01 Junho 2021
"Para Riccardi, nem tudo está perdido, pois a Igreja conserva em cada época uma extraordinária capacidade de adaptação e, portanto, de mudar, para que a fé possa ser transmitida às gerações futuras. Como, em alguns anos, Notre-Dame provavelmente retornará ao seu esplendor, o catolicismo também poderá se renovar com o objetivo de pronunciar, mais uma vez, palavras geradoras para a humanidade do futuro", escreve Rocco Gumina, professor de religião na arquidiocese de Palermo, em resenha sobre o livro "La Chiesa brucia. Crisi e futuro del cristianesimo" (em tradução livre, "A Igreja queima. Crise e futuro do cristianismo"), de Andrea Riccardi, publicada por Tuttavia, 29-05-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Rocco Gumina ensina religião na arquidiocese de Palermo. Desde 2014 é presidente da associação cultural "A. De Gasperi". Publica artigos em revistas especializadas que desenvolvem temas relacionados à relação entre teologia, espiritualidade e política.
Dos escândalos ligados à pedofilia aos financeiros, da diminuição dos fiéis à redução do clero e dos religiosos, da dificuldade em dialogar com o mundo contemporâneo à fuga dos jovens dos percursos de fé, do sempre discutido papel das mulheres à falta de responsabilização do laicato, a Igreja Católica - especialmente no continente europeu - vive um período de crise. Há tempo, vários observadores e líderes de comunidade – entre os quais o Papa Francisco - registram uma mudança de civilização em curso que, no espaço de algumas décadas, tornou o catolicismo um elemento não mais enraizado na sociedade como no passado recente.
Depois do grande entusiasmo gerado pelo Concílio Vaticano II, várias problemáticas eclesiais, sociais e culturais transformaram as expectativas daquela época em desânimos mais ou menos explícitos. É claro que nada é dado como certo na história da humanidade, nem mesmo a existência da Igreja, mas a pandemia tem despertado uma reflexão sobre a relevância, ou melhor, a irrelevância do catolicismo na sociedade atual a partir da consciência dos passagem de um cristianismo de massa a outro baseado em caminhos de fé e escolhas pessoais.
“La Chiesa brucia. Crisi e futuro del cristianesimo”
[A Igreja queima. Crise e futuro do cristianismo,
em tradução livre] (Ed. Laterza), escrito por Andrea Riccardi
Andrea Riccardi - fundador da Comunidade de Santo Egídio e historiador da Igreja - em seu recente livro intitulado La Chiesa brucia. Crisi e futuro del cristianesimo (A Igreja queima. Crise e futuro do cristianismo, em tradução livre, Laterza, 2021), reflete sobre a questão da crise do catolicismo a partir do incêndio que devastou a igreja de Notre-Dame em Paris. De fato, aquela imagem chocante da catedral em chamas representa concretamente um cristianismo que se extingue depois de ter-se consumido.
Na realidade, para Riccardi, nem tudo está perdido, pois a Igreja conserva em cada época uma extraordinária capacidade de adaptação e, portanto, de mudar, para que a fé possa ser transmitida às gerações futuras. Como, em alguns anos, Notre-Dame provavelmente retornará ao seu esplendor, o catolicismo também poderá se renovar com o objetivo de pronunciar, mais uma vez, palavras geradoras para a humanidade do futuro.
É claro que nossas comunidades não pensam mais em um substrato cultural de inspiração cristã. Desde os anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, a Igreja está ciente desta situação e nas décadas seguintes - de João XXIII a Paulo VI, de João Paulo II a Francisco – orientou sua presença no mundo a partir da necessidade de evangelizar pela primeira vez, ou novamente, os povos. Por exemplo, no caso de Bergoglio, Riccardi enfatiza que se trata de um pontificado caracterizado por uma "revolução cultural rumo a uma Igreja missionária, fora de estruturas e hábitos, não para agregar alguns fiéis à comunidade, mas para concretizar uma Igreja de povo"(p. 93).
Apesar de escolhas pastorais desse tipo, assistimos a uma diminuição das vocações, ao despedaçamento de estruturas e obras geridas pelas dioceses ou pelas várias famílias religiosas, a uma missão cada vez menos incisiva. Isso significa que muito mudou em relação ao passado devido à erosão da figura masculina e paterna, e do final do valor simbólico das instituições a que devemos somar as consequências da globalização e do protesto estudantil iniciado em 1968.
Tais fatores, nos fatos, desmantelaram a linguagem e as modalidade de boa parte da proposta católica, que precisa ser repensada no cenário atual onde, para citar apenas um exemplo, as dificuldades familiares "são enfrentadas com a ajuda do psicólogo e cada vez menos com a ajuda do sacerdote, o que não é em si uma escolha antieclesial, mas uma revelação de autonomia” (p. 111). Deve ser lembrado que até agora as várias tentativas destinadas a realizar um "Cristianismo na história" certamente abriram muitos caminhos para o homem de hoje alcançar a fé, mas não responderam à crise em curso que foi enriquecida pela relativização do papado, iniciada com a renúncia de Bento XVI.
Na opinião de Riccardi, a eleição de Bergoglio gerou uma espécie de efeito surpresa capaz, pelo menos no início, de fazer esquecer as dificuldades. Francisco centrou-se nos jovens, na proteção do meio ambiente, nos migrantes, nas famílias, nas periferias existenciais, no projeto de uma nova economia e, sobretudo, na recuperação do impulso missionário de cada batizado. Assim, argumenta o autor, o papa apresenta a ideia de um povo “que sai das estruturas e instituições enquanto comunica o Evangelho com renovada paixão. Uma posição não de rendição, mas de extroversão comunicativa” (p. 163). Um povo, na opinião do fundador da Comunidade de Santo Egídio, que deve continuar - ou voltar - a se edificar a partir da expressão mais clara do cristianismo, ou seja, a gratuidade. Esta surge com clareza na Eucaristia e constitui o perfil autêntico do catolicismo, capaz de o tornar original e significativo em cada época histórica.
Portanto, não se trata de imaginar de cima um projeto de reforma da Igreja dirigido exclusivamente pelo pontífice, ou por seu círculo, mas de um processo que visa repensar a presença no mundo da paróquia, das associações católicas, dos cristãos na política e na sociedade. Tudo isso requer “uma gestão menos verticista, capaz de suscitar iniciativas comunitárias, carismáticas, laicais e pessoais” (p. 207). Na situação atual isso também será possível pelo abandono de toda cultura do declínio e do embate em favor do desenvolvimento de uma colaboração - e de uma verdadeira e própria integração - entre homens, mulheres, culturas e diferentes sensibilidades de nosso tempo.
Para Riccardi, uma Igreja assim repensada é também “uma aliada da Europa, porque acredita que esta, apesar das suas limitações históricas e atuais, seja um valor para o mundo. Não porque as raízes históricas do continente sejam cristãs: seria um título de legitimidade que remonta ao passado [...] Mas a Europa é uma oportunidade única para a Igreja e para o mundo” (p. 218).
O livro de Andrea Riccardi, além de uma análise sobre a situação da Igreja Católica no Ocidente, é principalmente uma proposta para o futuro do Cristianismo. Esta última é apresentada no texto de forma ampla e parece convergir em alguns pontos que há tempo são importantes para o fundador da Comunidade de Santo Egídio. Trata-se de um cristianismo que deve recuperar a capacidade: lutar na história a partir de uma empatia por tudo o que diz respeito ao homem; anunciar a mensagem de salvação sem esconder as próprias fragilidades; gerar coesão na sociedade. Por esses motivos, o volume de Riccardi é um meio importante para quem deseja levar a sério um raciocínio voltado para a promoção de novas formas de cristianismo em nossas comunidades.
De 04 de junho a 10 de dezembro de 2021, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU realiza o XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição, que tem como objetivo debater transdisciplinarmente desafios e possibilidades para o cristianismo em meio às grandes transformações que caracterizam a sociedade e a cultura atual, no contexto da confluência de diversas crises de um mundo em transição.
XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição
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Tudo pode mudar. Resenha do livro “A Igreja queima? Crise e futuro do Cristianismo”, de Andrea Riccardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU