24 Julho 2021
Por que observar as estrelas quando há pessoas morrendo de fome na Terra? A pergunta, que incomodou o astrônomo, deu origem ao seu compromisso. A ciência permaneceu em sua vida, fundindo-se em uma vocação pela busca da Verdade.
A reportagem é de Marie-Lucile Kubacki, publicada por La Vie, 16-07-2021. A tradução é de André Langer.
Em 1982, eu tinha 30 anos e fazia pesquisas no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e em Harvard. Nesses tempos, fui assombrado por uma pergunta: por que perco meu tempo me preocupando com os planetas, quando pessoas morrem de fome no mundo? Convencido de que Deus estava me pedindo para abandonar a pesquisa científica para me tornar útil, decidi deixar a ciência de lado, com a firme intenção de nunca mais ouvir falar dela.
Ingresso no Corpo da Paz, uma organização pública não governamental, cujo objetivo é desenvolver a paz no mundo, e fui enviado ao Quênia. Ironicamente, minha missão no Quênia consistia em ensinar ciências nas universidades de todo o país!
Porém, acontece que na minha bagagem levei um pequeno telescópio que mostro às pessoas da aldeia. Entusiasmadas, elas vêm até mim para observar a Lua, Júpiter... tudo o que eu gosto de olhar também. Sua paixão pela astronomia me traz de volta à minha pergunta inicial: por que olhamos para as estrelas, mesmo que pessoas estejam morrendo de fome?
Desta vez, tenho a resposta: é por que nossas almas e nossa imaginação, e não apenas nossa barriga, precisam ser alimentadas. A Bíblia diz e afirma que também devemos ter sonhos além de nossas necessidades imediatas. Todos. Mesmo sendo uma pessoa pobre, que vive no interior de uma região rural do Quênia, você é um ser humano cheio de sonhos, desse tipo de sonhos.
Desta maneira, quando volto para a América, começo a lecionar em uma pequena universidade e adoro isso. Na época, eu estava namorando uma jovem, mas não deu certo, o que felizmente descobri bem cedo. Pouco tempo depois, fui convidado para o casamento de dois amigos meus do Corpo da Paz e, embora tenha ficado muito feliz por eles, entendo que não é para isso que sou chamado.
Também sei que não tenho qualidades para ser padre. Neste momento, lembro-me de ter conhecido quando estava no colégio um irmão jesuíta, doutor em ciências, e percebi que o nerd (uma pessoa apaixonada pelas ciências e pelas tecnologias, nota do editor) que sou poderia muito bem encontrar o seu caminho como “simples” irmão.
Quando conto para os meus amigos e amigas, a resposta é unânime: “Poderíamos tê-lo dito antes a você, isso era tão óbvio”. Eis como, em poucas palavras, eu entro na Companhia de Jesus.
Minha fé e minha paixão pela ciência estão enraizadas na primeira infância. Meu pai era fascinado pelas estrelas e me ensinou a observá-las; ele também gostava de histórias de ficção científica... Muito jovem, eu também me sentia atraído pelas estrelas, pela ficção científica e pelas aventuras.
Eu nasci logo depois da Segunda Guerra Mundial. Meus pais se casaram no verão de 1945; eles se conheceram antes do conflito. Meu pai, de origem italiana, serviu no Air Corps (as forças aéreas dos Estados Unidos, nota do editor), mas antes tinha sido marinheiro e aprendera astronomia.
Minha mãe veio de uma família irlandesa. Depois do casamento, eles se mudaram para Detroit, meu pai se tornou jornalista e foi onde nasci. Naquela época, todos os meninos queriam ser cientistas. E eu também!
Tanto quanto me lembro, sempre fui crente. Portanto, não experimentei um momento de “conversão” deslumbrante, no sentido de que Deus sempre esteve na minha vida. Isso, me parece, vem de minha família, pelo menos em parte. Em nossa casa a fé sempre foi alimentadora e nunca opressora, tudo banhado em um grande senso de humor.
A alegria é um sinal da presença de Deus e eu cresci em um lar alegre. Meu irmão mais velho, que é músico com toda a alma, diz que nunca será um grande músico de blues porque a nossa infância foi muito feliz.
Os meteoritos entraram na minha vida de maneira totalmente inesperada. Como estudante em Boston na década de 1970, não era feliz, porque os outros estudantes estavam mais interessados em festas do que em estudar, o que não era o meu caso. Meu melhor amigo do colégio estava estudando no MIT, a uma hora de trem.
Fui visitá-lo e descobri que essa universidade tem o maior acervo de livros de ficção científica do mundo. Então fui para o MIT para estudar ficção científica! Tive que escolher uma área de concentração e uma das disciplinas se chamava “A Terra e a ciência planetária”.
“Genial!”, pensei comigo mesmo, acreditando tratar-se de astronomia, antes de perceber, cruel desilusão, que íamos estudar geologia. Até que descobri pedras caindo do céu, os meteoritos, pelos quais desenvolvi uma paixão imediata.
Quando se entra na vida religiosa, faz-se três votos: pobreza, castidade e obediência. Ao entrar na Ordem aos 38 anos, senti que estava em meu lugar, pronto para ser professor de física em uma universidade jesuíta em algum lugar da América, mas havia prometido obediência (na minha opinião, o voto mais difícil de cumprir).
Ora, os jesuítas mandaram-me fazer algo que não era o que eu tinha planejado: ir a Roma, morar no palácio apostólico de Albano, para me dedicar inteiramente às pesquisas em astronomia. Os milhares de meteoritos precisavam de alguém que os conservasse. Finalmente, não tive problemas com a obediência! Fiquei bastante surpreso com a forma como cada elemento da minha vida se encaixou.
No Observatório do Vaticano, somos uma dezena de astrônomos de todos os continentes, formados nas principais universidades, e fazemos pesquisas científicas, de meteoritos às galáxias, o que nos permite uma colaboração muito próxima com colegas astrônomos do mundo inteiro.
Fui astrônomo durante 20 anos no mundo civil, antes de estar no Vaticano. A diferença é que faço isso por um motivo diferente. Se eu fosse casado e tivesse uma família para sustentar, teria que me preocupar com meu emprego, portanto escolher um tema de pesquisa que me rendesse financiamentos.
Aqui, somos livres para escolher os temas simplesmente porque eles nos entusiasmam como cientistas. Portanto, posso consagrar de cinco a dez anos pesquisando um tema que me interessa. Isso nunca vai me render a glória, mas estamos produzindo dados que o resto do mundo astronômico precisa.
Muitas vezes me perguntam como meus colegas cientistas reagem quando descobrem que eu sou religioso. Imagine que muitos deles vão à igreja. No campo da astronomia, encontramos muitas pessoas de fé que pertencem a várias religiões diferentes.
Mesmo aqueles que não acreditam em Deus no mínimo têm um compromisso com a verdade que é maior do que o interesse em sua própria carreira. De todos aqueles que conheço, nenhum astrônomo falsificaria seus dados para conseguir uma promoção, por exemplo.
Todos nós estamos muito mais interessados na verdade do que em parecer bem na frente de nossos amigos. Estamos todos apegados a sentir aquela sensação de alegria e admiração que vem com a busca e a descoberta. E esta também é uma prova da presença de Deus.
Portanto, mesmo quando esses companheiros pensam que não acreditam em Deus, eles acreditam no mesmo Deus que eu. Este Deus que diz: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”.
A outra questão que surge regularmente é a chamada agenda secreta do Vaticano no domínio espacial. Não, nós não temos uma agenda especial, nós pesquisamos e compartilhamos. Em nossas escolas de verão, que são gratuitas, recebemos 25 alunos de todo o mundo.
A única condição é que eles queiram se tornar astrônomos profissionais. Dois terços deles vêm de países em desenvolvimento, alguns da República Popular da China e de Taiwan, outros da Armênia e da Turquia... A astronomia é o lugar onde todos podemos nos encontrar, porque vivemos todos sob o mesmo céu.
Assim, não estamos procurando alienígenas para batizar ou fantasma qualquer. Procuramos encontrar a verdade, onde quer que isso nos leve, porque a verdade não contradiz a verdade. E isso significa que nunca podemos ter medo da Verdade.
A ciência não pode contradizer a fé, pois nem a ciência nem a fé são coisas que podem ser contraditas. O que acontece quando uma nova observação parece contradizer uma teoria? Você está empolgado porque diz que está prestes a aprender algo novo.
A ciência não é um grande manual de fatos, nem a religião um grande livro de regras a seguir. O amor é o motor da fé e da ciência. Eu amo o Universo porque ele reflete a bondade de Deus. E eu encontrei Deus neste Universo.
Se suas raízes remontam ao século XVI, o Observatório Astronômico do Vaticano em sua forma atual é uma instituição fundada pelo Papa Leão XIII em 1891, localizado em Albano, não muito longe da residência pontifícia de Castel Gandolfo, e dispõe de um centro de pesquisa nos Estados Unidos, em Tucson, Arizona. Um museu dedicado à fascinante história deste lugar deverá ser inaugurado em breve nos jardins de Castel Gandolfo. Entretanto, muitos conteúdos podem ser descobertos (fotos, vídeos, podcasts e textos em inglês) no site do Observatório.
Livro: Les extraterrestres existent-ils ? Un astronome du Vatican répond (Os alienígenas existem? Um astrônomo do Vaticano responde), de Guy Consolmagno, Quasar, € 10.
1952 – Nasce em Detroit, Michigan.
1974 – Graduado em Ciências pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).
1978 – Tese de doutorado em Ciências Planetárias, Universidade do Arizona.
1983 – Ingressa no Corpo da Paz nos Estados Unidos e serve na Universidade de Nairobi, no Quênia.
1989 – Ingressa na Companhia de Jesus (Jesuítas).
1993 – É destinado ao Observatório do Vaticano como astrônomo.
2015 – É nomeado diretor do Observatório do Vaticano pelo Papa Francisco.
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“Nossas almas e nossa imaginação precisam ser alimentadas”. Testemunho de Guy Consolmagno - Instituto Humanitas Unisinos - IHU