Por: André | 27 Abril 2013
Após uma conferência no Clube Faro de Vigo, em que apresentou o seu livro Cuidar a Vida, Juan Masiá S.J., surpreendeu-se com o fato de que suas palavras tenham sido novas ou libertadoras para o auditório: “É um sintoma desconcertante do quanto estávamos mal”, opina, e o compara com a esperança que está produzindo o novo Papa. “Chamam a atenção de todo mundo os gestos de Francisco, mas a verdade é que deveriam ser a coisa mais normal do mundo”, afirma.
Especialista em bioética e blogueiro de Religión Digital, Masiá reconhece que “o inverno eclesial foi muito longo”, mas ironiza, ao mesmo tempo, com as expectativas de mudança radical na Igreja que parece que estão se abrindo: “Às vezes presumimos dar um giro de 360 graus, sem nos darmos conta de que com um giro de 360 graus estamos voltando ao lugar em estávamos antes”.
A entrevista é de José Manuel Vidal e publicada no sítio Religión Digital, 24-04-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
O que achou da conferência de ontem?
Estive à vontade, porque se via um público muito interessado nestes temas.
Você disse que os religiosos não são as pessoas mais indicadas para falar sobre sexualidade, e isto causou certa polêmica.
Bom, me parece que não é nenhuma novidade e que é bastante evidente. Deveríamos reconhecer isso. Depois de anos no campo da ética, de temas sociais e de justiça, etc., uma vez me disseram que o professor que dava ética sexual havia se aposentado, e me pediram para que o substituísse. Minha primeira reação foi dizer “não”, sobretudo porque creio que uma disciplina chamada “ética sexual” não deveria existir, mas que deveria ser uma ética das relações, muito mais ampla em todos os sentidos. Também pensava que uma disciplina como essa requeria a contribuição de vários professores, um psicólogo, um sociólogo, um sexólogo... Interdisciplinariamente, e com um enfoque da ética que não fosse o do semáforo, mas o da bússola.
Você se sente, às vezes, como um libertador de cargas morais? Acredita que as pessoas sentem alívio depois de ouvir as suas explicações sobre a moral sexual?
Sim, mas isto me desconcerta, porque se o que eu digo é libertador ou soa como novo, é sintoma do quanto estávamos mal. Porque creio que o que digo neste livro não é original (o editor não vai gostar disso), mas que são as coisas mais tradicionais do mundo, que poderiam ser ditas citando Santo Tomás ou a teologia moral católica. Que estas coisas sejam novas é como o que está ocorrendo agora mesmo com alguns gestos do Papa Francisco: chama a atenção de todo mundo a sua maneira de se apresentar, mas a verdade é que deveria ser a coisa mais normal do mundo. Isto quer dizer que estamos acostumados com algo bastante anormal.
Você acredita que na Igreja deveria ser posto em prática uma campanha libertadora em relação à moral sexual?
Jesus disse no Evangelho: “não coloquem sobre os ombros dos outros a carga que vocês mesmos não conseguem carregar”; e também: “aquele que estiver cansado e sobrecarregado, venha a mim que eu o aliviarei”. É simples.
Você acredita que os primeiros passos do novo Papa vão nessa linha?
Sim, mas com toda naturalidade. Nota-se que esta maneira de agir é a mesma que ele teve antes como bispo. Há muitos bispos assim pelo mundo, agindo dessa maneira.
Na Europa chama muito a atenção este comportamento. Acredita que na América Latina, ao contrário, a maioria dos bispos é assim? Na Espanha, estamos acostumados com outro tipo de bispo?
Não vou me meter a criticar o bispo daqui, mas posso dizer que no Japão estou tratando com muitos bispos que me parecem ter esse estilo.
O Papa Francisco desencadeou um clima de expectativa?
Sim, mas não é nada em comparação com o grandíssimo clima de expectativa que se desencadeou com João XXIII e com o Concílio Vaticano II, e, contudo, depois veio a involução, a marcha à ré, etc. Agora estamos celebrando os 50 anos da Pacem in Terris. No documento com o qual Bento XVI proclamou o Ano da Fé coloca-se o Catecismo e o Código de Direito Canônico no mesmo nível, como se fossem do mesmo peso e da mesma importância que os documentos constitucionais do Vaticano II. Isto foi o clímax da involução destes últimos mais de 20 anos (quer dizer, dos dois últimos pontificados).
Acredita que esse ciclo terminou e que o pêndulo eclesial se moderou?
Gostaria que fosse assim, mas não queria criar excessivas expectativas.
Esse é um dos riscos que o Papa Francisco corre, o de despertar muitas expectativas?
Os dois grandes obstáculos em que o Concílio Vaticano II tropeçou foram a dificuldade da reforma da teologia e da reforma da Cúria. Por que os presidentes dos dicastérios do Vaticano, só para dar exemplo, têm que ser bispos? Se é ordenado bispo deveria ter uma diocese. É algo que, teologicamente, não tem sentido. Por que o bispo é superior ao secretário que tem abaixo? Francisco não pode nomear uma pessoa, por mais adequada que seja, para um cargo? Há toda uma estrutura que Bento XVI criticou muitas vezes nas homilias e discursos: o carreirismo eclesiástico. A teologia é outra coisa, e o Papa está recordando isso através do serviço: ter um posto não significa que lhe deem uma condecoração ou que suba na classificação. Mas esse tipo de reforma estrutural é muito mais difícil que um simples gesto.
Onde estão as resistências que Francisco pode encontrar, caso decidir realmente passar dos gestos às reformas concretas?
As reformas nunca são nem serão feitas por uma só pessoa, e os obstáculos tampouco provêm de poucas pessoas. Se a causa da crise econômica fossem duas ou três pessoas, se poderia dizer que são “os maus”, mas ruim realmente é o sistema anônimo. A questão é como se muda e a partir de onde se muda. E dentro da Igreja vale a mesma coisa.
Não se conformaria com algum pequeno avanço?
Sim, parece que estamos saindo, como dizia Rahner, do “inverno eclesial”. E foi um longo inverno. Creio que agora se respira, é como se por fim pudéssemos ouvir depois de ter os ouvidos tapados. Creio que agora temos essa sensação.
Se o Papa lhe perguntasse, o que lhe aconselharia como primeira medida?
Dir-lhe-ia que siga sendo como é. Essa questão de aconselhar me lembra quando os religiosos nos reuníamos para pensar o que deveríamos mudar no nosso estilo de vida, e começávamos a discutir, e, ao final, o que se acabava mudando era o chocolate do forno. Eu poderia aconselhá-lo em coisas sobre a eleição dos bispos, sobre a mulher na Igreja... Mas necessitamos de uma mudança mais radical.
Um giro?
Sim, um giro como o do Vaticano II. Quando saiu o documento Lumen Gentium, antes que fosse votado o texto definitivo, o texto começava dizendo “a Igreja é luz para o mundo”. Mas então o cardeal Montini disse que afirmar que a Igreja é luz do mundo é muito presunçoso. Que a luz do mundo é Cristo, e a Igreja é um espelho que trata de refleti-lo. Aí se deu um giro de 180 graus, quando o Concílio, em vez de dizer que a Igreja tinha a resposta para todos os problemas, disse que Cristo é a luz do mundo, e que nós tão somente aspiramos a refleti-la. Então, temos que nos converter continuamente, e buscar todos juntos a unidade da humanidade, sendo sinal dela. Mas, veja todos os problemas que temos agora, desde o Banco Vaticano à pederastia... Temos que reconhecer que não somos o melhor espelho. O Papa Francisco alude a isto, quando falada importância de reconhecer e pedir perdão, em vez de reconhecer o mal do passado. Isto também é um passo gigantesco. Acontece que, às vezes, com estes giros, aqueles que supomos sejam de 360 graus, não nos damos conta de que na verdade, com um giro de 360 graus, estamos voltando ao ponto de partida. Então, perdoe-me a ironia, melhor que demos um giro de 180 graus.
A primavera que parece vir deve muito a pessoas da Igreja como você ou como Andrés Torres Queiruga, que continuaram dando testemunho e sendo livres em momentos difíceis?
Não vejo isto como quando se está na oposição e depois seu partido político chega ao poder, e em pouco tempo você faz as mesmas coisas que os anteriores. Se a Igreja somos todos, então a mudança também é de todos.
Mas essa dinâmica não vinha sendo aplicada. Não é verdade que muitas pessoas não o consideram Igreja? Você não se sentiu excluído?
É que aqui no nosso país [a Espanha] há um fenômeno um pouco peculiar que é essa tradição inquisitorial dos dois extremismos, da agressividade... Na Espanha, não houve transição cultural, não se deu o passo para a capacidade de poder compartilhar e opinar diferente, ter ideias diferentes e discuti-las, sem que isso signifique insultar, nem quebrar o pau. Aquilo que dizia Unamuno sobre a inveja espanhola. Nisto não houve transição. Os fanatismos estão muito arraigados, e isto se vê também dentro das instituições. Como se costuma dizer, “se você entrega a cabeça do Batista, em troca recebe um prêmio”. Se você denuncia alguém, alguns anos depois terá uma mitra. Às vezes, fomenta-se a denúncia, cartas anônimas, etc. E isso também é um problema fora da Igreja. A situação política espanhola delata a incapacidade em relação à democracia, ao debate plural.
Deixarão que Francisco faça mudanças?
O deixaremos (porque os que podem impedir não são um grupinho ao lado, a Cúria; temos que nos incluir). Ou o apoiamos ou o freamos.
E como podemos apoiá-lo? Como ele poderia fazer para contentar a uns e outros? Acredita que buscará o consenso?
Mas não é o consenso dos políticos, que sempre é de meias palavras. Precisamos convergir nas coisas verdadeiramente essenciais. Um exemplo: há alguns dias estava em um grupo discutindo sobre a homofobia, e havia algumas pessoas que diziam que não se deve chamar casamento a união homossexual, enquanto outros diziam que sim. Este é um tema que juridicamente e por muitas razões está aí, e é possível continuar discutindo. Os que dizem uma coisa e os que dizem o contrário aduzem suas razões, e se não se convencem mutuamente, continuarão pensando igual. Mas há um ponto em que o mais avançado e o mais conservador não podem senão estar de acordo, e o digo citando um documento nada suspeito de “excessiva abertura”: o Catecismo, que diz que de maneira alguma e sob nenhuma hipótese se pode nem se deve discriminar uma pessoa por sua orientação sexual. Isto não é passível de debate. Então, com a tranquilidade de estar de acordo em algo tão fundamental, podemos seguir falando das outras questões sem discutir e sem nos discriminar mutuamente.
A dinâmica de buscar o que nos une em vez daquilo que nos separa?
Claro. Isto já o dizia Santo Agostinho, e todos enchem a boca citando-o, mas depois não o colocam em prática. Nas coisas essenciais, unidade. Nas outras, liberdade. E em todas, acrescentava, caridade.
O fato de que seja um Papa jesuíta enche a Companhia de orgulho?
Muitas pessoas, no dia da eleição, vieram me felicitar porque é um Papa “dos nossos”. Mas isso significa que se fosse um Papa da Opus Dei teríamos que ficar chateados. Se eu me alegro com o fato de que seja um Papa jesuíta e alguns anos depois me entristeço que seja um Papa da Opus, isso quer dizer que eu não mudei nada. Ou seja, que a mudança de que estávamos falando eu não a fiz. Posso me alegrar pelo fato de como é e do que está fazendo, mas se me alegro com o fato de que seja jesuíta é como se acreditasse que agora eu tenho o poder.
A Companhia vai ajudá-lo como ajudou João Paulo II ou Bento XVI?
Exatamente da mesma forma. Esse é precisamente o sentido do quarto voto dos jesuítas, que às vezes é muito confundido. Há aqueles que pensam que é uma coisa de lealdade feudal à pessoa, mas tem a ver com a missão. Quando Paulo VI disse “quero que estejam na fronteira”, no diálogo com o ateísmo... é um compromisso com a missão.
Ou seja, estão dispostos a fazer o que cada Papa encarregar a vocês em cada situação?
Sim. Mas não por lealdade a quem estava no comando em cada momento (e se outro estiver no comando, mudo de camisa). A obediência não vai nesse sentido.
Quer dizer, lealdade à missão, não à pessoa?
Lealdade à missão encomendada pela pessoa.
Vê o horizonte eclesial com esperança?
Sim. Mas com o realismo de saber que somos humanos. Sempre há os dois lados, a ambiguidade. A espiritualidade de Santo Inácio vai nessa linha: reconhecer que você se equivocou, consultar-se com outra pessoa, mudar com o passar do tempo... O encontro com Jesus muda sua vida, mas pode chegar o momento em que você se dá conta de que está enganado, porque todos nos enganamos. Por isso, temos que nos examinar e discernir.
A revolução virá de baixo?
Assim ao menos não aconteceria o que acontecesse em outras revoluções: aqueles que as fazem em nome da libertação, chegam ao poder e começam a oprimir.
Não é possível combinar as duas coisas? Não pode a cúpula responder aos desejos da base?
Claro. Essa é a maneira inaciana de entender a obediência: que tanto quem manda como quem obedece obedecem, por sua vez, ao Espírito. Por isso, estamos sempre em busca, sempre nos reformando. E nunca chegamos ao fim. De forma mais pedante e mais filosófica, quem estuda teologia diz que o autêntico filósofo nunca presume ter chegado ao cume, e nunca renuncia a continuar subindo. Isso é muito hegeliano: crer que se tem a verdade, que já se chegou. E a partir daí se afasta as pessoas.
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“O inverno eclesial foi muito longo”. Entrevista com Juan Masiá - Instituto Humanitas Unisinos - IHU