09 Junho 2021
“É preciso integrar com diálogo e realismo todas as energias sociais progressistas das camadas populares em uma articulação complexa e plural, no que defino como novo progressismo de esquerdas, com forte componente social, ambiental e feminista. E superar o economicismo determinista ou materialismo vulgar e o culturalismo ou idealismo discursivo, ambos ainda persistentes, assim como a via centrista liberal”, escreve Antonio Antón, professor de sociologia da Universidade Autônoma de Madrid, em artigo publicado por Público, 07-06-2021. A tradução é do Cepat.
O tema do caráter das esquerdas e suas guerras culturais é importante e volta a ser atual. Provém de sua situação de crise, sua fragmentação e seu desconcerto estratégico, bem como da disparidade de suas interpretações.
Uma abordagem com muitas ideias interessantes é a de Ignacio Sánchez-Cuenca (Las guerras culturales de la izquierda), um dos sociólogos mais significativos na Espanha. Parto desse diagnóstico comum para avançar no que considero mais substantivo: em que sentido se deve promover sua renovação para enfrentar os desafios do presente e futuro; por um lado, que traços são válidos e precisam de uma simples adequação e, por outro, que componentes são problemáticos e precisam ser superados.
Há uma primeira dificuldade sobre o próprio conceito e expressão de esquerda. Sinteticamente, é um campo sociopolítico com vários critérios normativos e valores: relevância da igualdade social, garantia da proteção social e o Estado de bem-estar, regulação do mercado com importância do público, defesa da democracia, as liberdades e o pluralismo, solidariedade popular. Esses eixos, compartilhados na tradição das esquerdas democráticas (social-democratas e eurocomunistas), não são exclusivos das esquerdas, nem todas foram respeitosas com eles, por exemplo, existem práticas burocrático-antipluralistas.
Além disso, cabe citar três traços controvertidos no encaixe destas correntes que, embora antigos, foram adquirindo uma nova relevância na luta social e cultural, com diferentes sensibilidades: a igualdade de gênero, a consciência ambiental e a atitude antirracista e de solidariedade internacional.
A partir desta posição básica compartilhada, permito-me fazer algumas observações com ânimo construtivo sobre vários problemas analíticos e de enfoque, alguns relacionados a erros interpretativos das ciências sociais dominantes desde os anos 1960 e 1970. Refiro-me à classificação dicotômica de tendências e valores materialistas e pós-materialistas, derivada da sociologia anglo-saxã ou, na tradição francesa, da polarização entre posições estruturalistas e pós-estruturalistas (ou pós-modernas). Cito apenas um sociólogo prestigioso, o francês Alain Touraine, cujos limites interpretativos, no marco da crise social atual, marcam o teto da sociologia convencional, conforme explico no livro Movimiento popular y cambio político. Nuevos discursos (2015).
Primeiro, por que o movimento ambientalista, o antirracista e o feminista são apontados como culturais ou pós-materialistas? Sua ação coletiva se fundamenta, no caso do primeiro, em transformar as estruturas produtivas, vitais e de consumo que ameaçam a sustentabilidade (física e material, incluído sua habitabilidade) do planeta e, no caso dos outros dois, na desigualdade de status derivada da raça ou grupo étnico e de gênero, ou seja, combatem as desvantagens relacionais, distributivas e de poder das mulheres e grupos subordinados. Para não citar outros problemas atuais relacionados à seguridade social, como as demandas por moradia, a proteção pública, a saúde, a educação, o trabalho, a tributação e as aposentadorias.
Em todos eles, combina-se a questão distributiva e a seguridade vital com a cultura (popular) da justiça social e o desejo de um estilo de vida livre e decente. Existe uma interação social entre o material e o cultural das pessoas, e a agência é fundamental.
Segundo, esse esquema interpretativo material/pós-material também não serve para avaliar o processo de protesto social simbolizado pelo movimento 15-M ou a formação de Unidas Podemos e suas confluências, aliados e afins... inclusive, o próprio sanchismo, com sua reafirmação socialista frente à direita e a favor da aliança com UP e o bloco de investidura e mesmo com suas inconsistências estratégicas e teóricas.
Os elementos fundamentais desta década para as esquerdas e a mudança no progresso foram a justiça social, a democratização, a mudança de sistema de representação política, a plurinacionalidade e a questão territorial e a formação de instituições governadas por uma coalizão progressista. Todas essas transformações tiveram um grande componente subjetivo, de consciência cívica e clima sociocultural e ético, mas não são (só) culturais: afetam reajustes distributivos, de relações de força e poder, que as direitas se encarregam de recordar com sua oposição visceral.
As questões materiais são sociais, com um importante componente econômico-trabalhista e de bem-estar público, que o CIS [Centro de Investigações Sociológicas, da Espanha] segue confirmando como a principal preocupação da sociedade. Dando um passo interpretativo, podemos afirmar que aquilo que subjaz a essa realidade imediata é uma desigual relação social e de poder que se turva na dicotomia material/pós-material. E avaliar essa desvantajosa relação social é central para articular a interação entre as dinâmicas sociais e as condições socioeconômicas, as estruturas sociais e de poder e as expressões culturais.
Os dois campos, emprego-economia e Estado de bem-estar, são materiais ou objetivos, ligados ao cultural, à subjetividade, abarcando a ética da justiça social e democrática. A conexão necessária é uma identificação igualitária-libertadora do grupo subordinado específico e do conjunto de pessoas subalternas. Mas essa identidade, conforme detalho em Identidades feministas y teoría crítica, não é apenas cultural, é relacional, ou seja, é reconhecimento público e prática social para transformar o status desigual nas estruturas sociais. Ainda que nem todas as desigualdades sejam diretamente econômico-distributivas, têm implicações segundo a classe social, o sexo, a etnia-raça...
Terceiro, do ponto de vista da análise de classe, também é necessário refinar. A maioria das elites desses novos movimentos sociais (assim como o movimento sindical com o status de sua alta burocracia), incluindo formações políticas como Unidas Podemos (e todos os partidos e a maioria das organizações sociais), SIM, é formada por profissionais da classe média mais ou menos tranquilos e muitas vezes apenas aspirante. Mas suas bases sociais, em sua maioria classes trabalhadoras, não são. Ou seja, há uma diversificada composição interclassista (popular) nos movimentos sociais e forças progressistas, e é preciso uma análise sócio-histórica e relacional, conforme detalho em Cambios en el Estado de bienestar.
Portanto, uma vez ajustada a análise, permaneceria a dinâmica convergente, o projeto comum e a necessária renovação ou inovação. É o desafio das representações progressistas e de esquerdas e sua intelectualidade, sem cair no economicismo de certa esquerda, nem no culturalismo de outros setores. Mas a solução não passa pela simples adaptação socioliberal como fez a maioria da social-democracia europeia, fator relevante de sua crise.
Nesse sentido, é preciso destacar seu caráter ambivalente, ou seja, seu pertencimento à esquerda (sobretudo sua base militante e eleitoral) e seu vínculo com os grupos de poder (parte de seu aparato institucional). Esse duplo caráter da social-democracia e as estratégias centristas ou de terceira via são fatores explicativos das dificuldades para articular uma aposta unitária e firme.
Em definitivo, é preciso integrar com diálogo e realismo todas as energias sociais progressistas das camadas populares em uma articulação complexa e plural, no que defino como novo progressismo de esquerdas, com forte componente social, ambiental e feminista. E superar o economicismo determinista ou materialismo vulgar e o culturalismo ou idealismo discursivo, ambos ainda persistentes, assim como a via centrista liberal.
É preciso pesquisar a partir da teoria crítica, bem como promover a ativação cívica e elaborar uma estratégia política transformadora para uma alternativa, sociopolítica e cultural, igualitário-emancipadora. É o que as esquerdas e os setores progressistas necessitam.
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Esquerdas e guerras culturais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU