09 Mai 2020
O título, decididamente provocador, atraíra a minha atenção na livraria, quando foi lançado. Depois de ler, na página 5, que o ensaio era dedicado pelo autor a amigos crentes e não crentes que o ajudaram a se interrogar sem medo para repensar e purificar a sua fé, sempre distorcida quando se tenta “traduzi-la nas nossas pobres palavras humanas”, eu não tive dúvidas de comprá-lo, com a intenção de lê-lo o quanto antes.
O comentário é de Andrea Lebra, publicado por Settimana News, 07-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Tendo ficado por vários meses no fim da fila de outros livros do meu (desordenado) escritório, somente nestes dias de isolamento domiciliar forçado pela pandemia é que me foi possível trazê-lo à luz e lê-lo com grande interesse.
Estou falando do livro “Eresie attuali del cattolicesimo” [Heresias atuais do catolicismo], publicado na Espanha em 2013 e publicado no ano passado em italiano pelas Edições Dehoniane de Bolonha, de José Ignacio González Faus, jesuíta e professor emérito de Teologia Sistemática na Faculdade de Teologia da Catalunha (Barcelona) e na Universidade Centro-Americana de El Salvador, autor, pela EDB (primeira edição em 1995, edição econômica de 2012), de “I poveri, vicari di Cristo” [Os pobres, vigários de Cristo], uma rica e iluminadora antologia de textos da tradição cristã sobre a dignidade dos pobres na Igreja.
As “heresias” levadas em consideração são aquelas que a tradição teológica considera como “materiais” ou “inconscientes”, distinguindo-as das formais que se traduzem em negações conscientes e deliberadas de aspectos fundamentais da mensagem cristã.
O livro – escreve o autor na Introdução – “não pretende acusar diretamente ninguém de heresia” (p. 13). Pelo contrário, ele quer ser uma “confissão”, e as heresias a serem desmontadas são aquelas que ele, teólogo, descobriu em si mesmo, tendo tido “a imensa sorte de estar muito em contato com as fontes cristãs” e de dialogar com os seus irmãos na fé.
“Acho que essa imensa sorte me obriga a tentar prestar um serviço aos meus irmãos de hoje que não tiveram tanta sorte e que muitas e muitas vezes discutem sobre a própria fé” (p. 15).
São dez as heresias inconscientes que o teólogo espanhol entrevê no catolicismo contemporâneo e que “podem destruir a identidade cristã” (p. 16): todas – parece-me – bastante difundidas, com modalidades talvez nem tão inconscientes nas nossas comunidades e na mentalidade dos fiéis.
A fé cristã se fundamenta em uma afirmação paradoxal: Deus, que ninguém jamais viu (Jo 1,18), humanizou-se na história, na vida e nas ações daquele judeu que era Jesus de Nazaré, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, cuja existência na Palestina do primeiro século pode ser afirmada com certeza graças aos dados abundantes e seguros que possuímos e que se referem àquilo que ele fez e ensinou.
No entanto, é difundida a visão que concebe apenas a divindade de Jesus às custas da sua humanidade, que carrega os sinais do sofrimento, dos limites e da morte, com o consequente despojamento – como atesta a Carta aos Filipenses 2,7 – da sua condição divina (p. 26).
É uma concepção que pode assumir a forma de um monofisismo latente (p. 18): em Jesus, a natureza humana é absorvida na natureza divina até desaparecer nela, como uma gota de vinho que cai na imensidão do oceano (p. 18, nota 3).
Mas essa visão também poderia assumir a forma de um apolarismo latente: Jesus foi, sim, uma pessoa de carne e osso, como qualquer outro ser humano, mas não tinha uma estrutura psicológica humana como a nossa, sujeita, portanto, à fragilidade, à angústia, ao medo ou ao senso de fracasso (p. 19).
Como Inácio de Antioquia recordava aos cristãos da Igreja de Esmirna no século II, quem não crê que Jesus veio na carne e foi condenado à morte “não se importa com a caridade, nem com a viúva, nem com o órfão, nem com o oprimido, nem com que está preso ou livre, nem com quem tem fome ou sede”.
“A heresia anterior – escreve José Ignacio González Faus – nos leva, portanto, quase automaticamente, a esta outra”: negar a eminente dignidade dos pobres na Igreja (pp. 33-34).
A Igreja é fiel a Cristo na medida em que é fiel aos pobres (p. 34). De fato, os pobres, como disse Paulo VI aos camponeses colombianos no dia 23 de agosto de 1968 (p. 41), são um sinal, uma imagem, um mistério da presença de Cristo. Neles a tradição da Igreja – ainda nas palavras de Paulo VI – reconhece o sacramento de Cristo em perfeita correspondência analógica e mística com o sacramento da eucaristia.
Mas tem mais. O título clássico de “vigário de Cristo”, que Inocêncio III reservou ao papa no século XII, era atribuído anteriormente aos pobres. Testemunha disso é uma carta dirigida a Ralph de Warneville, bispo de Liseux, por Pierre de Blois, estadista e teólogo, que foi chanceler do bispo de Canterbury e viveu no século XII entre a França e a Inglaterra: “O pobre é o vigário de Cristo. E assim como o Senhor se condói de ver-se rejeitado e desprezado no pobre, assim também o alegra o fato de ser acolhido no pobre” (p. 41, nota 7).
É uma mensagem tão clara, eloquente e exigente que nenhuma hermenêutica eclesial pode redimensionar o seu porte.
Pensar que é Deus quem manda o sofrimento e a morte porque nos quer bem é uma blasfêmia. A ideia de que a cruz de Cristo é a satisfação infinita oferecida a Deus para aplacar a sua cólera causada pelo pecado dos humanos é algo monstruoso (p. 53).
Devemos ser gratos à investigação crítica neotestamentária por ter esclarecido que a morte de Jesus não é uma necessidade metafísica da justiça de Deus, mas sim a consequência das suas escolhas de vida (p. 69).
Jesus eliminou a face numinosa tremenda e violenta de Deus e trouxe à tona plenamente a exclusiva face de amor, de benevolência e de misericórdia (p. 53). A justiça do Deus revelado por Jesus de Nazaré é a justiça do amor, não a justiça do deus impiedoso. Deus não quer a morte do iníquo; ele quer que ele viva em plenitude e se converta (p. 57).
“A dor que vale é aquela que é fruto de um amor tão grande que não se deixa intimidar, nem recua diante das consequências da sua escolha de amar de maneira radical”, como fez Jesus (p. 66).
Uma das distorções mais frequentes da eucaristia consiste em separar completamente a matéria (pão e vinho) do gesto (partilha). Partir e distribuir o pão significa compartilhar as necessidades dos homens e das mulheres (das quais o pão é um símbolo primário).
Passar a taça entre irmãos e irmãs na mesma fé é comungar reciprocamente a alegria (da qual o vinho é outro símbolo humano ancestral) de ser filhos e filhas do Pai celeste.
União juntos, partilha das necessidades e comunhão da alegria são os gestos da solidariedade suprema. “E, ao realizar esses gestos, nos é dada a garantia de uma presença real do Ressuscitado na nossa história obscura” (p. 78).
“A função da eucaristia é eucaristizar a Igreja, para que esta, por sua vez, seja capaz de eucaristizar do mundo” (p. 82), levando todo fiel a se fazer pão partido e partilhado para os outros e, portanto, também a se comprometer com um mundo mais justo e fraterno (p. 79).
“A fé cristã é deturpada quando é transformada em uma doutrina teórica ou em uma religião ritual” (p. 93) e degenera em uma gnose (p. 95). O seu alimento mais seguro é o modo como vivemos a nossa vida para contribuir para transformar o mundo de acordo com as coordenadas do Reino de Deus (p. 99 e 101).
A dissociação, que se constata em muitos cristãos, entre a fé que professam e a sua vida cotidiana, deve ser contada entre os erros mais graves do nosso tempo (p. 94). A fé nunca pode ser uma questão apenas mental: ela requer ser transformada em testemunho de vida.
“Nem todo aquele que me diz: ‘Senhor! Senhor!’, entrará no Reino dos Céus, mas só aquele que põe em prática a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mt 7,21). Como nos recorda o número 19 da Gaudium et spes, até mesmo na gênese do ateísmo os fiéis podem contribuir muito, na medida em que apresentam falsas imagens de Deus por causa dos defeitos e das incoerências da sua vida religiosa, moral e social (pp. 94-95).
É impossível servir a Deus e aos dinheiro: é preciso escolher entre um ou outro (Lc 16,13). A ganância do dinheiro é idolatria (Col 3,5) e a raiz de todos os males (1Tm 6,10). Segue-se daí que o dinheiro, adversário de Deus, é um ídolo ao qual, com muita frequência, se presta um culto sacrílego (p. 122).
A distância entre o Evangelho e o catolicismo de hoje em tudo o que se refere ao tema dos ricos e dos pobres não evidencia apenas um escândalo (como aquele monstruoso da pedofilia), mas denota também “uma visão teológica que pode deturpar nada menos do que a identidade do Deus bíblico”.
Deus é o Deus dos pobres, ele é conhecido não em nível especulativo, mas praticando a justiça e a solidariedade. Como se lê no livro de Judite 9,11, ele é o Deus dos humildes, o socorro dos pequenos, o defensor dos fracos, o protetor dos rejeitados, o salvador dos desesperados (p. 119).
A Igreja não é uma realidade na qual o cristão crê, assim como crê “em” Deus, “em” Jesus Cristo e “no” Espírito Santo. A Igreja não é Deus, nem Jesus Cristo, nem o Espírito Santo: ela é uma realidade que o cristão crê, isto é, uma realidade da qual aceita a existência (p. 141).
De fato, na Igreja, como acontece em uma grande família, somos acolhidos e aprendemos a viver como fiéis e discípulos do Senhor Jesus, que, graças ao Espírito, nos revelou o rosto de Deus. A Igreja não é um ídolo a ser adorado, mas sim uma realidade à qual o cristão reza, para que seja sempre testemunho vivo da verdade e da liberdade (p. 144).
Nada de divinização ou idolatria da Igreja (p. 150). Nada de tentar colocá-la acima da Palavra de Deus (p. 151), a cujo serviço ela deve se colocar com humildade e coragem.
No Evangelho de Mateus, lemos: “Quanto a vós, não vos façais chamar de ‘rabi’, pois um só é vosso Mestre e todos vós sóis irmãos. Não chameis a ninguém na terra de ‘pai’, pois um só é vosso Pai, aquele que está nos céus. Não deixeis que vos chamem de ‘guia’, pois um só é o vosso Guia, o Cristo. Pelo contrário, o maior dentre vós deve ser aquele que vos serve” (Mt 23,8-11).
Apesar da clareza dessa página do Evangelho, acostumamo-nos tranquilamente a chamar o papa de “santo padre” ou de “santidade”. E o único título, digno do sucessor de Pedro, que é o de “servo dos servos de Deus”, embora relatado no Anuário Pontifício, nunca é usado (p. 165).
É possível que, amanhã, em muitas mentalidades, domine uma espécie de “monofisismo eclesiológico” (p. 170), que gostaria de atribuir à figura do papa uma sacralidade que o torne estranho à dimensão humana (p. 173).
O Novo Testamento e a tradição eclesial primitiva absolutamente não eram clericais. Por que nós deveríamos sê-lo? (p. 191)
Para contribuir para não ser assim, o autor cita alguns parágrafos do decreto Presbyterorum ordinis sobre o ministério e a vida dos presbíteros. E evidencia algumas das tarefas extremamente importantes que lhes são confiadas, que, se traduzidas em estilos de vida e escolhas pastorais, poderiam constituir um verdadeiro antídoto ao clericalismo.
Aqui estão eles listados: reunir a família de Deus como família viva e unida, e conduzi-la ao Pai por meio de Cristo no Espírito Santo; ter com todos relações marcadas na bondade mais delicada; colocar-se a serviço de todos, mas de modo especial dos pobres e dos mais fracos; cuidar da formação da comunidade cristã; estar cientes da pouca utilidade até das mais belas cerimônias, se estas não estiverem voltadas a educar homens e mulheres para a maturidade cristã; ouvir a opinião dos leigos, aproveitando a sua experiência e competência nos vários campos da atividade humana; cuidar da própria preparação teológica e da própria cultura, de modo a estar em condições de sustentar com bons resultados o diálogo com os homens e as mulheres do seu tempo (pp. 205-206).
A última “heresia” que, de alguma forma, resume todas as outras, é constituída pelo esquecimento do Espírito Santo, que caracterizou a tradição teológica ocidental (p. 30), mas que afeta – observa o teólogo espanhol – “muitíssimos cristãos para os quais seria muito válida a frase dos Atos dos Apóstolos (19,2): ‘Nem sequer ouvimos dizer que existe Espírito Santo’” (p. 207).
O Espírito é o estilo de Deus: unidade na pluralidade, liberdade na obediência, leveza na gravidade, presença na ausência, profundidade na interioridade (pp. 209-210).
Ele sopra não apenas onde quer, mas também como quer. “Talvez seja por isso que uma grande parte do catolicismo de hoje prefira a calmaria com a qual não se avança ou as portas fechadas pelo medo, como fizeram os apóstolos” (p. 208).
“O Espírito ensina a viver teologicamente no seguimento criativo de Jesus” para tornar presente e fazer crescer o Reino de Deus no mundo (p. 214).
Nota:
José Ignacio González Faus. Eresie attuali del cattolicesimo. Coleção “Lapislazzuli”. Bolonha: EDB, 2019, 244 páginas.
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Heresias do catolicismo atual - Instituto Humanitas Unisinos - IHU