserva a diferença do bem diferido e/ou infinito em relação ao bem imediato. Porém, é, por sua vez, entregue a uma condição contingente, à autoridade de uma determinada tradição, de uma língua específica, de uma autoridade educadora, de um código de comunicação que o sujeito recebeu de outros, de fora, de fora e de antes de si mesmo. A palavra, a diferença da voz, não é natural. Portanto, a palavra está no limiar, sobre o limiar, entre autonomia e heteronomia. A voz é totalmente própria e totalmente comum: é deste animal e de todo animal, enquanto a palavra é relativamente própria e relativamente comum, deste ser humano, mas também de um grupo de humanos, mas não de todos os humanos. Há muitos homens que nada sabem sobre esta palavra, nem sobre mim que a pronuncio, e que podem ouvi-la apenas como "voz" e, portanto, reduzir também a mim a um "animal". Não há substância nem acidente para a voz. Em vez disso, a palavra pode distinguir a substância e o acidente, mas apenas graças à "condição histórica e contingente" de uma língua e de seu entendimento. A voz está aquém da liberdade, enquanto a linguagem é condição de existência livre.
A família, a sociedade e o Estado são, portanto, não só as condições "expressivas" da palavra/pensamento, mas também as condições perceptivas e vivenciais de acesso à realidade.
Poderíamos então dizer que a condição de uma exterioridade que tenha autoridade e contingente é necessária para que ocorra uma evidência da substância que persiste em relação à contingência acidental. Para que um reconheça um "outro", é necessário que um "outro" tenha instituído a possibilidade "linguística" de um "um". Aqui a liberdade de expressão deve ser instituída para que possa ser percebida e experienciada.
Gostaria agora de me deter num ponto decisivo, ou seja, sobre a "temporalização" garantida pela linguagem verbal como condição para o reconhecimento de uma "permanência". Como veremos, apenas superando uma concepção instrumental da linguagem, e assim acessando o cerne da chamada "virada linguística", podemos compreender a abissal profundidade da definição aristotélica e sua atualidade no debate contemporâneo sobre a liberdade, também do ponto de vista teológico.
No pensamento aristotélico "de homine" aparece a consciência de uma raiz histórica, tradicional, institucional da mais alta evidência metafísica. Isso nos leva a uma consideração mais acurada da chamada "virada linguística", que aqui encontramos de alguma forma antecipada pelo filósofo estagirita. Essa virada, de fato, mudou profundamente a relação com as "coisas", bem como com a sua "expressão". Nosso acesso ao real com a virada linguística é reconhecido apenas na medida em que é linguisticamente instituído. A linguagem, como aquilo que recebemos por tradição e por autoridade de uma comunidade vivente, nos permite perceber, experimentar e expressar a realidade e nossa relação com ela [5].
Isso, no entanto, não comporta necessariamente uma "caída relativística". Parece mais que essa consciência - que amadureceu apenas no final do século XIX, mas com premissas antigas não desprezíveis - introduz uma "relação de autoridade" como condição da evidência. A possibilidade de reconhecer a verdade evidente e uma evidência da verdade se manifestaria como marcada, condicionada e instituída por uma autorização recebida através de uma tradição, uma linguagem, de símbolos e de ritos.
Se traduzirmos esse pressuposto "genealógico" sobre a natureza humana, com suas implicações institucionais e temporais, podemos deduzir uma série de consequências muito interessantes, que definem claramente as características de uma leitura "pós-metafísica", em que a liberdade é, antes de tudo, a contingência do evento originário. Que um ato de liberdade abre na origem para uma história.
À luz desse pressuposto sobre a liberdade como "originário" divino e humano, autoridade e evidência, em sua diferença, não são o ponto de partida distinto de uma "divisão do conhecimento", mas o ponto de chegada de um desenvolvimento histórico. São a forma abstrata e final da distinção de uma "comunhão originária" guardada pela diferença da palavra em relação à voz. Sobre essa diferença “pesa” e “resplendece” uma condição "política", "linguística", contingente e histórica.
Agostinho reconheceu, em uma famosa passagem de seu De ordine, que "ratio" e "auctoritas" têm lógicas diferentes, mas que precisam ser integradas com sabedoria. O texto de Agostinho afirma:
“ad descendum item necessario dupliciter ducimur, auctoritate atque ratione. Tempore auctoritas, re autem ratio prior est" (para aprender é necessário ser guiados de duas maneiras, pela autoridade e pela razão. Em relação ao tempo, primeira é a autoridade; em relação à coisa, primeira é a razão).
Trata-se de um texto evidentemente pensado para um contexto" pedagógico ", mas bem ilustra a implicação recíproca entre "auctoritas" e "ratio", frisando a "primazia temporal da auctoritas". Se usarmos esse texto agostiniano para interpretar o texto aristotélico, podemos concluir que para o homem poder ter a palavra razão depende de uma prioridade temporal da autoridade [7]. Ou seja, de uma “liberdade outra”. A liberdade é certamente originária, mas apenas na figura de uma "liberdade outra".
Parece-me muito importante deduzir, dessa hipótese de leitura da tradição filosófica sobre a antropologia, uma condição paradoxal da "natureza humana". Só pode ser “entendida” numa “dinâmica histórica”. Não há uma evidência, exceto por tradição. Isso significa que sua "identidade" não é "em si", mas apenas "por outro". Portanto, devemos admitir que é estrutural, para o homem, uma "relação genealógica" consigo mesmo. Encontra a si mesmo passando, necessariamente, "por outro". Isso, no entanto, pode ser facilmente mal interpretado: de fato, com base em uma leitura unilateral dessa afirmação, pode indevidamente direcionar para uma perigosa ênfase sobre a "heterodeterminação do sujeito", que, a fim de evitar a perda de si mesmo na infinita relatividade das relações, enrijece-se numa identidade "autoritariamente garantida".
Não se deve esquecer, de fato, que a libertação moderna da genealogia, a emancipação do outro do qual dependo, foram - e continuam a ser - a consequência de uma tradição de geração e da dependência, que negam (ou melhor, não conhecem) os direitos do sujeito. A nostalgia da "comunidade", mesmo com toda a sua compreensível urgência, muitas vezes censura a memória vivente do que "comunidade" significou antes da modernidade tardia: negação dos direitos, opressão das consciências, arbítrio das escolhas de uns sem o consentimento dos outros, impossibilidade de autonomia dos indivíduos ... O sujeito pós-moderno, ao idealizar um "vínculo", muitas vezes se esquece do altíssimo preço que foi pago ao vínculo pelas gerações pré-modernas.
Disso decorre, em última análise, a delicadeza do reequilíbrio pós-moderno: recuperação de uma "palavra autorizada", que evite acuradamente recair nos abismos da "proibição da palavra"; recuperação de uma genealogia da liberdade, sem desmentir a possibilidade que, sob certas condições, a própria liberdade possa e deva ser reconhecida como um início; repensamento da autoridade mediadora em relação à evidência imediata.
Que o homem seja "por outro", expressa duas coisas ao mesmo tempo: que é um início e que é iniciado. Esse homem é iniciado para ser um início e que, entretanto, só pode ser início de si mesmo se encontrar e reconhecer seu início em outro de si mesmo; que a liberdade é a sua vocação, mas repousa sobre liberdade outra, diferente, anterior, que é autoridade; que a razão nada mais é do que o reconhecimento com autoridade da liberdade e o reconhecimento livre da autoridade [8]. Nesse nexo original, uma teologia da liberdade permanece não apenas questão eclesial, mas sempre também questão poética, questão política e questão filosófica.
Essas três grandes "esferas" da "teologia" correspondem, de forma surpreendente, aos desafios abertos para a teologia do amanhã:
a) a "teologia poética" é o espaço de uma "expressão da imaginação" que constitui a teologia em seu "modo simbólico", que é, ao mesmo tempo, mais alto e mais baixo que a ciência. Pode falar de Deus precisamente a partir de linguagens mais elementares, não verbais, nas quais emoção e sentimento garantem a verdadeira inteligência. A coragem de forjar a/as linguagem/linguagens através da fé e de pensar/falar da fé com as palavras/linguagens de hoje: eis a primeira perspectiva.
b) a "teologia civil" é a elaboração dos "sinais dos tempos" dos quais falou pela primeira vez João XXIII em Pacem in terris: a libertação dos povos, do trabalho e das mulheres é parte constitutiva do caminho teológico e eclesial, pois descortina não apenas direitos à liberdade, mas experiências de autoridade a que a Igreja não pode renunciar, exceto empobrecendo-se. Uma igreja que saiba falar serenamente dos direitos, sem corar e sem ingenuidade, esta é uma profecia. Sabendo bem que, como afirma Bonhoeffer, há circunstâncias em que o melhor que se pode fazer com um direito é renunciar a ele!
c) a "teologia física" é o desafio de uma ciência que conhece cada vez melhor o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, em relação ao qual precisamos construir saberes não apologéticos, mas contribuir para a cultura comum. A contribuição da teologia para a cultura comum, partindo do âmbito de uma comunidade específica, mas aspirando à "lógica comum e pública": este é o terceiro dos horizontes sobre os quais teremos que nos confrontar, sem temor, com audácia e com bastante paciência.
d) Todo esse quadro promissor repousa em uma premissa, que precisa ser reiterada. A crise da teologia e o seu “exílio” da cultura comum e pública são o resultado de escolhas drásticas feitas há mais de 100 anos e que ainda manifestam o seu peso. A ideia de que os cristãos tenham "fontes reservadas" de conhecimento, que os dispensam da cultura comum, é uma ideia ingênua e perigosa, fruto do anti-modernismo do final do século XIX. Um anti-modernismo que se renovou mesmo depois do Concílio Vaticano II, como resistência extrema a ele. Hoje devemos reagir a essas tendências com absoluta determinação. Podemos fazer isso seguindo o que propõe um dos grandes "pais" da nossa teologia, um homem que nos deixou em maio passado e se chama Gh. Lafont. Em um de seus grandes livros, que se intitula História Teológica da Igreja Católica. Itinerário e formas da teologia, escreveu nas páginas finais esta frase cristalina, com a qual gostaria de encerrar minha apresentação:
“Seria possível dizer que toda vez que a Igreja teve medo do humano, das suas manifestações, do seu desenvolvimento, ou, da mesma forma, cada vez que se despojou, por motivos espirituais, do dever de pensar e impediu os seus fiéis de se dedicarem a ele, trabalhou contra o Evangelho que devia proclamar" (Edição francesa, Paris, Cerf, 1994, 457 pgs).
[1] "Relatum est in litteras doctissimum pontificem Scaevolam disputasse tria genera tradita deorum: unum a poetis, alterum a philosophis, tertium a principibus civitatis”. (Aug. De civitate Dei, IV, 27). Sobre o Pontífice Máximo Quinto Múcio Cévola indico A. Schiavone, Nascita della giurisprudenza. Cultura aristocratica e pensiero giuridico nella Roma tardo-repubblicana, Bari, Laterza, 1977 .
[2] Poderíamos dizer que é a "forma humana" da experiência que "impõe" uma lógica metafísica ao real, que explica o devir do real do mundo material, do mundo vegetal e do mundo animal. Essa lógica, entretanto, mal se ajusta ao mundo humano e ao mundo divino. Se, além disso, considerarmos que com as mesmas noções a teologia tenta explicar a "presença" do Corpo e Sangue de Cristo (verdadeiro Deus e verdadeiro Homem) no pão e no vinho, torna-se fácil constatar que o uso das mesmas categorias elaboradas para o ser (das coisas) não é capaz de mediar adequadamente a "presença humana e divina", que nunca se dá na forma de uma substância sem acidentes. Não vale nem para Deus nem para o homem.
[3] Para uma visão abrangente dessa preocupação de Lévinas em relação à “humanidade do homem” remeto à síntese oferecida por Ph. Nouzille, Lévinas o l’umanesimo inattuale, in Id. (ed.), Fenomenologia e umanesimo. L’uomo immagine irrappresentabile, Ariccia, Aracne, 2015, 153-172.
[4] Aristóteles, Pol., I[A], 2, 1253a.
[5] Uma reflexão fundamental sobre a dimensão “instituída” pela experiência é propiciada por M. Merleau-Ponty: “On entendait donc ici par institution ces événements d'une expérience qui la dotent de dimensions durables, par rapport auxquelles toute une série d'autres expériences auront sens, formeront une suite pensable ou une histoire, - ou encore les événements qui déposent en moi un sens, non pas à titre de survivance et de résidu, mais comme appel à une suite, exigence d'un avenir” (M.Merleau-Ponty, Résumés de cours. Collège de France 1952-1960, Paris, Gallimard, 1968, 62). Em especial consultar M. Merleau-Ponty, L'institution, la passivité – Notes de cours au Collège de France (1954-1955), Paris, Belin, 2015
[6] A. Augustinus, De ordine, II, IX, 26 [CCL, XXIX, 121, 2-122, 4].
[7] A primazia temporal da autoridade significa que no tempo se manifesta e se esconde uma auctoritas.
[8] Em grande sintonia com essa tentativa considero a empreitada decenária com que Th. Proepper construiu uma hermenêutica teológica da liberdade: cfr. Th. Proepper, Vangelo ragione libertà. Lineamenti di un’ermeneutica teologica, ed. A. Autiero, Bologna, EDB, 2008 (ed. orig. 2001 com o título Evangelium und freie Vernunft. Konturen einer theologischen Hermeneutik).
De 04 de junho a 10 de dezembro de 2021, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU realiza o XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição, que tem como objetivo debater transdisciplinarmente desafios e possibilidades para o cristianismo em meio às grandes transformações que caracterizam a sociedade e a cultura atual, no contexto da confluência de diversas crises de um mundo em transição.
XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição