13 Abril 2021
“Francisco empreendeu, à luz do Vaticano II, uma reforma da Igreja, uma Igreja Povo de Deus, uma comunidade de batizados que receberam o Espírito e o instinto da fé, uma pirâmide invertida, um poliedro com muitos povos e culturas, em caminho sinodal (Episcopalis communio), onde todos escutam, dialogam e são ouvidos, onde se deve ouvir o grito dos pobres e dos pequenos e se levar em conta a piedade do povo, um lugar teológico”, escreve Víctor Codina, jesuíta boliviano, em artigo publicado por Religión Digital, 13-04-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Nos tempos de João XXIII, a revista francesa Études publicou um célebre artigo intitulado “O mistério Roncalli”, sobre um cardeal idoso, filho de camponeses de Sotto il Monte, que vivera durante muitos anos em países do Leste Europeu, longe de Roma, chegasse a ser Papa depois de Pio XII e que com um gesto inesperado e profético convocasse o Concílio Vaticano II, sem ter medo do vespeiro em que ele se metia, é um mistério.
Algo semelhante ocorre hoje com Jorge Mario Bergoglio: um portenho, vindo do fim do mundo, em sério conflitos políticos com a ditadura argentina e com sua ordem religiosa, eleito bispo de Roma para suceder Bento XVI, é um mistério. Talvez por isto pede continuamente para que rezem por ele.
O mistério Bergoglio se engrandece depois de oito anos de pontificado, pois reverteu o inverno eclesial e impulsionou uma incipiente primavera eclesial, frágil e ameaçada, mas que vai abrindo portas e avançando.
No fundo, Francisco tentou prosseguir o impulso do Vaticano II, freado no tempo de seus dois sucessores imediatos. Seus opositores são os que nunca aceitaram o Vaticano II.
Francisco, seguindo a linha do Magistério Episcopal Latino-americano, de Medellín (1968) a Aparecida (2007), lê o Vaticano II não desde o mistério Trinitário, como Lumen Gentium, mas desde baixo, como Gaudium et spes, desde os sinais dos tempos, desde os pobres, migrantes, excluídos e descartados. Sua primeira viagem para fora de Roma foi a Lesbos (Nota de IHU On-Line: o correto é Lampedusa, em 8 de julho de 2013) e sua recente viagem ao Iraque são símbolos que expressam seu desejo de uma Igreja de e com os pobres, hospital de campanha, samaritana, como o bom samaritano da parábola evangélica.
Este olhar atual e desde baixo o leva a defender a nossa casa comum (Laudato Si'), a convocar o Sínodo Pan-Amazônico e apresentar seus sonhos sociais, culturais, ecológicos e eclesiais em seu belo texto Querida Amazônia.
Já no conclave que o elegeu Papa, o cardeal Bergoglio ofereceu uma interpretação original de Apocalipse 3, 20: “Olha, estou à porta e bato”, dizendo que o que Jesus pediu foi que abríssemos a porta para ele sair. Temos que ser uma Igreja que sai, que vai às periferias geográficas e existenciais de hoje.
Em Francisco existe uma preocupação que ultrapassa os muros eclesiais: ecologia, paz, fraternidade universal, diálogo entre as religiões, condenando junto com elas o uso do nome de Deus para matar irmãos, compartilhando os bens da criação entre todos, defesa das mulheres, idosos, jovens, indígenas e crianças, não construindo muros, mas pontes de diálogo entre povos, culturas e religiões (Fratelli Tutti). No meio da pandemia, ele deu um grito de esperança: “Não tenhais medo”, mas acrescentou: “Ou nos salvamos todos, ou não se salva ninguém”. Agora exige vacinas para todos, não apenas para os países ricos.
Essa postura profética tem provocado críticas de diversos setores políticos e econômicos de países ricos e multinacionais, que o acusam de ser ingênuo, ignorante, utópico e comunista. Acrescentam-se as críticas dos setores eclesiais, muitas vezes em conluio com os setores políticos, que o acusam de não saber teologia e de ser herege.
Pois Francisco empreendeu, à luz do Vaticano II, uma reforma da Igreja, uma Igreja Povo de Deus, uma comunidade de batizados que receberam o Espírito e o instinto da fé, uma pirâmide invertida, um poliedro com muitos povos e culturas, em caminho sinodal (Episcopalis communio), onde todos escutam, dialogam e são ouvidos, onde se deve ouvir o grito dos pobres e dos pequenos e se levar em conta a piedade do povo, um lugar teológico. Foi muito duro contra o clericalismo, uma verdadeira lepra da Igreja e contra os abusos sexuais que são abusos de poder.
Obviamente, esta reforma da Igreja nasce do Evangelho, da atividade missionária da Igreja (Ad gentes). Em Francisco, a sensibilidade franciscana para com os pobres e a criação é enriquecida pela experiência inaciana de discernimento no seguimento de Jesus. Por isso, promove a alegria da evangelização (Evangelii gaudium), que não é doutrinar nem fazer proselitismo, mas convidar ao encontro pessoal com o Senhor, iniciar a fé, na Igreja da Palavra, da Eucaristia e da diaconia fraterna, sem desânimo da acédia, ou mundanismo espiritual, mas com fervor evangélico e resposta ao apelo universal à santidade (Gaudete et exsultate).
Existem ainda muitas questões pendentes para Francisco: a situação das mulheres na Igreja, a postura eclesial em relação a homossexuais e LGBTIs, a abertura do ministério ordenado a todos os tipos de fiéis (homens e mulheres, celibatários e casados), a participação do povo na eleição dos bispos, a reforma da Cúria do Vaticano, a descentralização do governo eclesial e o empoderamento das Igrejas locais, superando a identificação do bispo de Roma com o chefe de Estado do Vaticano, etc., etc.
Tanto o mistério Roncalli como o mistério Bergoglio são inexplicáveis sem a fé no mistério do Espírito do Senhor que atua desde baixo, se derrama sobre a Igreja e sobre o mundo e dirige a história e a criação para a plenitude escatológica do Reino.
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O mistério Bergoglio se engrandece depois de oito anos de pontificado, pois reverteu o inverno eclesial. Artigo de Víctor Codina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU