08 Abril 2021
Profundamente ligado de coração à Igreja, ele nunca pensou em abandoná-la, mas também a criticou duramente, abrindo discussões e debates, especialmente sobre alguns dogmas fundamentais, como a infalibilidade do papa. Esse, em síntese, é o retrato do teólogo suíço Hans Küng, falecido nessa terça-feira, 6 de abril, aos 93 anos de idade.
Quem delineia tal retrato é o cardeal Walter Kasper, presidente emérito do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, que nesta entrevista ao L’Osservatore Romano conta a sua experiência pessoal com Küng, do qual foi assistente na Universidade de Tübingen de 1961 a 1964 e com quem conservou um vínculo em nome da estima e do respeito, mesmo não concordando com os conteúdos teológicos do seu pensamento.
A entrevista é de Nicola Gori, publicada por L’Osservatore Romano, 07-04-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Como o senhor conheceu o teólogo suíço?
Eu o encontrei pela primeira vez quando fazia o meu doutorado na Universidade de Tübingen. Era no fim dos anos 1950. Em 1961, obtive o título de doutor em teologia e, logo depois, até 1964, fui assistente dos professores Leo Scheffczyk e Hans Küng. Aprendi com ambos. Depois, em 1964, quando obtive o meu título de habilitação [o mais alto grau acadêmico], transferi-me para a Faculdade de Teologia de Münster para lecionar teologia dogmática.
Qual era a sua relação com Küng?
A minha relação com ele era boa. Colaborávamos bem naquela época. Posteriormente, nós nos afastamos devido à questão do dogma da infalibilidade papal e de outras questões cristológicas e teológicas. Lembro que me afastei dele quando a Congregação para a Doutrina da Fé, em 1979, revogou a sua missio canonica, ou seja, a licença para ensinar teologia. Isso desencadeou uma verdadeira crise na faculdade, que se dividiu. Nas últimas décadas, a nossa relação sempre foi marcada pelo respeito mútuo. Intercambiávamos regularmente as saudações e os bons votos por ocasião das festas. Certamente, as diferenças teológicas permaneceram, mas, em nível humano, a relação era linear e pacífica. Especialmente por ocasião do seu 80º aniversário, fizemos uma troca de cartas muito bonita.
Em que pontos, em particular, o senhor não estava de acordo com Küng?
Küng não era apenas uma voz crítica em relação à Igreja ou um rebelde. Ele era uma pessoa que queria suscitar uma renovação na Igreja e implementar a sua reforma. Havia uma base comum, como a teologia neoescolástica, baseada na Bíblia e na pesquisa histórica. No entanto, na minha opinião, ele foi além – além da ortodoxia católica – e, portanto, não ficou ligado a uma teologia fundada na doutrina da Igreja, mas “inventou” uma teologia própria.
Como Yves Congar disse uma vez, Küng era católico, mas a seu modo. Ele se sentiu interpelado como teólogo a mudar as coisas na Igreja e conseguiu, efetivamente, explicar o Evangelho até mesmo a pessoas distantes da fé. Nisso, ele fez bem, mas a sua eclesiologia é “liberal” demais. Ele também se afastou da posição do teólogo suíço Karl Barth, seu grande mestre. Em um ponto, porém, estávamos de acordo: sobre a necessidade do diálogo ecumênico. Ele deu o primeiro passo nesse âmbito. No entanto, estávamos distantes, e havia diferenças sobre a doutrina da justificação e sobre os ministérios na Igreja. Em todo o caso, era possível conversar com ele. Ele era um homem combativo: isto é, amava o diálogo em cores fortes. Entre nós, as diferenças permaneceram, mas nunca se criou uma inimizade.
Eram mais questões de mérito ou de método?
Não se tratava apenas de método, mas de diferenças claras de conteúdo, especialmente, como disse, sobre a infalibilidade do papa e sobre Jesus como Filhos de Deus. Eu não discuto o fato de que se possa criticar, mas depende de como se dizem as coisas. E ele criticava à sua maneira, duramente, às vezes injustamente. Ao contrário, ele tinha uma linguagem compreensível para todos quando explicava a religião àqueles que estavam distantes ou haviam se afastado da fé e da Igreja.
Qual é a herança que ele deixou para a Igreja?
Acredito que ele deixou uma herança importante para a faculdade teológica de Tübingen, especialmente sobre a questão do diálogo inter-religioso. Por isso, ele ganhou a estima até mesmo fora da Igreja. Em 1993, ele criou a Fundação Weltethos (Ética Mundial), para promover a cooperação entre as religiões mediante o reconhecimento dos valores comuns. Não só: ele também deixou para a Igreja outras ideias de reforma que se tornaram atuais na Alemanha. Dito isso, pessoalmente, tenho dúvidas sobre essas reformas. Eu estou em outra posição, porque ele queria a ordenação das mulheres e a abolição do celibato.
Ele travou as suas batalhas com franqueza, embora permanecendo dentro da Igreja?
Ele nunca deixou a Igreja e nunca quis sair dela. Muitos teólogos depois do Concílio Vaticano II deixaram a Igreja. Ele não. Na profundidade do seu coração, ele era católico. Certamente, nem sempre o seu comportamento o era. Mas isso é outra coisa. Ele nunca pensou em deixar a Igreja. E isso é muito importante. Além disso, no fim da sua vida, houve uma aproximação com o Papa Francisco.
No verão passado, eu telefonei para o pontífice, dizendo-lhe que Küng estava perto da morte e queria morrer em paz com a Igreja. O Papa Francisco me disse para lhe transmitir as suas saudações e as suas bênçãos “na comunidade cristã”. Certamente, as diferenças teológicas permaneceram e não foram resolvidas. Já não era mais possível discuti-las. Em nível pastoral e humano, porém, houve uma pacificação. Ele mesmo, depois do 90º aniversário, há três anos, falou de uma reabilitação de fato, não jurídica. Com a eleição do Papa Francisco, houve um certo consentimento de sua parte ao magistério petrino, mas ele o interpretou muito com as ideias da sua época. No entanto, posso assegurar que ele estava ávido por reconciliação. Ele queria morrer em paz com a Igreja, apesar de todas as divergências.
Como era a relação entre os dois professores e teólogos Joseph Ratzinger e Hans Küng?
Ratzinger foi professor em Tübingen, na mesma faculdade de Küng, por dois anos e meio. Eles se conheceram em 1957 e colaboraram como teólogos peritos na última sessão do Concílio Vaticano II. Eles estavam em posições teológicas diferentes. Estimavam-se e respeitavam-se, mas não estavam de acordo. Quando Ratzinger se tornou Papa Bento XVI, ele convidou o teólogo a Castel Gandolfo para um encontro e uma discussão aprofundada, não sobre as diferenças, mas sobre as questões gerais da teologia. Ainda perduravam a estima e o respeito mútuos. Devo dizer que Küng, no passado, havia falado mal de Ratzinger. E isso era inaceitável para mim. No entanto, acredito que, da parte de Ratzinger, também nos últimos meses, a estima permaneceu a mesma. Sei que Bento XVI rezou por ele. A relação pessoal entre os dois não se interrompeu.
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Hans Küng, entre a crítica e o desejo de reforma. Entrevista com Walter Kasper - Instituto Humanitas Unisinos - IHU