15 Abril 2021
Pecado ou crime, título do livro, são as lentes através das quais a Igreja de Roma tem olhado durante séculos e, portanto, julgado os abusos cometidos por seus membros contra menores. Voltar às mais antigas formas de compreendê-la, entre moral e direito, e sancioná-la, são operações necessárias para explicar a fenda que, desde o final do século XX, se abriu entre as hierarquias da Igreja e a opinião pública. A investigação histórica talvez não possa explicar o mecanismo profundo da aberração, assunto para perícias médicas e legais. Mas pode ajudar muito a iluminar as circunstâncias que tornaram possível sua replicação impune dentro da Igreja. Um dia, em fevereiro de 1985, em uma pequena cidade na Louisiana, um garoto denunciou um padre às autoridades locais, acusando-o de abusar dele quando tinha 12 anos. Gilbert Gaute, assim se chamava, acaba sob investigação e nos jornais. Sobre suas mais de 150 vítimas se realiza investigações e, acima de tudo, se escreve e se comenta. Numa história secular de silêncio, estoura a palavra, aquela da vítima e aquela da mídia que desde então não pararão de dar voz a outras histórias. Da Louisiana a Massachussets, do Canadá ao Chile, da Austrália à Europa entre Irlanda, Áustria, Alemanha, França, Polônia e Espanha, reaflorarão memórias de injunções de silêncio e vergonha, tomando forma em grupos de ativistas e movimentos de opinião (significativamente, na Itália isso aconteceu de maneiras menos vistosas). Aqui começa a história reconstruída por Francesco Benigno e Vincenzo Lavenia.
A reportagem é de Fernanda Alfieri, publicada por Domani, 14-04-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Peccato o crimine
Peccato o crimine (Pecado ou crime, em tradução livre), o título do livro publicado pela ed. Laterza, são as lentes através das quais a Igreja de Roma olhou durante séculos e, portanto, julgado os abusos cometidos por seus membros contra menores. A aplicação dessas categorias aos atos, e continuando a observá-los e julgá-los como tais, teve o efeito de tornar invisíveis aqueles que foram vítimas daquele pecado e crime: meninos e meninas, garotos e garotas, que não raramente perderam assim seus vidas e, quando sobreviveram, permaneceram sem voz. Não acreditados - durante o longo tempo em que a palavra só era dada a quem era considerado capaz de raciocinar plenamente, coisa de adulto - ou até mesmo punidos, por serem suspeitos de cúmplice sedução.
Hoje, com um termo que chega da medicina psiquiátrica do século oitocentista, aquele pecado e crime se chama, justamente, pedofilia. Voltar às formas mais antigas de compreendê-la, entre moral e direito, e sancioná-la (ou, mais frequentemente, de não a sancionar), são operações necessárias para explicar a fenda que, desde o final do século XX, se abriu, entre as hierarquias da Igreja e a opinião pública: as primeiras reticentes e a segunda desconcertada diante do surgimento, de uma regurgitação\de casos isolados que se transformou numa avalanche, de violências até então caladas. Mas devemos também olhar para fora da história da Igreja e observar a formação de novas sensibilidades na sociedade civil, atentas aos direitos do indivíduo desde os primeiros dias de vida e à escuta da palavra de quem sofreu violências, sejam elas motivadas por etnia, religião ou gênero. É o "paradigma da vítima", hoje, que move as reivindicações políticas que até meados do século XX eram movidas pela crença em um futuro de progresso a ser realizado. O impulso agora nasce do trauma: a ferida ganha voz, é denunciada, busca-se o ressarcimento, é combatida.
Não há polêmica no livro que Benigno e Lavenia dedicam a essa longa história, operação delicada devido ao tema escorregadio, às lacunas nos documentos e à parcialidade das reconstruções disponíveis. Não interessa atacar, alimentar uma retórica do escândalo, alimentar teses essencialistas que associam estado clerical e pedofilia (prática difundida nos mais diversos contextos, a começar pela família). O que interessa é entender.
Assim, a história, disciplina da justa distância aplicada a questões que nos tocam profundamente, coloca o leitor em condições de atravessar lucidamente essa história enorme por crueldade e, à primeira vista, incompreensibilidade. Por que essas brutalidades repetidas? E por que a igreja não cuidou dos mais indefesos, protegendo ao contrário os algozes? A investigação histórica talvez não possa explicar o mecanismo profundo da aberração, assunto para perícias médicas e legais. Mas pode fazer muito para iluminar as circunstâncias que possibilitaram sua replicação impune dentro da Igreja: um entrelaçamento entre mentalidade e organização da instituição, entre doutrina e disciplina.
A primeira parte do livro acompanha os eventos, desde os anos 1980 até hoje, incluindo reportagens jornalísticas, processos judiciais, declarações oficiais da igreja. Uma sucessão impressionante de casos de abuso se desenrola seguindo um esquema parecido: autoridades que sabiam e não agiram. As razões para a aparente repetição das mesmas situações são os modos de governar uma igreja organizada por vértices e dioceses, compactos nos princípios da correção fraterna de seus membros (“Ora, se teu irmão pecar contra ti, vai, e repreende-o entre ti e ele só; se te ouvir, ganhaste a teu irmão”, Mateus 18,15), do segredo do pecado confessado e da prioridade da tutela da honra. Coisas de outros tempos, ideias abstratas, ao que parece, mas capazes de impactar as vidas passadas e presentes de milhares de pessoas. Sua concretização no longo tempo da história emerge da segunda parte do volume, que acompanha a moral cristã da sexualidade em sua elaboração, desde o Antigo Testamento até o ponto da Contrarreforma, finalmente até sua crise no limiar da modernidade e na sua aplicação nos tribunais da fé.
Foi assim tecida uma scientia sexualis que distingue o lícito do ilícito e, sobretudo, clero e povo, atribuindo ao primeiro uma necessária separação, marcada pela abstinência sexual. Somente governando a própria carne pode-se governar o rebanho. As sanções contra quem se mistura com as mulheres se multiplicam com o avançar da Idade Média, também para evitar que a geração de filhos de padres disperse os bens de uma Igreja que se estrutura como instituição espiritual e temporal. As relações com os garotos, menos graves pelas consequências materiais, são avaliadas em um outro plano: porque ocorrem não com menores (limiar que na época se situava por volta dos doze anos), mas com pessoas do mesmo sexo. É o pecado mais grave não porque viola aqueles que o sofre, mas porque infringe a ordem da natureza e mancha a alma e o corpo daquele que o comete.
Para as inquisições da Espanha e Portugal é crime de heresia, punível com pena máxima. E se ocorre dentro do sacramento da penitência, durante a confissão, é um crime de sollicitatio ad turpia, que induz a praticar atos "torpes" porque colocam o prazer antes da razão. Isso é vergonhoso para qualquer ser humano, mas ainda mais para aquele que, coberto pelo sacramento da ordem, é obrigado a um controle exemplar, aos seus próprios olhos e, sobretudo, aos olhos dos outros.
De fato, a honra só é perdida se houver um público. E a honra arruinada do indivíduo também compromete a da comunidade a que pertence. É por isso que, na práxis, o sacerdote culpado não é condenado, mas discretamente advertido, no máximo mudando sua sede. Isso foi feito por muitos bispos, os menos conhecidos (para citar os primeiros casos estadunidenses) Fitzgerald, Penny, O'Connell, e o mais conhecido Bernard Francis Law de Boston, que diante da acusação de ter encoberto dezenas de sacerdotes abusadores (o famoso caso "Spotlight") na época teria apresentado sua renúncia duas vezes ao Papa João Paulo II.
Foram aceitas apenas na segunda vez, por motivos de saúde. A sombra de uma falta de linha dura contra a pedofilia clerical espalhou-se assim sobre o pontificado de Wojtyla. Ele o definiu como o "pecado mais grave contra o sexto mandamento", confiando sua competência à Congregação para a Doutrina da Fé para uma disciplina mais eficaz. Mas, tanto nas declarações oficiais quanto nas práxis, ele deixou colocar no centro o que parecia ser uma prioridade para os fiéis e os leigos: que se fizesse justiça proporcional ao desastre cometido, fora da exclusividade da jurisdição eclesiástica. Seu sucessor teria lamentado a má influência de uma época hedonista, mal tolerada por um clero dedicado à separação em um mundo que incita ao consumo sexual. Justamente essa separação, entendida como cultura de autoridade que justifica o abuso, é agora apontada por Bergoglio como responsável pelos crimes sexuais contra indefesos. Mas continua a pairar, nas retóricas oficiais, a antiga associação entre pedofilia e homossexualidade, unidas por serem "contra a natureza": uma categoria que ainda indica como prioridade a proteção da ordem objetiva das coisas, da qual Deus é criador e guardião, e não os direitos invioláveis dos indivíduos.
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Assim a igreja confinou o crime da pedofilia no âmbito do pecado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU