09 Agosto 2014
"Podemos não ser exatamente o que se pensa quando se fala em “tomistas”. Nós mesmos não temos certeza do que somos, e nos diferimos entre nós quanto a esta questão", escreve Holly Taylor Coolman, professor assistente de teologia na Providence College, em artigo publicado pela edição de agosto da revista America. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Uma nova geração lê Aquino
Foi tarde que passei a gostar dele - ou, pelo menos, mais tarde do que muita gente. Tinha 27 anos de idade quando me pus a ler, pela primeira vez, a obra de São Tomás de Aquino a sério. Na ocasião, tendo sido criado num mundo de evangelismo embevecido da Bíblia, e tendo cursado filosofia e literatura, senti compreender a Bíblia e a tradição intelectual ocidental, pelo menos num sentido geral, da mesma forma como os alunos de graduação as aprendem. E eu já tinha passado certo tempo me esforçando para compreender como estas coisas poderiam funcionar juntas, na tentativa de organizar aquilo que os filósofos chamaram de “uma boa vida”. Tudo isso, como se vê, foi um cenário perfeito para a minha aproximação à Aquino. Lembro-me de correr as páginas da Summa Theologiae [Suma Teológica], sentindo uma espécie de zumbido elétrico. Por uma ou duas vezes, me vi sussurrando: “Ele é um gênio”. E assim, mais ou menos 700 anos depois de Aquino ter escrito aquelas palavras que eu estava lendo, tive forte sensação de que o havia descoberto pela primeira vez.
Na medida em que me tornava um leitor regular de Tomás de Aquino, comecei a enxergar o tipo de coerência global presente em sua obra e na obra de algumas poucas mentes que o sintetizaram. Em particular, na Suma Teológica, obra escrita no final de sua vida (ele morreu em 1274), as relações parecem intermináveis: muitas seções do texto poderiam ser facilmente inseridas como uma nota de rodapé estendida em várias outras obras.
Fiquei maravilhado quando o autor fazia relações específicas que eu deveria ter percebido, e que não as percebia. Desde criança, conhecia bem as palavras de Jesus no Evangelho de João: “Eu já não chamo vocês de empregados; eu chamo vocês de amigos”. Texto revelador, lançou as bases para uma relação real e íntima com Deus. Embora minha formação se dera através da Ética a Nicômaco, de Aristóteles, simplesmente nunca me ocorreu, como ocorreu a Aquino, que o relato detalhado da amizade resumido aí tornou possível uma interpretação ainda mais rica do relato do evangelista. Para mim, este tipo de inter-relação não se parecia algo frio, lógico-matemático. Parecia-se como um cuidado e um compromisso intelectual profundo em estabelecer relações. A mim pareceu como alguém que estava tentando, assim como eu, juntar as coisas e destiná-las para o bem.
Ao mesmo tempo, pude ver a leveza com que Tomás de Aquino revelava a sua genialidade – um sentimento que, por vezes, estava em desacordo com a minha própria experiência na academia. Por mais que eu gostasse das ideias, algumas coisas dentro deste ambiente já tinham começado a me afastar dele. Talvez eu estivesse sendo sensível demais, como muitos de minha geração pareciam ser. Por crescer logo após as revoluções das décadas de 1960 e 1970, e por vê-las se transformarem nos excessos dos anos 1980, mantinha suspeitas dos sistemas e das agendas políticas, daqueles cujos egos pareciam se conectar intimamente a qualquer um.
Em Aquino, entretanto, pude ver que mesmo quando ele construía certo “sistema”, não se focava no sistema em si. Ele nos incentiva a olharmos além enquanto que, ao mesmo tempo, reconhece aquilo que não podemos fazer. A forma como ele lança mão de um princípio de analogia para descrever o discurso sobre Deus estabelece um parâmetro já no começo da Suma Teológica: todas estas elaborações intelectuais complexas podem ser mais ou menos verdadeiras, mas jamais poderão ser a própria verdade. Isso é mais do que simples modéstia geral sobre a busca intelectual. Para Aquino, esta opção se relaciona intimamente com a noção de “admiratio”, tema subestimado em sua obra.
Um amigo, bem-versado em Aquino e em latim medieval, sugeriu que a melhor tradução para “admiratio” pode ser “maravilha desconcertante”. Em certo sentido, esta é a resposta a que Aquino quer, acima de tudo, dar lugar. O desejo por Deus permeia todo o seu empenho. No entanto, este foco não deixa coisas terrenas para trás. Leva a pessoa a lidar não com Deus de forma isolada, mas com “todas as coisas à luz de Deus”.
Visto por este prisma, não é apenas Deus mas todos aqueles que encontramos e, até mesmo toda a criação, que exigem a nossa admiração. Eles até nos excedem, na medida em que somos parte deles. Ainda que muitos de nós tenhamos a inclinação e o prazer de produzirmos muitos pensamentos sobre o assunto, os nossos esforços intelectuais, quando feitos corretamente, são realizados não de maneira estéril, mas com admiração e deleite.
Ler Tomás de Aquino é em si um tipo de formação neste processo. O uso de seus poderosos dons intelectuais, o seu reconhecimento simultâneo para com suas limitações, o seu apontar em direção ao mistério que está além de seus próprios dons – tudo isso presentifica a sua mensagem e, ao mesmo tempo, constitui a sua própria personificação dela.
Uma comunidade de principiantes
Talvez seja importante notar que não sou o único nesta experiência de leitura de Santo Tomás de Aquino. A minha geração nunca memorizou o tomismo como um conjunto de proposições; nem nenhum de nós aprendeu a respirar na atmosfera tomista. Nós o encontramos ao longo do caminho. Um novo momento na história do tomismo está surgindo, na medida em que mais e mais estudiosos jovens estão lendo sua obra, enxergando tanto velhas quanto novas possibilidades. Aquino está nos atraindo de uma forma tanto semelhante quanto diferente daquela como fez para atrair as pessoas quando lecionava em Paris.
Em alguns casos, Tomás de Aquino também acaba nos atraindo entre si. Talvez isso não seja algo surpreendente. Como dito acima, Aquino nos dá alguns dos conceitos mais rarefeitos na linguagem cotidiana da amizade. A Suma Teológica não está escrita em parágrafos simples e declarativos. Ela se baseia, e na verdade incorpora, a forma de debate e discussão. Ao mesmo tempo, relativiza concordâncias de uma forma interessante. “Devemos amar uns e outros: aqueles cujas opiniões partilhamos assim como aqueles cujas opiniões rejeitamos”, diz num comentário sobre Aristóteles.
“Pois tanto uns como outros trabalharam na procura da verdade e nos ajudaram a encontrá-la”.
Talvez, então, não seja por acaso que uma de minhas experiências mais frutíferas ao ler Aquino tenha se desenvolvido a partir de um pequeno encontro anual de amigos pesquisadores. Ao procurar uma outra forma de realizarmos nossa prática de estudos, começamos com certas práticas de um “studium generale” medieval, mas sobretudo nos centramos em estudar, aprofundadamente, Aquino no contexto de nossas amizades uns com os outros e de oração. Os nossos dias juntos envolvem uma leitura vagarosa e cuidadosa dos textos tomistas, com doses generosas de exploração do texto, discordância e questionamentos sobre a relação delas com o diálogo teológico contemporâneo, bem como de orações regulares. As nossas noites são reservadas para as refeições sem pressa, com um pouco mais de discordância e de uma boa parte extra de risadas. A nós frequentemente se juntam estudantes também, e procurar formas de fazermos amizades e orientá-los se tornou uma extensão natural de nosso trabalho em conjunto.
Podemos não ser exatamente o que se pensa quando se fala em “tomistas”. Nós mesmos não temos certeza do que somos, e nos diferimos entre nós quanto a esta questão.
Sabemos, isso sim, que somos grandes admiradores de Tomás de Aquino e nos consideramos seus alunos. Hoje, 20 anos após ler pela primeira vez a Suma Teológica, sinto-me como se fosse ainda um principiante. Felizmente, estou em boa companhia.
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“Suma Teológica” 2.0 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU