11 Mai 2021
Pergunto-me: não é mais conforme ao Evangelho e à razão em liberdade reconhecer que a orientação para pessoas do mesmo sexo está “ordenada de maneira diferente”? Espero que, não tardando muito, seja possível ler isso no Catecismo. Já aconteceu antes com a pena de morte e a chamada guerra justa.
A opinião é de Jesús Martínez Gordo, padre, teólogo e professor do Instituto Diocesano de Teologia e Pastoral de Bilbao, na Espanha.
O artigo foi publicado em Settimana News, 10-05-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A Igreja não tem o “poder de abençoar uniões de pessoas do mesmo sexo”, porque “não abençoa nem pode abençoar o pecado”. Foi o que afirmou, em meados do mês passado, o cardeal espanhol Luis F. Ladaria, presidente da Congregação para a Doutrina da Fé, em um esclarecimento (Responsum), cuja publicação contou com o “consentimento” do papa.
Mas, como também se sabe, Francisco manifestou em 2018 a Juan Carlos Cruz – vítima do padre chileno Fernando Karadima e recentemente nomeado membro da Comissão Pontifícia para a Proteção dos Menores – que não achava relevante o fato de ele ser gay: “Deus te fez assim e te quer assim, e eu não me importo. O papa te quer assim. Tens que ficar feliz com quem tu és”.
Também se sabe que, na exortação apostólica pós-sinodal Amoris laetitia, depois de desqualificar toda estigmatização dos homossexuais, ele defendeu que nos é impedido “julgar com dureza aqueles que vivem em condições de grande fragilidade” e não prestar a devida atenção ou desprezar as sementes de verdade e bondade que transparecem em toda relação.
Talvez, por isso, pode não ser descabido indicar que uma exortação apostólica é algo como uma lei orgânica em comparação com uma ordem ministerial que, no melhor dos casos, viria a ser tal esclarecimento do cardeal Ladaria.
Parece-me oportuno lembrar isso particularmente a quem tenta resolver um problema de índole pastoral com argumentos exclusivamente jurídicos e de autoridade. Pois bem, entendo que também não encontram nesse campo o solo firme que acreditam descobrir nesse esclarecimento do dicastério, não de Francisco, embora ele tenha autorizado a sua publicação, assim como, por outro lado, é obrigatório para todos os organismos da Cúria.
As reações não demoraram a chegar: diante das reações eufóricas dos partidários das “verdades inegociáveis” – nas quais os fãs dos dois papas imediatamente anteriores se sentem tão à vontade – muitas paróquias austríacas responderam hasteando, do lado de fora das suas portas, a bandeira do arco-íris em solidariedade com a comunidade LGBT+ e em protesto pelo que entendem ser uma “posição obsoleta”.
O próprio cardeal arcebispo de Viena manifestou “não estar contente” com tal esclarecimento. Em 2015, por ocasião do segundo Sínodo em que se abordou essa questão, ele já havia defendido – junto com outros bispos – a existência de “elementos positivos” nas uniões fora do matrimônio canônico. Por isso, defendeu, a Igreja tinha que deixar de ser uma instância amarga em nome de uma verdade imutável e se dispor a favorecer o “bem possível” que fundamenta e transparece em todas as relações humanas (inclusive as homossexuais). E, estimulando esse “bem possível”, projetá-lo ao futuro.
Acho que esse é o ponto mais importante da diferença entre o pontificado de Francisco e os de João Paulo II e Bento XVI, magnificamente apresentado pelo próprio cardeal Schönborn em uma entrevista publicada naquele ano na revista La Civiltà Cattolica, a revista oficiosa do Vaticano.
Naquela ocasião, o cardeal de Viena se apresentou como uma pessoa que havia sofrido o divórcio de seus pais e de seus avós, e que havia vivido como poucos a realidade de fazer parte de uma família patchwork (retalho, mosaico), uma situação, confessou, que infelizmente estava a caminho de se tornar algo habitual em tantas pessoas dos nossos dias.
Talvez por isso, continuou ele em seu testemunho, ele também tivera a oportunidade de reconhecer, como fizera Jesus de Nazaré, elementos de verdade e santidade inclusive em situações que, segundo os partidários das chamadas “verdades inegociáveis”, eram intrinsecamente imorais.
Foi o que ele transmitiu ao seu entrevistador quando lhe contou que, enquanto estudava em Paris (Le Saulchoir), costumava passar por baixo do Sena, a caminho do convento de Evry. Ali, em uma das pontes, vivia um casal de mendigos formado por uma mulher que havia sido prostituta e um homem cujo passado desconhecia. Eles não eram casados e não frequentavam a igreja. Mas, cada vez que passava por ali, confessava o cardeal Schönborn, e os via se tratando com carinho e ternura, não podia deixar de dizer a si mesmo: “Meu Deus, eles caminham juntos em meio de uma vida que é particularmente dura e difícil para eles! E se ajudam mutuamente! Como é bom e belo que esses dois pobres se socorram em meio a tanta desolação!”. Deus estava presente ali, no meio deles. E transparecia nesses gestos de carinho e de ternura. E no apoio que se prestavam.
Essa dupla referência à sua jornada existencial como membro de uma família patchwork e à beleza e ao amor que emergiram em meio ao claro-escuro da vida, no caso dos mendigos de Paris, o levava a destacar três pontos que ele entendia como os mais determinantes na mudança de época iniciada com o pontificado de Francisco: o primeiro, a passagem de um olhar excludente – frequentemente ancorado nos livros e nas “verdades inegociáveis” – a outro inclusivo e fundado na figura do Bom Pastor; o segundo, a raiz tradicional desse olhar; e o terceiro e último, a importância de acolher, acompanhar, discernir e integrar, em vez de condenar.
Não me admira que algumas centenas de padres na Alemanha, assim como na Áustria e na Suíça, tenham concordado em abençoar, no dia 10 de maio, desafiando o esclarecimento vaticano, as “uniões de pessoas que se amam”, independentemente de serem casais de lésbicas, gays, bissexuais ou transexuais. Também não me surpreende que esteja aumentando o número de bispos contrários a punir quem se soma a essa campanha nem que haja jovens que, como aconteceu em Antuérpia, tenham se desfiliado da Igreja Católica pedindo o cancelamento de suas certidões de batismo.
Na verdade, não me surpreende que, entre nós, no País Basco, o bispo de San Sebastián, Dom Munilla, propôs criar “uma corrente de oração e jejum em favor da unidade da Igreja na Alemanha” e da sua comunhão com o magistério eclesial. Suponho que ele esteja mais preocupado com tal unidade do que com uma possível e desejável mudança do Catecismo, que deixe no baú das memórias a tese segundo a qual a orientação para pessoas do mesmo sexo “é objetivamente desordenada”.
Pergunto-me: não é mais conforme ao Evangelho e à razão em liberdade reconhecer que a orientação para pessoas do mesmo sexo está “ordenada de maneira diferente”? Espero que, não tardando muito, seja possível ler isso, ou algo semelhante, no referido Catecismo. Já aconteceu antes com a pena de morte e a chamada guerra justa. Por que não com as uniões homossexuais?
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É proibido abençoar as uniões LGBT? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU