O digital, a quarta revolução humana: depois da copernicana, da darwiniana, da freudiana. A internet não é uma atualização de Gutenberg, mas um verdadeiro habitat novo, fundamentado nas relações, na rede e nos seus nós, nos quais estamos imersos. Por isso, é preciso um projeto comunitário humano baseado no verde e no azul, no ambiente e no digital. Coordenação, colaboração e cooperação são os “três Cs” decisivos.
A reportagem é de Iacopo Gardelli, publicada em Una Città, n. 276, de junho-julho de 2021. A tradução é de Anne Ledur Machado.
Luciano Floridi é professor de Filosofia e Ética da Informação na Universidade de Oxford, onde dirige o Digital Ethics Lab, e presidente do Data Ethics Group do Alan Turing Institute. Desde 2021, é também professor da Universidade de Bolonha. Entre seus livros: “La rivoluzione dell’informazione” (Codice, 2012), “La quarta rivoluzione” (Raffaello Cortina, 2017), “Pensare l’infosfera. La filosofia come design concettuale” (Raffaello Cortina, 2020) e o recente “Il verde e il blu. Idee ingenue per migliorare la politica” (Raffaello Cortina, 2020).
Antes de falar das ideias políticas contidas no seu livro “Il verde e il blu”, comecemos com uma pergunta fundamental para entender o seu ponto de vista: você, ao se referir ao digital, fala de “quarta revolução”. Muitas vezes, você o define como um novo habitat. Por que o digital não é simplesmente um meio?
Justamente nesta manhã, em um encontro, um dos participantes me pediu para identificar a principal mudança introduzida pela internet. Eu respondi exatamente assim: entender que digital é um ambiente, não um simples instrumento. O digital tornou-se parte dos lugares que habitamos, onde passamos o nosso tempo e onde interagimos. O digital criou uma nova compreensão de nós mesmos.
O impacto não é apenas tecnológico. A energia nuclear, por exemplo, que foi uma tecnologia revolucionária, não mudou a nossa antropologia filosófica, ou seja, o modo como nos percebemos, ou o nosso modo de ser político, social, econômico, o nosso modo de conceituar o mundo e o modo de transformá-lo.
Daí a ideia da quarta revolução, como eu já repito há muitos anos. As três primeiras revoluções – a copernicana, a darwiniana e a freudiana – foram revoluções porque mudaram a nossa autocompreensão: não estamos mais no centro do cosmos, não estamos mais no centro da natureza e não estamos mais no centro do nosso universo mental. Pois bem, hoje não estamos mais no centro do mundo da informação.
Alguns dos meus colegas não entenderam esse ponto: continuam falando do digital pensando apenas nos textos informatizados, de um modo bem característico do “século XX”. Fala-se de internet como de uma espécie de atualização de Gutenberg, de “imprensa 2.0”. Não é assim, radicalmente: não se pode reduzir a revolução digital a uma espécie de revolução da impressão. Na minha opinião, trata-se de um capítulo totalmente novo da nossa existência. Estamos imersos em um novo habitat.
Pensemos no conceito de identidade, de privacidade ou no impacto das tecnologias sobre o meu modo de me construir e de me compreender: esse é um universo que o mundo do livro não modificou de forma tão radical. Se o digital fosse simplesmente algo mais daquilo que já vimos, se estivesse em exclusiva continuidade com aquilo que existia antes, não estaríamos aqui discutindo sobre ele.
Pensemos, por exemplo, na nossa forma de fazer a guerra: há um abismo entre a Primeira Guerra Mundial, que foi a última das guerras napoleônicas, e a Segunda Guerra Mundial, a primeira das contemporâneas. Houve avanços tecnológicos assustadores, mas o nosso modo de combater está substancialmente em continuidade com a Segunda Guerra Mundial.
Na história do ser humano, às vezes assistimos a mudanças extraordinárias: o digital foi uma dessas mudanças. E talvez, na Itália, tenhamos tido uma consciência profunda disso apenas graças à pandemia. No giro de 24 meses, entendemos que o digital é um dos cordões umbilicais fundamentais que nos conectam ao mundo e nos sincronizam com o nosso tempo. Talvez o século XXI começou realmente com esta pandemia. Assim como a Primeira Guerra Mundial inaugura o século XX, assim também a pandemia nos catapultou para o século XXI.
Certamente, o impacto do digital sobre o mundo do trabalho sofreu um aumento enorme nesses últimos meses. Porém, é curioso que, já há 15 anos, na Itália, o Movimento Cinco Estrelas levantava a hipótese do advento de uma democracia direta baseada em tecnologias digitais.
A primeira vez que se usou o digital de forma séria e influente no âmbito político foi durante as eleições regionais do Quebec, pouco antes da campanha de Obama em 2008.
Obama, que é um homem do século XXI, aprendeu a lição e foi o primeiro presidente que começou a arrecadação de pequenos recursos em grandes quantidades, com o envio de e-mails e newsletters. E, na Itália, o Cinco Estrelas esteve na vanguarda.
Pense que, ainda há poucos anos, quando eu dizia aos meus colegas que eu me ocupava de internet e de digital, eles me chamavam de grillino [em referência a Beppe Grillo, fundador do Movimento Cinco Estrelas]. Uma coisa atroz! A equação Cinco Estrelas-internet estava tão arraigada que ocorria naturalmente.
Um dos temas fundamentais do livro gira em torno da sua definição de “projeto humano”. No seu livro, você elenca alguns deles, que marcaram a história do século XX, mas afirma que ainda não foi criado um projeto humano para o novo século – daí a importância do “verde” e do “azul”. O que você entende por projeto humano?
Para responder, terei que fazer brevemente um quadro aproximativo. Na primeira metade do século XX, o projeto social ainda tinha um impulso hegeliano. Falava-se de um “Estado ético”, de um projeto da própria sociedade. Um Estado “pai-patrão” que decide o que é bom e o que deve ser feito. Esse projeto, por sua vez, é filho de uma avalanche fundamental, muito anterior. Entre John Locke e Immanuel Kant, há a tentativa de encontrar o fundamento da sociedade contemporânea. Decidiu-se tomar o caminho de Kant e fundar a sociedade com base na justiça em vez da tolerância, como defendia Locke. Locke pensava que o único modo de encontrar a paz social era ser tolerante. Kant tenta demonstrar que apenas uma sociedade justa pode gerar liberdade, tolerância e paz.
Recapitulando: fundamento com base na justiça kantiana + Estado ético hegeliano = século XX dos totalitarismos, em toda a Europa. Alemanha, Rússia, Itália, Espanha, Grécia, Portugal... não se sabe para onde olhar. O projeto social se torna totalizante. E, de totalizante a totalitário, o passo é curto.
Na segunda metade do século XX, não se abandona o fundamento da justiça – o liberalismo democrático permanece fundamentado no conceito-chave da justiça, basta ler Bobbio ou Rawls – e se deixa de lado o Estado ético. O Estado se torna um metaprojeto: ele não tem um projeto próprio, mas é o “projeto dos projetos”, ou seja, defende metodologicamente a projetualidade individual de cada um de nós.
Seguimos em frente assim até anteontem. Agora, pode ter sido a pandemia ou as mudanças climáticas, mas, se olharmos para os problemas principais que temos hoje, eles são todos problemas globais. Para resolvê-los, não basta um projeto individual, não bastam muitas pequenas ações desvinculadas, mas é preciso um projeto comunitário.
Mas como fazemos para recriá-lo, fugindo do perigo do totalitarismo? A minha proposta é a de retomar os movimentos a partir de Locke: a pedra angular do nosso projeto deve ser a da tolerância. Se conseguirmos recuperar um projeto social, e o fizermos em versão tolerante, então poderemos resolver esses problemas que criamos e que devem ser resolvidos – e devem ser resolvidos rapidamente, no giro de duas gerações. Devemos nos pôr de acordo.
Qual é esse projeto humano comunitário? Eu respondi assim: o verde e o azul. Basta abrir os olhos e olhar pela janela. O verde é o ambiente; mas não só ecológico, o ambiente entendido de forma ampla: o ambiente humano, social, econômico, urbano. O azul representa as tecnologias digitais, todas elas, mas também os modelos de economia circular, as políticas de investimento sustentáveis e assim por diante.
Esse é um projeto que potencialmente seria capaz de reunir todas as forças em uma única projetualidade humana; caso contrário, permanecemos fragmentados. E a questão é justamente esta: se o carro não pega e vou dar um empurrão sozinho, e quando volto para casa digo a mim mesmo com a consciência limpa: “Fiz o meu dever! Cada pequeno gesto conta!”, então não entendi nada.
É uma ilusão perigosa, porque fazer isso não é pouco: é zero. Pode nos fazer nos sentirmos bem, mas não podemos achar que serve para alguma coisa. Desligar uma lâmpada para impedir as mudanças climáticas é totalmente inútil, assim como ir empurrar o carro sozinho. É votar no partido certo que pode fazer a diferença. É o G7 que decide taxar as empresas poluentes em 15% que faz a diferença. O esforço individual não coordenado não leva a lugar nenhum. Tudo deve ser colocado em um sistema, o projeto deve ser social. Se não colocarmos isso nas nossas cabeças, todos acabaremos contentes, satisfeitos... e mortos.
Mas temos a capacidade política para colocar tudo isso em um sistema? Por enquanto, eu não vejo isso. Embora seja preciso dizer que a Europa está fazendo muito melhor do que recentemente. Biden está na Casa Branca; Macron, no fim das contas, não é tão ruim; temos Draghi em vez de Conte [na Itália]... São razões para um otimismo moderado. Ou não. Pensemos como quisermos.
A primeira versão deste livro saiu em 2018 como um breve panfleto para a revista Formiche. Eu dei uma cópia dele para Matteo Renzi. Era o período em que ele pegava o trem para a campanha eleitoral. Eu o aconselhei a falar sobre o verde e o azul, a se colocar na frente na Europa e na Itália sobre esses temas, criando uma liderança sólida e clarividente... Como acabou, na sua opinião? Ele teria chegado anos antes de von der Leyen [presidente da Comissão Europeia desde 2019], que hoje almeja uma “década digital europeia” e a neutralidade climática até 2050. Conversamos sobre isso. Mas, no fim, não se fez nada.
Esse discurso nos leva a uma questão que o seu livro deixa em aberto: você define as ideias políticas do ensaio como apartidárias e a-ideológicas, e fala de um “centrismo ético” para descrever o seu programa. Ora, essas ideias podem funcionar na política? Não correm o risco de ficar presas em boas intenções, sem serem encarnadas por parceiros sociais? Na política, precisamos do “como” além do “quê”, e é precisamente o “como” que faz a diferença – ou seja, a ideologia. Por exemplo: se eu quero fazer algo pelo ambiente, é difícil levantar a hipótese de um “capitalismo ambientalista”, como você faz. O que você acha?
Você tem razão. O livro fala de ideias “ingênuas”, e esse adjetivo também pode ser lido em termos negativos, como sinônimo de “ilusão”. Mas, quando eu falo de centralismo ético e de paz social, eu penso em uma atitude de realpolitik: precisamos dialogar sobre os elementos a respeito dos quais podemos chegar a um acordo e começar a partir daí. Quando a política é feita a sério, é sobretudo capacidade de se chegar a um acordo, e não um confronto rígido, partidário. Senti-me muito distante de algumas pessoas na Itália que ainda pensam na política como uma luta maniqueísta entre bons e maus, entre inteligentes e honestos de um lado, e estúpidos, malfeitores e desinformados de outro. Há algo que não funciona, evidentemente. Não conseguimos sair de um jogo partidário como esse, de soma zero.
Do mesmo modo, acho repugnantes as metáforas futebolísticas para falar de política: um ganha, outro perde, e se houve empate então é porque algo não deu certo. Por isso prefiro falar, na segunda metade do livro, de jogos colaborativos, que não nascem porque nos queiramos bem, mas porque, para as condições atuais, é necessário ter coordenação, colaboração e cooperação: os três “Cs”. Mas como se faz para pô-los em movimento, sem que a maioria esmague a minoria, como ocorre agora?
Pensemos na coordenação: é o que ocorre quando dirigimos pela estrada. Não significa que todos estamos indo na mesma direção, felizes e contentes; significa que cada um de nós vai aonde quer, mas seguindo um conjunto de regras para não se chocar com os outros. Esse é um exemplo de coordenação mínima, uma tarefa que o mercado é capaz de desempenhar bem. Mas isso não basta.
Indo por graus, temos colaboração e, depois, cooperação. Colaborar significa dividir as tarefas: você traz a bebida, e eu trago a pizza. Cooperar significa algo mais: trabalhar juntos durante todas as fases do processo. Por exemplo, eu e uma colega não nos limitamos a preparar dois sanduíches individualmente, coordenando-nos, não dividimos apenas as tarefas, mas fazemos as compras juntos, decidimos o cardápio juntos, cozinhamos e comemos juntos.
Passar de uma sociedade metaprojetual, na qual o Estado facilita a coordenação, mas não ajuda a entender como se mover juntos, para uma sociedade da colaboração e também da cooperação significa fazer realpolitik, ser mais incisivo para resolver os problemas atuais. Enquanto nos contentarmos com a pura e simples coordenação individual, não conseguiremos fazer muito, e o mercado sozinho não nos salvará.
Por isso, eu insisto muito no “design das regras”, que permitiria o surgimento de formas mais eficazes de estar junto: formas que vão além da mera coordenação para desenvolver a colaboração e a cooperação. Se nos sincronizarmos um pouco mais, se organizarmos melhor a nossa sociedade, colocando a tolerância como base e sugerindo uma direção mínima (em inglês, fala-se de nudge, de “empurrãozinho”), então é possível fazer isso.
Mas isso requer capacidades políticas nada banais: e é isso que me preocupa. Não tanto o realismo da minha proposta, mas os recursos intelectuais e políticos necessários para realizá-la. E, sobre esse ponto, eu não sei como lhe responder. Seriam necessários estadistas de alto nível.
A cooperação como base para a sociedade futura: um tema interessante e de alguma forma ligado à sua teoria do “trust universal”, que renova o velho tema filosófico do contrato social. Pode explicar isso?
A teoria do contrato social, e não digo isso sem um pouco de vergonha intelectual, nunca me convenceu. Acostumei-me, desde estudante, a seguir a lógica das ideias até o fim, e é essa mesma lógica que me leva hoje a propor essa atualização da velha ideia de contrato.
Por que não me convence? Comecemos pelo fato de que, quando ela foi proposta na Europa, a sociedade era composta por uma massa de camponeses e pouquíssimos senhores locais. Hoje, lemos a teoria do contrato social de modo brutalmente individualista, como uma sociedade de consumidores e de pequenos proprietários; e o sucesso dessa ideia provavelmente se deve ao fato de estar bem de acordo com o pensamento capitalista.
O capitalismo acolhe essa formulação vagamente jurídica, pela qual um indivíduo contrata a sua segurança cedendo um pouco da sua liberdade e tem uma relação de barganha com os outros. Não me convence, em primeiro lugar, esse individualismo, que me parece uma ficção completa. Lendo Hobbes, e simplificando um pouco, é como se assistíssemos a um jogo: entram os jogadores, cada jogador joga contra o outro, e depois todos entram em acordo juntos. Mas isso é ficção científica. Não existe sociedade de um lado e o indivíduo de outro. Todos nós nascemos e morremos constantemente em um ir e vir magmático que se chama sociedade. Eu nasço em uma sociedade, me torno parte da sociedade e a deixo para outra pessoa.
Mas, então, se as coisas são assim, por que continuamos usando a teoria do contrato social? E o que mantém uma sociedade unida? A meu ver, é preciso fazer uma escavação um pouco mais profunda, sem nos limitarmos a descrever as relações socioeconômicas legais entre seres humanos, mas passar para as relações ontológicas que nos unem.
Eu faço parte, fisicamente, em termos de moléculas e átomos, de um todo, de uma rede. Mas, sendo eu um nó de uma rede maior, não faz sentido falar de mim antes da existência da rede. Sem rede, não há nó. Não há sequer um conjunto de nós que, em certo ponto, se põe de acordo e constrói a rede. A precedência vai logicamente para o todo.
Antigamente, pensava-se a sociedade como um mecanismo, uma espécie de relógio cuco onde cada peça tem a sua existência autônoma e independente do mecanismo. Para essa visão atomística, o indivíduo tinha uma existência prioritária em relação à sociedade.
É preciso inverter a forma de pensar: onde existe a rede, existem os nós, e não vice-versa. É preciso pensar em uma política das “relações”, não das coisas. Então, qual relação eu tenho com a internet? Eu sou coparticipante de todos os elementos dessa rede. Se levarmos a sério essa ontologia, como podemos falar de “poder contratual do indivíduo”? Onde estava o meu poder contratual no momento do meu nascimento em Roma, em 1964, homem do sexo masculino, com este nome, com esta pele, com esta religião, com esta língua? Eu nunca escolhi todas essas coisas, no máximo consegui modificá-las parcialmente: mas alguém me trouxe ao mundo, e eu dependia deles. Somos parte de um todo que é herdado, é gerido e, depois, é passado para a geração seguinte: isso é o trust.
Eu não possuo um bem, não tenho um contrato com a sociedade: tenho o encargo de cuidar dela e de geri-la da melhor maneira possível, antes de deixá-la para outros; assim como o trustee não possui, mas se beneficia do trust e tem o encargo de administrá-lo “on v”, ou seja, “em prol” dos seus sucessores.
Se deixarmos de pensar em termos contratuais e pensarmos no trust, todas as nossas presunções de posse desaparecem. Não possuímos nada: ambiente, sociedade... Nós os gerimos e cuidamos deles para quem virá depois, na esperança de termos estado à altura da tarefa, agradecendo aqueles que vieram antes de nós, se fizeram um bom trabalho, e esperando sermos agradecidos por aqueles que virão depois de nós, fazendo um bom trabalho.
No seu livro, você fala de seres humanos entendidos como inforgs, ou seja, como organismos que também são informações e devem ser tratados como tais. Se isso for verdade, então a privacidade realmente se torna importante. Por que é tão importante defendê-la?
Você conectou bem os elementos: a defesa que eu faço da privacidade é também uma defesa filosófica e não baseada em simples razões comerciais. Fala-se de inforgs em uma ontologia que vê cada vez mais os indivíduos em termos de conjuntos de informações. Ora, diga-se de passagem: eu continuo sendo kantiano do ponto de vista da epistemologia. Ou seja, não acho que, se eu descrevo os indivíduos como “organismos de informação”, eles são única e intrinsecamente tais. Quando eu defendo que a natureza humana hoje é feita de informações, o que eu realmente estou dizendo é que esse é o modo mais interessante e eficaz hoje para conceituar a nossa natureza. Como em um diamante, somos feitos de mil facetas: hoje, a que me parece mais interessante e fecunda para entender melhor o mundo é a informacional.
Falamos do ser humano em termos de mecanismo, como animal, como objeto biológico feito de água e sais. Hoje, o nível de abstração sobre o qual devemos trabalhar preferencialmente é o informacional – ou seja, o ser humano como organismo que vive, prospera, sofre em termos de fluxos de informação, como nó de uma rede. Nesse ponto, a privacidade se torna fundamental como fator de proteção para esse indivíduo e pela fragilidade das informações que o constituem.
Eu me encontro em oposição assimétrica em relação a muitos que defendem ou não defendem a privacidade em termos absolutos. Acho um absurdo, por exemplo, que se defenda a privacidade de quem pegou o ônibus esta manhã. Essa informação não é constitutiva em relação à minha identidade. Mas outras informações, por outro lado, o são e devem ser defendidas de acordo com aquelas que, social e culturalmente, percebemos como constitutivas de nós mesmos.
Para algumas culturas, as escolhas musicais são mais importantes do que as sexuais. Não é relativismo da minha parte. Trata-se de entender que, em uma árvore imaginária, a privacidade é um ramo da dignidade humana, e não um ramo secundário da propriedade privada. A privacidade não é simplesmente um espaço pessoal meu ou os meus dados com os quais eu faço o que quero. Esse conceito de propriedade, muito lockeano, desviou completamente a discussão sobre os dados pessoais. Os “meus dados” são “meus” assim como as “minhas mãos”, não como os “meus sapatos”.
Às vezes, eu encontro colegas que me parecem aristotélicos em um mundo einsteiniano e que continuam defendendo que o modo de resolver o problema da privacidade é dar aos indivíduos o direito de ver os seus próprios dados. Eu sempre respondo que seria como dar às pessoas o direito de vender os seus próprios órgãos. Não temos esse direito, não podemos fazer isso, por razões éticas e sociais bem específicas.
O mesmo deve valer para as informações pessoais e privadas, que eu mesmo não deveria ser capaz de colocar tão estúpida e rapidamente em comum. Da mesma forma que o Estado não permite que eu venda o meu fígado.
Se assumirmos essa orientação ontológica, entenderemos por que o fundamento da privacidade não está no well-being ou, melhor, no “bem-estar” humano, mas na dignidade humana.
No livro, você compara a internet a um parque público e diz que deixamos que um espaço de todos fosse gerido por poucas empresas privadas estadunidenses. Você propõe que se “coopte” essas empresas para melhorar o “azul”, como você o define. Isso será suficiente?
Sim e não. O Estado continua sendo dominante quando se trata de organizar a política. O que se deveria fazer é cooptá-las ou, no limite, “forçá-las a entrar”, evangelicamente. Você se lembra? O Senhor envia os seus servos para convidar todos para a festa; os servos voltam e dizem que o convite não foi aceito. Nesse ponto, o Senhor responde: “Forcem-nos a entrar”. Uma frase muito pesada, que foi usada para justificar os horrores das Cruzadas.
A temporada da autorregulamentação está chegando ao fim. Eu mesmo participei de várias mesas, com o Google e o Facebook em particular, onde se tentava colaborar. Mas, em certo ponto, deve chegar o momento em que os órgãos supranacionais imporão as regras, por exemplo, o Parlamento Europeu. Faltando liderança, tanto em nível político quanto em nível de gestão, a cooptação não terá resultado e se passará para a coerção legislativa. Paciência. Teria sido possível fazer um percurso mais cooperativo; infelizmente não funcionou.
E eu acho que isso se deveu principalmente à miopia dessas grandes empresas, que continuaram freando, na esperança de que, postergando e fazendo lobby, se poderia evitar a regulamentação. Mas a lei é como um torno que, à força de apertar, acaba te encaixando. Demorou anos para colocar em movimento o GDPR (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, na sigla em inglês); para uma lei sobre a inteligência artificial também teremos que esperar um pouco mais. Já estão presentes as propostas de duas leis europeias, Digital Services Act e o Digital Markets Act: será preciso algum tempo para torná-las eficazes, é verdade, mas, quando tivermos todas as peças, serão como cimento armado, e então, as empresas realmente terão que repensar o seu funcionamento.
Por isso, fico atônito com a falta de visão dos gestores. Quando a legislação se põe em movimento, ou você a antecipa de forma cooperativa, ou ela também irá impor vínculos sobre você que você não queria. A cooptação significa chamar todos para a sua mesa, não ir para a mesa deles, e seria razoável esperar esse comportamento de grandes diretores empresariais. Mas, assim como nos lamentamos da estatura dos nossos políticos, assim também teríamos que nos lamentar de muitos gestores: basta ver os muitos erros evitáveis que eles cometem repetidamente, sem aprender. Precisamos de uma classe dirigente, política e empresarial, melhor.