10 Mai 2021
Na obra coletiva mais recente que codirigiu, Thomas Piketty escreveu um artigo em que analisa como a esquerda tornou-se o campo dos diplomados em detrimento dos trabalhadores.
A reportagem é de Hervé Nathan, publicada por Alternatives Économiques, 08-05-2021. A tradução é de André Langer.
Reprodução da capa do livro
É uma obra volumosa de quase 600 páginas intitulada Clivages politiques et inégalités sociales – Une étude de 50 démocraties (1948-2020) (Divisões políticas e desigualdades sociais), editada conjuntamente por EHESS, Gallimard e Seuil, e, convenhamos, é preciso uma certa coragem para mergulhar neste ambicioso “estudo de 50 democracias (1948 -2020)”, conduzido por uma equipe internacional sob a direção de Amry Gethin, Clara Martinez-Toledano e Thomas Piketty.
Homenagem seja feita aqui aos “chercheurs benedectins" ("pesquisadores beneditinos”, referência a um trabalho minucioso e intelectual] que desenterraram as séries de pesquisas pós-eleitorais de países tão diversos como os Estados Unidos, Botswana, Tailândia, Chile, França..., e forjaram os instrumentos de análise estatística que permitem as comparações. Não há dúvida de que gerações de estudantes de ciências políticas serão levadas a mergulhar nesse mundo!
Thomas Piketty escreveu o artigo sobre a França, os Estados Unidos e o Reino Unido, esses três países que conheceram desde o pós-Segunda Guerra Mundial uma evolução paralela do voto “de esquerda” (uma categoria bastante ampla que vai dos comunistas e socialistas na França, aos democratas nos Estados Unidos e aos trabalhistas na Grã-Bretanha).
“Enquanto os eleitores mais diplomados votaram mais em partidos conservadores e afins nas décadas de 1950 e 1960, o exato oposto era verdadeiro nos anos 2000 e 2010, com a participação dos votos em partidos socialistas e afins aumentando claramente com o nível de educação”, observa Piketty. Por outro lado, as categorias “de base” da socialdemocracia – trabalhadores, empregados, não diplomados – se afastaram desses partidos, e é aqui, sem dúvida, que reside o drama da esquerda que se pretendia, desde Jaurès, “a aliança de professores e trabalhadores”.
Thomas Piketty lança, então, um conceito irônico: “a esquerda brâmane”, em referência à casta dos “educados” (originalmente a dos sacerdotes) na Índia. A “esquerda brâmane” opõe-se à “direita mercantilista”, já que os cidadãos das classes proprietárias seguem votando de acordo com seus interesses. É um paradoxo: se o voto de classe desapareceu na esquerda, perdura na direita!
Em seu artigo, o economista se ateve à fria observação estatística. Mas podemos ver muito bem como a “esquerda” não apenas sofreu, mas acelerou essa mudança social que não tinha nada de inevitável. Através de escolhas estratégicas, como ele explica em uma entrevista à L’Obs:
“Nos anos 1990, foram os partidos de centro-esquerda (os democratas sob Clinton, os trabalhistas sob Blair, os socialdemocratas sob Schröder, os socialistas franceses sob Mitterrand) que foram mais longe nas reformas destinadas a desregulamentar os mercados financeiros, para liberar os movimentos de capitais sem prévia harmonização fiscal... A partir de então, esses partidos foram associados aos vencedores da ‘globalização feliz’”.
Por meio de mudanças semânticas, como quando Lionel Jospin declarou em 2002: “Meu programa não é socialista, é moderno”, enquanto seu camarada e ex-primeiro-ministro Pierre Mauroy julgava em vão: “Devemos usar as palavras trabalhadores, operários ou empregados: estes não são palavrões!”.
A teorização do adeus ao proletariado, parafraseando o filósofo André Gorz, se dá em 2011 quando o think tank Terra Nova publicou uma nota de seu fundador Olivier Ferrand intitulada “Esquerda: qual é a maioria eleitoral de 2012”, que precede a análise de Piketty: “A coalizão histórica que apoia a esquerda há quase um século, baseada na classe operária, está em declínio”, afirma.
Os operários são menos numerosos, votam menos na esquerda (Lionel Jospin obteve apenas 13% dos votos dos operários em 2002). Mas o problema não é a esquerda e a falta de perspectivas que ela oferece às categorias populares, mas o povo, “colocado em histeria pela extrema direita”, que se opõe ao progressismo da esquerda nas questões de “sociedade”: imigração, feminismo e homossexualidade.
Daí a ideia da “nota Terra Nova” (assim chamada erroneamente porque a fundação decidiu não mais defendê-la sob o impulso de seu atual diretor, Thierry Pech), de uma “nova coalizão” que reúna graduados, jovens, minorias e mulheres. “Ao contrário do eleitorado histórico da esquerda, unido por questões socioeconômicas, esta França do futuro está antes de tudo unida por seus valores culturais e progressistas: ela quer mudanças, ela é tolerante, aberta, unida, otimista e ofensiva”.
É um bom programa, mas que mascara a renúncia às reivindicações clássicas do movimento operário, como salários, estabilidade no emprego, condições de trabalho, distribuição do poder nas empresas, controle da produção... que o jugo do neoliberalismo proíbe satisfazer. Prático, mas problemático, porque, salvo as mulheres, essas categorias são minoria no eleitorado, o que é bastante incômodo quando se ambiciona conquistar o poder nas urnas. E, acima de tudo, é ignorar que as mulheres, os imigrantes, os jovens... são muitas vezes empregadas e empregados, trabalhadoras e trabalhadores cuja perda de efetivos também é em parte uma ilusão de ótica, como explica Philippe Askenazy.
Olivier Ferrand, falecido em 2012, não foi seguido, pelo menos oficialmente, pelo Partido Socialista. Cinco anos depois, a esquerda do governo ficou ainda mais confusa sob François Hollande, conseguindo dar as costas aos trabalhadores e aos empregados, homens e mulheres, com a lei El Khomri, aos jovens com a renúncia ao recebimento do controle de identidade e aos imigrantes com a caducidade de nacionalidade, a ponto de se colocar fora do jogo!
Para falar a verdade, o debate que levaria a ter que escolher entre a classe trabalhadora e as minorias progressistas não era inteiramente novo em 2011, pois havia atravessado a extrema esquerda na década de 1970 quando, após ter investido nas fábricas com os “estabelecidos”, percebeu que os trabalhadores não aderiram facilmente ao seu projeto revolucionário. Já os movimentos feministas, imigrantes, homossexuais e ambientalistas muito poderosos apareceram para algumas organizações como vetores de protesto de substituição.
E o dilema ainda parece operante hoje, pelo menos marginal, porque por trás da “disputa pela interseccionalidade” que inflama os sociólogos, aparece um debate propriamente político: sobre quais bases sociais e em torno de quais objetivos reunir uma maioria popular? Em torno dos discriminados ou em torno dos explorados? Em torno dos “racializados” ao excluir os “privilegiados” (neste caso a maioria da população...)? E assim por diante.
O historiador Gérard Noiriel lembra com razão que “a esquerda foi hegemônica toda vez que conseguiu fazer a ligação entre as reivindicações de natureza socioeconômica e as demandas relativas à luta antirracista no sentido amplo do termo”. Poderíamos acrescentar que a esquerda se aproximou do poder apenas na esteira de movimentos sociais poderosos: junho de 1936, depois maio de 68, depois dezembro de 1995...
Para complicar a equação da “fusão das lutas”, a necessária transição ecológica traz sua cota de fraturas como vimos em 2019 quando o imposto sobre o carbono, apresentado na época por socialistas e ambientalistas como o instrumento fundamental para reorientar a economia, provocou a revolta dos coletes amarelos, um movimento social de amplitude sem precedentes desde 1968.
Para a esquerda francesa, reencontrar a receptividade dos trabalhadores, decididamente não é um palavrão, sem os quais não é grande coisa, exigiria, segundo Thomas Piketty, uma “reconstrução intelectual” que permita “colocar a questão da redistribuição, da igualdade e da propriedade no centro”. No mínimo, seria uma revolução radical, no sentido de voltar às origens.
Talvez seja o que está acontecendo diante dos nossos olhos nos Estados Unidos, país onde o fenômeno da bramanização da esquerda atingiu seu clímax, muito bem simbolizado pela Hillary Clinton. O presidente Joe Biden está tentando uma síntese com um programa dirigido às minorias, contra a violência policial racista, em particular, mas não só, e também para as categorias desfavorecidas com sua política de dobrar o salário mínimo e aumentar os empregos, até os trabalhadores graças à manutenção do protecionismo e o apoio ao sindicalismo na Amazon. Ele está atacando os privilégios do capital via imposto sobre a renda e as empresas, ao mesmo tempo que se junta à coalizão pelo clima da COP21. Será instigante acompanhar a experiência, para encontrar a esquerda perdida.
Clivages politiques et inégalités sociales – Une étude de 50 démocraties (1948-2020), dir. Amory Gethin, Clara Martinez-Toledano e Thomas Piketty, éd. EHESS/Gallimard/Le Seuil, col. Hautes Etudes, 2021, 624 p., 25 €.
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Thomas Piketty em busca da esquerda perdida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU