22 Abril 2021
O recente livro de Gérard Noiriel e Stéphane Beaud, Race et sciences sociales. Essai sur les usages publics d’une catégorie (Agone, 2021) [Raça e ciências sociais. Ensaio sobre os usos públicos de uma categoria] pretende fazer a história da noção de “raça” na França e seus usos, dos anos 1880 até os dias atuais.
A entrevista é Régis Meyran e publicada por Alternatives Économiques, 17-04-2021. A tradução é de André Langer.
É pouco dizer que o livro gerou críticas e até polêmicas. Ele foi acusado de “amálgamas” e de “atalhos” em Contretemps, de ser muito polêmico em Attendant Nadeau, de defender um ponto de vista reacionário por Didier Fassin (os dois autores responderam desejando uma “ética da discussão”). O livro é visto como uma “oportunidade perdida” pelo Le Monde, mas é elogiado na Marianne e no FigaroVox – o que é surpreendente para um trabalho de pesquisadores muito marcados de esquerda e muito respeitados no meio acadêmico.
O que aconteceu? Para o historiador Gérard Noiriel, suas palavras foram instrumentalizadas e testemunham a grande dificuldade de se expressar em um espaço público polarizado de forma caricatural nas questões de identidade.
Por que se interessar pela noção de raça?
Se embarcamos nessa aventura com Stéphane Beaud, é porque a “raça” está onipresente nos noticiários da atualidade, o que não acontecia cinquenta anos atrás. Porém, sem necessariamente fazer um juízo de valor, essa observação deve questionar intelectuais e pesquisadores interessados em mudanças no espaço público.
Por que o livro de vocês despertou tanta polêmica?
Apesar da recepção tempestuosa deste livro, desta vez não escrevi nada que já não tenha dito nos meus trabalhos anteriores! Grande parte das críticas que o livro provocou na mídia consiste em julgamentos de valor ou considerações políticas, à medida que tentamos nos colocar no reino da pesquisa científica.
Eu tinha percebido o mesmo tipo de mal-entendido quando da publicação do meu livro Le Venin dans la plume (La Découverte, 2019) [O veneno na caneta] que comparou os escritos de Edouard Drumont no final do século XIX com os de Eric Zemmour: na época fui censurado de apoiar o islamismo!
Na sua opinião, a noção de raça pode ser tanto relevante, por iluminar a realidade das práticas racistas, como perigosa, por aquilo que você chama de “atribuição de identidade”... Pode explicar isso?
A noção de “atribuição de identidade” é frequentemente mal compreendida. Infelizmente, não posso resumir tudo o que escrevi sobre este assunto em poucas linhas. Portanto, remeto-os ao livro coletivo que editei sobre este tema (1).
Resumindo, eu diria que a identidade de uma pessoa (o que a torna única) é construída a partir de uma infinidade de critérios que se combinam de maneiras diferentes em cada um de nós. No entanto, uma pequena parte desses critérios passa da esfera privada para a esfera pública (que pode ser definida grosso modo como um espaço de comunicação a distância acessível a todos, estruturado pelo Estado e pelo que hoje chamamos de “mídia”).
Essa esfera pública é o lugar de uma dominação cultural exercida por aqueles que detêm o que Pierre Bourdieu chamou de “poder simbólico”: intelectuais, jornalistas, acadêmicos, políticos, especialistas etc. (ver o livro de Pierre Bourdieu, Meditações Pascalianas, Bertrand Brasil, 2001).
O processo de atribuição de identidade é uma relação de poder, que permite aos detentores desse capital simbólico impor aos dominados este ou aquele critério de identidade em detrimento dos outros. Quando esses critérios são assumidos por um Estado, eles se tornam categorias administrativas, a partir das quais são feitas estatísticas, etc.
Os critérios de identidade que foram institucionalizados por um Estado na maioria das vezes acabam sendo internalizados por indivíduos que saíram desse Estado, a tal ponto que se tornam componentes de sua identidade que a maioria deles considera naturais. Na França, o sexo, a idade, a nacionalidade e a categoria socioprofissional estão neste caso.
Por outro lado, a raça não foi institucionalizada pelo Estado republicano, ao contrário dos Estados Unidos que foram marcados por uma história muito diferente da França.
Certamente, a palavra raça foi usada pelo poder colonial como uma categoria discriminatória, mas este não era o caso na metrópole. O fato de o termo ter sido mencionado no artigo 1º da Constituição de 1958 tinha justamente a intenção de evitar que fosse utilizado como categoria de identidade. É por isso que o texto estipulava (em uma formulação recentemente alterada) que a França “garante a igualdade perante a lei de todos os cidadãos, sem distinção de origem, raça ou religião”.
É essa peculiaridade da nossa história nacional que explica por que um grande número de franceses não deseja ser definido por um critério racial. Não estou dizendo que seja certo ou errado. Só estou dizendo que esse é um problema que qualquer pessoa com um pouco de poder simbólico que mencionei deve levar em consideração.
Isso também se aplica aos pesquisadores das ciências sociais, que devem questionar a forma de dominação que correm o risco de exercer ao impor um critério de identidade que alguns cidadãos recusam. Eu entendo que esse tipo de questão não seja aceito por muitos intelectuais porque, em última análise, é o poder que exercem no espaço público que está em questão.
É o que me incomoda, por exemplo, no excelente livro de Pap Ndiaye, La condition noire (Calmann-Lévy, 2008) [A condição negra]. Este autor define a pertença racial negra pelo fato de ser estigmatizado. Mas quando lemos os resultados da pesquisa realizada pela Sofres com o auxílio do Cran [Conselho Representativo das Associações Negras] (publicada como apêndice de seu livro), vemos que mais de 30% das pessoas definidas como negras afirmam nunca ter sofrido discriminação.
A questão que estou colocando, de natureza científica, é saber como podemos incluir os indivíduos numa categoria de identidade, quando não cumprem o critério que foi utilizado para definir a categoria.
Poder-se-ia responder com a noção marxista de “falsa consciência”: pode-se imaginar que os trabalhadores digam que não são dominados quando de fato o são, pois estão despojados dos meios de produção. Não pode ser o mesmo para os negros que negariam a discriminação que sofrem como negros?
É o que diz Pap Ndiaye em seu livro ao afirmar que as pessoas que classifica entre os “negros franceses”, mas que se recusam a ser identificados pela raça, são vítimas ideológicas do “modelo republicano assimilacionista”. Esses são os tipos de argumentos que os intelectuais marxistas martelaram nos anos 1970, quando diziam que os operários que votavam na direita eram “alienados” pela propaganda da burguesia.
Esse tipo de raciocínio implica que os intelectuais são mais lúcidos do que outros cidadãos sobre sua própria identidade. O que sempre me deixou cético.
Você acredita que ao focar apenas na raça acaba-se ignorando outros critérios de estigmatização, como a nacionalidade. É isso?
Para mim, o risco é que a raça, conceito importado dos Estados Unidos, seja aplicada de maneira muito esquemática ao caso francês, que tem uma história política e institucional específica.
No entanto, Stéphane Beaud e eu insistimos fortemente no fato de se tratar de uma pesquisa empírica, com foco em problemas específicos, que devem nortear a escolha das ferramentas e das variáveis a serem utilizadas. No meu livro chamado Chocolat. La véritable histoire d’un homme sans nom (Bayard, 2016) [Chocolat. A verdadeira história de um homem sem nome] mostrei que o critério racial (definido pela cor da pele) era um fator essencial para a compreensão da história desse artista-palhaço.
Para vocês, o fio condutor da vida política francesa, desde a Terceira República até hoje, está nas tensões e oscilações entre a questão social e a questão da identidade, tanto na esquerda como na direita?
Na verdade, é um padrão global que apareceu na década de 1880, que sinaliza uma bipolarização da vida política francesa: de um lado, o polo da direita, da segurança nacional, que incorpora o conceito de raça; de outro, o polo sócio-humanitário, ou seja, a esquerda jauressiana que valoriza a classe operária, mas que consegue, na época do caso Dreyfus, integrar questões relativas ao que hoje chamamos de luta contra as discriminações.
A esquerda foi hegemônica todas as vezes que conseguiu fazer a ligação entre as demandas socioeconômicas e as demandas relativas à luta contra o racismo (no sentido amplo do termo). Este foi o caso do Bloco de Esquerda na época do caso Dreyfus, depois sob a Frente Popular em 1936 com uma mistura de antifascismo e luta dos trabalhadores, e na época da vitória de François Mitterrand nas eleições presidenciais (1981). O programa comum da esquerda reunia, de fato, medidas destinadas a combater as desigualdades socioeconômicas e medidas contra as discriminações de que eram vítimas as mulheres e as minorias.
Mas, precisamente, você está dizendo que a classe é mais determinante do que a raça?
Eu me dei conta de que esse tipo de pergunta era de grande interesse para os jornalistas, mas, mais uma vez, feita em um nível tão geral, não fazia sentido para mim.
Se você tomar os controles da polícia ou a entrada em boates, é provável que a raça (definida com base na cor da pele) seja mais importante do que a classe.
Por outro lado, em muitas outras áreas, é o critério socioeconômico que é decisivo. Vejamos o exemplo amado por acadêmicos que estão na vanguarda dos estudos da “questão racial”. Como mostramos em nosso livro, um dos seus principais argumentos é denunciar a “colorblindness”, a cegueira à cor que explicaria a sub-representação das “minorias” em nosso espaço político.
No entanto, essa sub-representação é ainda mais flagrante se levarmos em conta o critério social, já que hoje não há deputado que tenha saído do mundo operário, embora representem 20% da população ativa. Por que os defensores da “interseccionalidade” nunca levam a sério esse tipo de discriminação na esfera pública?
O último ponto que gostaria de enfatizar é que, em uma pesquisa, os critérios que definem as pessoas não estão alinhados uns ao lado dos outros. Eles estão intimamente relacionados entre si. A maioria das pessoas que alguns agora definem apenas por sua raça, são muitas vezes oriundas da imigração pós-colonial, também fazem parte das classes populares. Incluem homens e mulheres, de uma determinada nacionalidade de origem, que podem compartilhar uma determinada crença religiosa, etc.
Quando levamos em conta todos esses critérios, podemos afirmar, como fazemos no livro, que a maioria das minorias pertence às classes populares, elas são inclusive dominadas dentro da classe dominada. Aqueles que falam em nome dessas minorias fazem parte da classe média altamente instruída. Eles têm, pois, a oportunidade de se expressar. E isso é muito bom!
Mas faz uma grande diferença em relação às classes dominadas socioeconomicamente, como os trabalhadores, que não podem falar publicamente porque não têm porta-vozes oriundos diretamente de suas fileiras. Tornaram-se “classes-objetos”, como dizia Pierre Bourdieu em relação aos camponeses, numa época em que os trabalhadores eram representados no Partido Comunista.
Além disso, os acadêmicos Pap Ndiaye ou Louis-Georges Tin, dentro do Cran, nunca tiveram a intenção de construir um movimento ao qual aderissem apenas pessoas definidas como negras. O sociólogo Michel Wieviorka fez desde o início parte do conselho científico desse movimento. Nisso, a acusação de fechamento identitário não é injusta?
Você teria que me dizer exatamente quem falou em fechamento identitário. De qualquer forma, releia o nosso livro e você verá que não sou eu. Deve-se entender que faço uma diferença capital entre o que diz respeito à pesquisa em ciências sociais e o que diz respeito à ação política ou associativa. Escrevo claramente neste livro que não cabe aos pesquisadores controlar a ação dos ativistas.
Como cidadão, posso obviamente dar a minha opinião sobre uma determinada ação realizada pelo Cran. Como pesquisador, eu me limitarei a analisar os efeitos políticos que essas ações podem ter sobre o público, sem fazer um juízo de valor. Também discuto os usos da história que esses ativistas podem fazer para defender sua causa.
Tomemos o exemplo do blackface, este espetáculo popular em que os brancos se transformam em negros retratando o personagem Jim Crow (2). Louis-Georges Tin interveio para pedir um boicote à peça Às Suplicantes de Ésquilo, encenada na Sorbonne, dando uma versão caricatural da história do blackface. Veja a reedição do belo livro do historiador americano William T. Lhamond, Peaux blanches, masques noirs (Zones Sensibles, 2021) [Peles brancas, máscaras negras], prefaciado por Jacques Rancière e para o qual estou assinando o posfácio. Isso explica muito claramente que o blackface é o produto de uma história muito longa, muito complexa e muito contraditória, que não se pode reduzir de forma alguma à caricatura de brancos maquiando seus rostos para humilhar os negros.
Minha crítica a esse ponto de Pap Ndiaye é que ele escreve em seu livro que deseja permanecer em um nível estritamente científico, mas ao mesmo tempo diz que busca promover a emergência dos negros na França como uma minoria construída em torno deste critério racial. Para mim, esse objetivo não é mais uma questão de ciência, mas de ação política.
Para concluir, penso que a melhor forma de combater o racismo hoje é enfrentarmos nós mesmos as contradições que este tipo de luta traz para impedir que Valeurs Actuelles, Le Figaro ou Marianne se apropriem para alimentar o seu discurso reacionário. É indiscutível que hoje, nessas questões, a direita é hegemônica.
Cabe a nós refletir sobre os meios que devemos usar para inverter a maré.
1. Gérard Noiriel (dir.), L’identification. Genèse d’un travail d’Etat, Belin, 2007.
2. Jim Crow: personagem de Minstrel show, criado por Thomas D. Rice, que ficou famoso com a música Jump Jim Crow. O termo, mais tarde, definiu de maneira pejorativa e racista os negros americanos, para finalmente designar as leis segregacionistas postas em prática nos Estados do sul a partir de 1877.
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“Podemos impor a categoria ‘raça’ às pessoas que a recusam?” Entrevista com Gérard Noiriel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU