18 Agosto 2021
“As comunidades religiosas estão sujeitas a todas as dinâmicas virtuosas, mas também aos desvios próprios de qualquer grupo humano, desde aqueles ligados ao poder e ao seu exercício, àqueles ligados ao tipo de pessoas que um grupo atrai dependendo da sua própria conformação e estruturação.”
Esta é mais uma contribuição, a penúltima, à série de artigos sobre o tema da comunidade [os demais estão disponíveis em italiano aqui] publicados por Riccardo Larini, teólogo italiano e ex-monge da Comunidade de Bose, da qual fez parte durante 11 anos.
O artigo foi publicado por Riprendere Altrimenti, 17-08-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Os seres humanos são dotados de uma notabilíssima criatividade intelectual, espiritual, artística, prática (e poderiam ser acrescentados sabe-se lá quantos outros adjetivos). Com ela e graças a ela, além de resolver problemas e superar obstáculos, os homens e as mulheres de todos os tempos e lugares sabem dar sentido e imaginar um mundo outro, de outra forma, que às vezes tem a força de se tornar realidade concreta e duradoura.
Por isso, um mundo sem arte, literatura, filosofias e religiões seria, na realidade, ainda mais pobre do que um mundo sem grande evolução tecnológica ou luminosas teorias científicas.
Enquanto a criatividade permanece como um fato individual, que é exercido e desenvolvido contando substancialmente apenas com as forças e os recursos de quem a possui e a faz crescer em si mesmo, mesmo tendo uma influência às vezes não indiferente sobre os outros, ela raramente tem um impacto problemático sobre a liberdade alheia.
Os interlocutores do intelectual, do espiritual, do artista, do criativo, de fato, podem escolher que uso fazer dela, como usufruí-la ou não, sem serem nem forçados nem de algum modo envolvidos, apesar da sua vontade, na parábola da criação espiritual de qualquer tipo.
Tudo muda decisivamente, porém, quando a criatividade se torna fato social, coletivo, uma obra não mais apenas individual, independentemente das razões subjacentes a tal socialização da inspiração e do espírito.
Acima de tudo e de forma substancialmente positiva (como em parte o reino animal já nos ensina), a união dos recursos individuais leva não só a somar as potencialidades dos indivíduos, mas também à gênese de novas possibilidades e horizontes.
Basta pensar no desenvolvimento das civilizações humanas, mediante a união de muitos espíritos criativos e a criação de lugares dedicados ao pensamento e ao crescimento do espírito e da cultura. E nos sinais coletivos muito concretos de tais civilizações, como, por exemplo, o desenvolvimento de obras arquitetônicas capazes de ser linguagem de liberdade e de aspirações e emoções comuns e compartilhadas, capazes de resistir pelo menos parcialmente à força desagregadora e inexorável do tempo.
O que seriam as nossas vidas sem tudo aquilo que veio desde os primeiros monumentos megalíticos e as extraordinárias pirâmides do Egito até às obras-primas da arquitetura contemporânea? Como qualquer outra espécie animal, provavelmente sobreviveríamos. Mas seria uma vida humana plena, digna das nossas aspirações?
Além de tal aspecto genealógico, porém, a convergência dos espíritos traz inevitavelmente consigo a necessidade de fazer as contas com tudo aquilo que caracteriza os grupos humanos: organização, sinais compartilhados e relações, e, em última instância e inexoravelmente, o poder, a libido dominandi que nos acompanha desde sempre e que é fonte de grandezas e de misérias, de exaltações e de humilhações inenarráveis.
Um exemplo muito bonito desse entrelaçamento às vezes inextricável é a série de televisão “Os pilares da terra”, escrita por John Pielmeier, adaptando o romance homônimo de Ken Follett, na qual, em torno da construção no século XII da Catedral de Kingsbridge (cidade fictícia), assiste-se a todo o drama suscitado pelos encontros e pelos confrontos entre figuras-símbolo das aspirações humanas (das mais baixas às mais nobres e espirituais).
Uma aplicação muito concreta dessas considerações ocorre na vida religiosa, em que, com tal termo, entende-se a escolha de moldar a própria existência a partir de inspirações fortes e duradouras ligadas ao divino ou à religião. Na sua raiz, muitas vezes, há uma espécie de “ideal monástico”, uma modalidade radical e profundamente íntima e pessoal de viver a relação com o núcleo da própria inspiração.
Daí o desejo de unificação em torno de um princípio (veja-se a origem da palavra monachós), que leva a um desejo de se retirar, de olhar para fora e para o íntimo, acompanhado ou não pela limitação de algumas esferas (em primeiro lugar, embora não necessariamente ou exclusivamente, a sexual) para se concentrar naquilo que é considerado “essencial”.
O “monaquismo” também pode ser vivido sozinho, sem pertencer a uma comunidade que tem relações e comércios cotidianos. O eremitismo sempre existiu e sempre existirá, mesmo dentro das nossas cidades e em uma miríade de formas diferentes.
Existem ainda, às vezes, formas florescentes de vida religiosa (pensemos nos mosteiros como o atual de São Macário, no Egito) que são regidos sob um regime “idiorrítmico”, isto é, em que os indivíduos estão ligados unicamente pelo pai espiritual que acompanha o seu caminho, tentando adaptar as exigências da vida espiritual e monástica a cada um.
No âmbito cristão (mas não só), a dimensão comunitária, no entanto, quase nunca desaparece do horizonte do religioso, pelo menos sob a forma de participação na liturgia, ou seja, na oração comum da Igreja e do grupo religioso de pertencimento.
Grande parte das nossas comunidades “religiosas”, porém (mas muito do que eu digo também se aplica às paróquias e às associações de fiéis), passa a existir quando diversas pessoas reconhecem que têm uma “vocação” comum e, por isso, consideram que podem tanto se ajudar a responder melhor às exigências e às inspirações sentidas sempre de maneira íntima e individual, quanto que podem abrir espaço para agrupamentos em que a resposta coletiva e a criação comunitária adquira novas dimensões com relação ao puro caminho de crescimento individual.
No mesmo momento em que a aventura religiosa se torna “comunitária”, a ela se aplicam invariavelmente todas as análises e as considerações desenvolvidas pelas disciplinas que se ocupam dos agrupamentos humanos, da sociologia à psicologia social, mesmo quando surgem questões de natureza patológica.
Em outras palavras, as comunidades religiosas estão sujeitas a todas as dinâmicas virtuosas, mas também aos desvios próprios de qualquer grupo humano, desde aqueles ligados ao poder e ao seu exercício, àqueles ligados ao tipo de pessoas que um grupo atrai dependendo da sua própria conformação e estruturação.
Hoje, a vida religiosa de todos os tipos está decisivamente em crise no nosso mundo ocidental: baixa frequência às igrejas, qualidade de vida humana muitas vezes beirando o tolerável em conventos e instituições oficialmente religiosas, enorme dificuldade em encontrar guias espirituais capazes de valorizar as aspirações espirituais dos indivíduos sem arregimentá-los e sem acabar promovendo infantilismos espirituais de vários tipos.
Muitas pessoas já pensam, talvez sem ousar dizer isto em voz alta, que a única forma de sobrevivência da religião só poderá ser a individual, na qual homens e mulheres se unem para fazer trechos específicos de caminho, sem, no entanto, dar origem a realidades capazes de resistir ao teste do tempo. Um pouco como ocorre na rede, onde escolhemos constantemente entrar e sair dos grupos de acordo com as inspirações e os interesses do momento, sentindo-nos livres para não nos comprometermos definitivamente com nada.
O que torna o quadro sombrio, no entanto, são as frequentes notícias de comunidades em crise, às vezes até mesmo graves, que parecem não poupar nenhuma realidade (pensemos no caso surpreendente de Bose). A quantidade de abusos de vários tipos cometidos em realidades “religiosas” não pode mais ser calada, e, mesmo onde a palavra “abuso” não se enquadra, não se pode calar a crescente dificuldade que as realidades comunitárias de matriz religiosa encontram na busca de formas de vida mais conformes tanto “às condições em mudança dos tempos”, quanto sobretudo “às atuais condições físicas e psicológicas” dos seus membros, como dizia, no já distante 1965, o Perfectae caritatis, o documento conciliar dedicado a uma “oportuna renovação” da vida religiosa.
A eventual renúncia a uma dimensão comunitária, ou pelo menos uma forte redução dela, teria um impacto não desprezível sobre a capacidade da fé religiosa de dar sentido às sociedades nas quais ela se manifesta e floresce. Como toda renúncia ao público e ao comunitário, seria um empobrecimento notável.
No cristianismo, além disso, o puro individualismo espiritual seria um verdadeiro contratestemunho em relação à promessa de koinonia universal que ele anuncia desde as suas origens.
O que fazer, então? Aceitar enfrentar os problemas de forma aberta, tentando entender o que é possível abandonar ou mudar em vista de uma vida mais plena e humana nas nossas comunidades religiosas de todos os tipos, desde as paroquiais até as conventuais e de ação comunitária com fins espirituais ou religiosos.
E, acima de tudo, aceitar integralmente o desafio principal: olhar na cara do “monstro” do poder, submeter as nossas formas de organização e de autoridade a uma crítica e a uma revisão radicais, realizadas utilizando todos os recursos disponíveis, desde os fornecidos pelas ciências humanas até aqueles disponível por meio do núcleo da mensagem do Evangelho.
Certamente será um processo doloroso, mas também catártico. Falarei sobre isso na minha próxima contribuição, a última desta série dedicada ao tema da comunidade e das suas expressões no cristianismo. [...].
De 04 de junho a 10 de dezembro de 2021, o IHU realiza o XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição, que tem como objetivo debater transdisciplinarmente desafios e possibilidades para o cristianismo em meio às grandes transformações que caracterizam a sociedade e a cultura atual, no contexto da confluência de diversas crises de um mundo em transição.
XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição
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A dimensão comunitária das nossas aspirações espirituais tem futuro? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU