11 Agosto 2021
As alterações podem reduzir ainda mais a participação da sociedade civil no conselho e marginalizar ambientalistas, alertam organizações socioambientais, que pressionam por medida cautelar no STF.
A reportagem é de Duda Menegassi, publicada por ((o))eco, 09-08-2021.
Desde que foi alterado à base da canetada presidencial, em maio de 2019, o Conselho Nacional do Meio Ambiente – ou simplesmente, Conama – se reuniu apenas cinco vezes, e, em uma delas, aprovou a polêmica alteração nas resoluções sobre Áreas de Preservação Permanente (APP), posteriormente considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Nesta terça-feira, dia 10, está marcada uma nova reunião do conselho, não apenas a primeira do ano, mas também a primeira desde que o julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade da nova composição e funcionamento do conselho foi interrompido por um pedido de vista do ministro Kassio Nunes Marques. Na pauta do Conama para esta reunião está uma proposta do governo federal de mudança na resolução nº 292/2002, que disciplina o cadastramento das entidades ambientalistas. Organizações alertam que, se aprovadas, as mudanças podem diminuir ainda mais a participação da sociedade civil e a marginalização das entidades ambientalistas.
Uma das principais mudanças será o aumento da burocracia no Cadastro Nacional das Entidades Ambientalistas (CNEA). Dentre as novas exigências, está a necessidade de uma “declaração de Corpo Técnico com experiência em pelo menos uma das seguintes áreas: Biodiversidade, Áreas Protegidas, Florestas, Educação Ambiental, Controle e Qualidade Ambiental e Gestão Territorial”, além da “comprovação por meio de atestados técnicos de experiência em projetos e pesquisas socioambientais em pelo menos um bioma”.
Além disso, o cadastro, que antes era vitalício, passará a ser válido por apenas um ano e obrigará as entidades a renovarem seu cadastro anualmente. A lista do CNEA é, inclusive, a referência para a participação de entidades no Conama – para eleição, no modelo anterior, e para o sorteio, no novo modelo instituído por Bolsonaro. Atualmente, há 673 entidades cadastradas.
“A partir de agora as organizações vão precisar a cada ano requerer o seu registro, renovar o seu registro com todos esses documentos, comprovantes de pesquisa, atestado de corpo técnico… é um verdadeiro fardo burocrático. E os requisitos para que as entidades ambientalistas possam se registrar no Cadastro e ela também alça o cadastro a um status que antes não havia, que é de ser um registro que atesta a existência das organizações ambientalistas no país. Ao se aumentar a carga burocrática, aquelas organizações que não têm uma estrutura administrativa muito forte, organizações menores, de pequeno porte, elas podem não conseguir cumprir com essa carga burocrática e com isso serem excluídas do cadastro. Além disso, como tem critérios muito subjetivos como ‘corpo técnico com experiência’, mas não se explica o que é esse corpo técnico, nem se define o que seria essa experiência, então existe uma margem para que, no caso a caso, algumas organizações sejam excluídas. Isso é mais preocupante porque ao ser excluída, como o cadastro passaria a ter uma natureza de atestar a existência da organização, as organizações que não estiverem no cadastro podem ser alvo de discursos e práticas anti-democráticas e hostilização. Isso é o mais grave”, alerta Rafael Giovanelli, especialista em Políticas Públicas do WWF-Brasil.
De acordo com o advogado, ao estabelecer pré-requisitos às entidades ambientalistas tais quais o desenvolvimento de pesquisa de campo, organizações que atuam em frentes como mobilização social, educação e divulgação de informação também podem ser excluídas do CNEA.
“Hoje já há um déficit de representatividade no Conama e ao poder excluir as organizações que participam da única porta de entrada que ainda existe para sociedade civil, essa medida restringe ainda mais a participação social no conselho”, analisa o advogado do WWF-Brasil.
“Isso viola a liberdade de associação prevista na Constituição e aumenta a interferência estatal no funcionamento das organizações, o que também é uma violação. Além disso, viola o princípio da pessoalidade, porque aumenta a burocracia nas relações do estado com associações do terceiro setor com um grau de subjetividade muito grande, e isso pode dar margem para que eventualmente organizações que não satisfaçam ou sejam muito críticas ao governo, sejam excluídas do cadastro e sofram hostilidade”, acrescenta Rafael.
“Atestado técnico, é como se fosse uma empresa. A pessoa que escreveu isso acha que está fazendo uma licitação. Não faz nem sentido. A variedade de organizações ambientalistas é tão grande, os temas são tão vastos. É de uma miopia que só deixa claro o despreparo de não entender o que é uma organização ambientalistas e a vontade de atrapalhar, além de prejudicar a qualidade da democracia”, avalia Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama.
A especialista em políticas públicas concorda com a avaliação de que tornar o CNEA um registro oficial das entidades ambientalistas é uma violação constitucional ao direito de livre associação, e aponta que o novo texto da resolução não deixa claro para que seria usado o cadastro com essas características.
Para ela, a prioridade é clara: recompor a composição e o funcionamento do Conama. “Esse governo anulou a maioria dos colegiados que têm participação da sociedade civil, criados por decreto, e naqueles que ele não teve força para anular, que é o caso do Conama, criado por lei, eles vêm atrapalhando cada vez mais. Já está muito ruim a forma como está hoje, mas eles estão piorando”, explica Suely. “Você tem um quadro muito complicado desde abril de 2019, quando foi alterado o conselho. O adequado seria suspender as decisões [do Conama] até a decisão do Supremo, mas o ideal mesmo seria uma decisão logo desse julgamento do Supremo. Porque a cada votação do Conama vão ocorrer retrocessos com essa nova composição. O Conama foi de uma arena sólida com decisões robustas, e passou a ser um local para passar boiada. É isso que o governo Bolsonaro fez com o Conama”, acrescenta Suely.
Em março deste ano, o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº 623) no Supremo Tribunal Federal (STF) caminhava para confirmar a inconstitucionalidade do decreto que reestruturou o Conama, com quatro votos favoráveis computados na sessão virtual, quando o ministro Kassio Nunes Marques solicitou um pedido de vista. Com isso, paralisou o processo. A princípio, de acordo com o regimento interno do STF, o ministro teria um prazo total de 60 dias para devolver o processo ao plenário. Ou seja, em maio o julgamento deveria ter sido retomado. Entretanto, Nunes ainda não deu nenhum retorno e como não há instância acima do Supremo para cobrá-lo ou pressioná-lo, a ação segue paralisada.
Os votos contra as mudanças no Conama foram de Rosa Weber, relatora da ADPF, seguida pelos ministros Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Marco Aurélio.
A reestruturação do Conama estabelecida pelo Decreto presidencial nº 9.806/2019 reduziu de 93 para 23 os assentos com direito a voto. Entre as mudanças, o decreto diminuiu as cadeiras de entidades ambientalistas de 11 para 4, com redução de mandato das entidades de 2 anos para apenas 1 e substituição do método de escolha, que antes era eleição, para sorteio. Weber ressaltou que as novas regras “obstaculizam, quando não impedem, as reais oportunidades de participação social na arena decisória ambiental, ocasionando um déficit democrático, procedimental e qualitativo, irrecuperável”.
Além da reunião desta terça-feira (10), o Ministério do Meio Ambiente divulgou a data de outras quatro reuniões plenárias do Conama, a serem realizadas nos dias 23 de novembro de 2021, e 22 de fevereiro, 24 de maio e 09 de agosto de 2022.
Em face da reunião prevista, seis entidades socioambientais que acompanham o processo sobre o Conama como amicus curiae [instituição apta a fornecer subsídios às decisões dos tribunais] enviaram na última sexta-feira (06) uma manifestação diretamente para a ministra Rosa Weber pela suspensão cautelar do decreto nº 9.806/2019 em face aos novos fatos, para impedir que a plenária ocorra com a atual composição e funcionamento do colegiado, além de evitar que, enquanto o processo segue parado de forma indefinida devido ao pedido de vista de Nunes Marques, um Conama considerado ilegítimo continue pautando mudanças no arcabouço legal.
“A despeito desse quadro, que evidencia, a toda prova, a plausibilidade da tese da inconstitucionalidade da atual composição do Conama, por violação aos preceitos democráticos, à participação social e aos direitos procedimentais ambientais, apresentamos o seguinte fato novo: foi agendada a 136ª Reunião Ordinária do Conama para o dia 10 de agosto de 2021, em cuja “ordem do dia” inclui-se pauta deliberativa com potencial de cercear, ainda mais, o espaço cívico socioambiental”, alerta o texto da petição, assinada pela WWF-Brasil, o Instituto Socioambiental (ISA), a Transparência Internacional – Brasil, Observatório do Clima, Rede de Organizações Não Governamentais da Mata Atlântica (RMA) e a Rede Conectas Direitos Humanos.
As organizações reforçam a ilegitimidade da atual composição do colegiado e os efeitos da plenária prevista para a reunião. “Agora, a partir de uma composição já absolutamente deturpada e inconstitucional, o Conama propõe alterar as regras de cadastramento e recadastramento de Entidades Ambientalistas no CNEA, intensificando as violações constitucionais já perpetradas pelo Decreto nº 9.806/2019”, continua a petição, que afirma que as alterações “tendem a tornar o processo muito mais burocrático e subjetivo e tendem a dificultar ainda mais o acesso da sociedade civil ao Conama”.
Caso as alterações propostas para a resolução nº 292/2002 sejam aprovadas, a participação das entidades no Conama pode ser comprometida, mesmo que a composição anterior seja recuperada com a anulação do decreto pelo Supremo. Isso porque o CNEA é a base de dados para seleção das entidades habilitadas a integrar o colegiado (e, no modelo anterior, de eleição, aptas ao voto). “Com essa alteração [na resolução 292/2002] ainda que o Conselho se torne mais participativo, se o cadastro continuar sendo a porta de entrada, ela será uma porta de entrada muito menor. Vai reduzir o número de organizações que estarão ali no cadastro e quem não estiver ali não poderá participar do Conama, mesmo que futuramente ele volte a ter uma composição democrática maior”, complementa Rafael Giovanelli, do WWF-Brasil.
“A gente espera que a ministra defira a medida cautelar, que foi solicitada inicialmente pelo Ministério Público Federal quando foi ajuizada a ADPF à luz dos novos fatos. É importantíssimo que o julgamento, parado desde março deste ano, seja concluído. E é importante até pro Supremo mostrar que ele responde às demandas sociais no tempo necessário para que elas possam ser eficientes”, conclui o especialista jurídico do WWF-Brasil.
O advogado reforça ainda que além da manifestação para o STF sobre a medida cautelar, as organizações também alertaram o próprio presidente do Conama, o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, para que tire a resolução da pauta da reunião. “E se, mesmo assim, ela for aprovada, nós vamos tomar todas as medidas cabíveis para evitar essa possível nova resolução porque ela é muito grave do ponto de vista democrático. Essa estratégia de hostilizar a sociedade civil por meio de regramentos burocráticos e ditados por instituições ilegítimas são características de regimes autocráticos e a gente espera que não seja a intenção do Conama”, completa Rafael.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Mais burocracia e menos participação, Conama mira cadastro de entidades ambientalistas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU