15 Janeiro 2015
A injustiça ambiental tem cara. A de Antônio Filho, morador do bairro de Piquiá de Baixo, em Açailândia, Maranhão, destruído a partir da instalação de indústrias siderúrgicas ao redor das casas da comunidade. Ou a de Patrícia Generoso, de Conceição do Mato Dentro, em Minas Gerais, por onde passa um mineroduto de 525 quilômetros. Ou as de tantos outros atingidos por projetos que opõem desenvolvimento, justiça ambiental e saúde. Essas caras foram apresentadas no 2º Simpósio Brasileiro de Saúde e Ambiente (Sibsa), organizado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), em outubro, em Belo Horizonte. O encontro teve como marca a articulação da academia com os movimentos sociais, reconhecendo os envolvidos em conflitos territoriais não como objetos de pesquisa, mas como sujeitos de resistência.
A reportagem é de Bruno Dominguez, publicada na edição nº 148 da revista Radis, 14-01-2015.
Da abertura do simpósio à aprovação da Carta de Belo Horizonte (ver box na pág. 17), a interação entre ciência e saber popular foi destaque. O presidente do 2º Sibsa, Hermano Castro, diretor da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), ressaltou que essa articulação é fundamental para se ter “um só corpo na defesa intransigente da vida, especialmente em um país em que o capital avança sobre a natureza, os bens naturais são precificados e retirados das populações e a sustentabilidade dos ecossistemas sucumbe”.
Inovação e necessidade
Os movimentos sociais não participaram do evento somente como convidados falando em mesas-redondas, mas também na organização e na comissão científica. “É uma inovação, um sonho e uma necessidade para entendermos integralmente o processo de desenvolvimento social com as populações que são sujeitos dele”, ressaltou Hermano.
O diretor da Ensp apontou as implicações do atual modelo para a saúde: interfere na determinação saúde/doença, levando a adoecimento e morte, especialmente de grupos mais vulneráveis — indígenas, afrodescendentes, comunidades tradicionais, camponeses e camponesas, trabalhadores e trabalhadoras de baixa renda, moradores e moradoras das zonas de sacrifício no campo, nas florestas, nas águas e nas cidades.
O presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha, reforçou que saúde e ambiente são temas simbióticos. “Não se pode pensar saúde e ambiente como questões desconectadas, pois ambos sofrem as consequências perversas do modelo de desenvolvimento e do processo de organização da produção e do trabalho”, disse.
Daí surge a necessidade de se colocar a saúde no centro do modelo, tarefa que a Fiocruz tem levado à frente, como ele apontou, especialmente nos debates da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20 (Radis 118 e 121), e na formulação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (Radis 113, 121, 127 e 147). “Os indicadores da saúde qualificam a medição de um desenvolvimento sustentável e trazem no seu bojo as noções de direito e de políticas sociais”.
O grito da justiça ambiental
Sobre a desterritorialização gerada pelos casos de injustiça ambiental, falou o filósofo francês Jean Pierre Leroy, integrante da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA) e assessor da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), na conferência Direitos, justiça ambiental e políticas públicas. Nas palavras dele, justiça ambiental deve ser encarada mais do que como uma definição conceitual: “É um grito”.
Trata-se da afirmação de algo que interpela toda a sociedade: não se pode pensar um futuro sem que o meio ambiente seja parte da vida. “É um grito, uma luta travada para que ninguém se encaixe na condição de atingido, partindo dos que não aceitam ser eliminados e silenciados pelo injusto modelo de desenvolvimento do capitalismo. É um clamor daqueles que sabem que seus modos de viver e de se relacionar com o ambiente não são parte do problema, mas da solução”.
Jean Pierre tratou os territórios como espaços das tradições, onde se pode encontrar esperança para um futuro sustentável, dada a ligação profunda dos povos com a natureza. As ameaças são a agricultura industrial, os latifúndios monocultores e os grandes empreendimentos, que avançam pelo país, gerando desterritorialização e desapropriação, com respaldo governamental, em nome do crescimento econômico.
Na reflexão do filósofo, a desterritorialização não é apenas física, mas também simbólica. “Quando povos são expulsos de seus territórios, eles perdem mais do que a posse da terra; perdem o que têm de mais profundo: suas raízes”, disse, indicando como exemplo a destruição de uma cachoeira sagrada para os Munduruku com vistas a se construir uma barragem no rio Tapajós.
“Quando se fala em desterritorialização de povos tradicionais, alguns dizem: ‘são apenas dez famílias atingidas aqui e dez ali; o que representam diante do tamanho das nossas cidades?’ Porém, ao cortar raízes, corta-se junto a possibilidade de continuar um projeto de vida de integração profunda com a natureza”, argumentou. Essas vidas perdem o sentido: passam a ser “vidas em suspenso” ou “vidas não reconhecidas”, na definição do pesquisador.
‘Neoextrativismo’
Jean Pierre lamentou que o extrativismo seja a sina do Brasil. Ele classificou o período atual de neoextrativista, traduzido como o mesmo de outrora com a diferença de ter sido apropriado pelo Estado com o objetivo de servir ao capital. “Um Congresso dominado pelo agronegócio quer concentrar o poder de decidir onde indígenas podem ficar”, observou.
O filósofo fez ressalvas: essas práticas não são de um governo ou de outro, e sim práticas de Estado, inseridas em um contexto internacional. “O capital financeiro não conhece fronteiras e não está submetido a nenhum tipo de controle democrático”, avaliou, defendendo um projeto com saúde ambiental em dimensão global.
O desafio, indicou, é que esse projeto seja assumido pelos cidadãos das cidades, que muitas vezes perdem de vista que suas vidas têm ligação com o que acontece no campo. Um projeto não dos bens comuns, mas dos comuns, que escapa das noções de lucro, bens e mercado e prioriza a sintonia da população com a natureza.O que emperra a transformação é o que o médico equatoriano Jaime Breilh chamou de “economia da morte”, na conferência A função social da ciência, ecologia de saberes e outras experiências de produção compartilhada de conhecimentos. A economia da morte baseia-se, segundo ele, na convergência de capitais para fomentar o uso produtivista das tecnologias, na desapropriação e nos processos de pilhagem, e no que a jornalista canadense Naomi Klein classificou como shock: o aproveitamento de crises e eventos adversos, como o furacão Katrina, para fazer reformas impopulares.
Para além dos agrotóxicos e do uso insalubre da nanotecnologia, Breilh indicou que novas tecnologias de comunicação e informação geram novas toxicidades: “A comunicação contribui para modificar o espaço social onde se operam os impactos do sistema, com toxicidade cibernética, que leva a conflitos sobre identidade, subjetividade, privacidade, sociabilidade e desenvolvimento neurocomportamental”. Assim, defendeu que as iniquidades não se dão somente pelos modos de produção, mas por uma organização material da vida calcada na acumulação, que gera solidão para perpetuar o consumismo.
Construção de resistências
Pesquisador do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador (Cesteh), da Ensp, e coordenador do Mapa da Injustiça Ambiental, Marcelo Firpo explicou que os conflitos ambientais são expressão da disputa por territórios e diferentes cosmovisões de economia, trabalho, natureza, vida e saúde. Eles envolvem comunidades atingidas, movimentos sociais, organizações solidárias, os produtores dessas violências e o Estado — que, segundo ele, funciona como elemento chave na geração das injustiças. Relatora da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhesca), Cristiane Faustino apontou que o poder público opera criando consenso social da importância de projetos de desenvolvimento.
“Os grandes empreendimentos demandam territórios, biodiversidade e água, mas não ocupam territórios vazios. Os territórios são habitados por pessoas de carne, osso e sentimento. E a vida ali instituída tem relação com o que no lugar existe”, observou. O mais violento, na avaliação dela, é justamente o poder de decidir com quem fica a posse de um território, por alguns poucos sujeitos, com maior poder político e econômico, acostumados a ditar as regras do jogo. “Os conflitos não estão descolados da estrutura patriarcal, racista, adultocêntrica, sexista, heteronormativa”, enumerou.
Firpo reforçou que os conflitos têm relação direta com o modelo de desenvolvimento hegemônico, baseado em poderio de transnacionais, mercantilização da vida e da natureza, produtivismo e consumismo, o que alguns chamam de crescimentismo. Ele apontou, no entanto, um aspecto positivo: a construção de resistências e alternativas. “Os conflitos ambientais têm potencial dinâmico, revelador, emancipatório, na medida em que permitem a emergência e a articulação para o enfrentamento desse modelo hegemônico”. Cristiane fez importante ressalva: “Mesmo quando não há resistência explícita à desterritorialização, há conflito. Pode ficar no nível do não dito, mas há conflito”.
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As caras da injustiça ambiental - Instituto Humanitas Unisinos - IHU