24 Fevereiro 2021
“O papel foi a única coisa que poderia aguentar as minhas palavras. Por isso comecei a escrever”. Na sala da casa de Edith Bruck, no centro de Roma, estão à vista os presentes trazidos pelo Papa Francisco há dois dias, um Talmud e uma Menorá. Além desses, dois bichinhos de pelúcia, um urso e um macaco, apoiados em uma poltrona. “Era a poltrona do meu marido, Nelo Risi”, diz ela. “Ninguém mais se sentou ali desde que ele morreu, após dez anos de Alzheimer. Sofri quando ele começou a não me reconhecer. Ele nunca queria largar a minha mão. Comprei aqueles bichinhos de pelúcia, na esperança de que de vez em quando ele segurasse suas mãos, mas ele não quis nem saber. Ele não me reconhecia, mas se a campainha tocasse, ele olhava para mim e dizia: "É a Edith". Os médicos diziam que ele morreria logo, mas ele conviveu com a doença por dez anos. Acho que o amor o manteve vivo”.
A entrevista é de Paolo Rodari, publicada por la Repubblica, 23-02-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Edith Bruck teria sido uma escritora sem o Holocausto?
Eu realmente penso que sim. Quando criança, em vez das orações noturnas, eu recitava poesia. “Serei escritora”, dizia à minha mãe. A professora do ensino básico premiou os meus temas com um cartão pintado com uma andorinha.
Agora a senhora é uma escritora indicada para o prêmio Strega com “Il pane perduto” pela editora La Nave di Teseo.
Estou muito feliz e espero que graças ao prêmio, muitos mais jovens possam aprender mais sobre a nossa história. Em 1974, com Due stanze vuote (Dois quartos vazios, em tradução livre), fiquei entre os cinco finalistas. Os editores alemães o publicaram removendo a história de uma menina salva por uma família alemã. Os pais morreram no bombardeio. Ficou a criança e o único filho dos alemães. Os americanos perguntaram como ela se chamava: “Silvia Levi”, ela respondeu. “E ele?” eles perguntaram, apontando para o menino. "Ele é meu irmão", disse ela. “O nome dele é Roberto Levi”. Evidentemente, para os alemães, uma criança que se tornava judia era demais”.
As pessoas ao seu redor não suportaram suas palavras?
Tendo sobrevivido aos campos de extermínio, voltei para a Hungria com minha irmã Judit para a casa de uma irmã mais velha. Ele não queria nos ouvir. Ela havia sofrido com os bombardeios e a perda de seu marido, mas nada comparado ao que havíamos experimentado. Resolvi então escrever, aí podia dizer tudo.
Não foi bem recebida?
A primeira coisa que nossa irmã nos disse foi: 'Lavem-se'. Havíamos saído dos campos há cinco meses. Já tínhamos nos lavado. Eu soube imediatamente que éramos um fardo. A outra irmã nos acolheu sem um único abraço.
Como receberam suas palavras na Hungria?
Mal. Hungria e Polônia ainda tem dificuldade para chegar a um acordo com o Holocausto, para admitir suas culpas. Pelo contrário, a Alemanha seguiu um caminho diferente.
Em "Chi ti ama cosí”, primeiro livro de 1959, está toda a fúria do mal sofrido, mas também muita luz.
A luz sempre me acompanhou. No campo de extermínio de Auschwitz - porque era de extermínio, não um campo de concentração - sentia como se estivesse em outro lugar, além do mundo civilizado. Para os nazistas, bastava uma espinha no rosto para decidir que um de nós tinha que morrer.
Quando a senhora saiu, buscou vingança?
Encontrei cinco soldados húngaros, provavelmente fascistas, que me pediram ajuda. Junto com minha irmã, decidimos ajudá-los e os levamos para casa. Eu disse a Judit: "Temos que salvá-los, serão cinco fascistas a menos." Após a deportação, abri espaço para a luz. Mesmo que o dever do testemunho tenha me levado a escrever sobre o mal.
Escrever foi necessário?
Para mim como para muitos. Primo Levi me disse que se eles não tivessem publicado. Se questo è un uomo, ele nunca teria escrito mais nada. "Isso não é verdade", eu disse a ele. “Você teria continuado a escrever por toda a sua vida”.
Depois de "Chi ti ama così", disseram que a senhora nunca mais escreveria?
Mario Luzi me disse isso. Romano Bilenchi, por outro lado, afirmava que nasci escritora. Ele estava certo.
Quem é Edith Bruck hoje?
Não suporto que digam “a sobrevivente”, “a ex deportada”, ou até “uma das últimas sobreviventes”. É como se me fizessem morrer mais cedo. Sou escritora e é isso”.
Há algo que a senhora ainda não disse sobre o Holocausto?
Por exemplo, o tema da vergonha. Eu me vi nua na frente dos americanos quando eles nos libertaram e fiquei com vergonha. Não fiquei com vergonha na frente dos alemães. Os garotos alemães cuspiam em nossas partes íntimas. Para mim eles eram apenas pobres de espírito diante dos quais eu não poderia sentir vergonha. Eu senti pena deles. E depois tem o tema das luzes que encontrei. Mas já falei sobre isso.
A senhora poderia contar de novo?
Cinco luzes. A primeira quando, na seleção em Auschwitz, um SS me arrancou de minha mãe empurrando-me para a direita, para os trabalhos forçados e não para o crematório. Depois o milagre de um cozinheiro que me perguntou meu nome, fazendo com que eu me sentisse um ser humano e não um número.
Outra vez, quando um soldado me deu de presente uma luva furada. E aquele que jogou sua marmita para lavar e dentro dela encontrei geleia: na geleia havia vida, luz, vontade de sobreviver e a bondade do mundo. E outro que deveria atirar em mim, mas não atirou.
Como isso aconteceu?
Em Bergen-Belsen, pediram a mim e a outras que levássemos jaquetas para alguns militares na estação. Depois de alguns passos, não conseguia mais carregá-las. Judit me disse para dar quatro para ela, jogar quatro na neve e as outros ficaram nas minhas mãos. As outras fizeram o mesmo. Os guardas perceberam, um deles veio até nós e nos disse para parar. Ele gritou: "Quem começou?" Ele puxou sua arma e acrescentou que mataria uma sim outra não, ao longo da fila. Eu dei um passo tímido para frente. Ele se lançou sobre mim e rasgou minha orelha. Judit se jogou sobre ele. Ele caiu. Quando ele se levantou, guardou a arma, ajudou-me a levantar e disse: "Uma judia imunda e nojenta que ousou colocar as mãos em um alemão merece sobreviver por sua coragem, se puder". Fui salva pela coragem, uma lógica tipicamente nazista.
O que a senhora acha do Holocausto romano?
“Ainda há muito a dizer. Pio XII escolheu o silêncio por temer as repercussões dos nazistas contra os padres. Em minha opinião, eles não o nomeiam santo por esse motivo. João Paulo II fez muito por nós. Francisco é um Papa irrepetível. Ele falou das raízes cristãs do antijudaísmo e do antissemitismo moderno. Ele me pediu perdão justamente por isso. Não é pouco.
Ele lhe pediu perdão como cristão?
Imagino que sim.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Para os nazistas, bastava uma espinha no rosto para decidir que um de nós tinha que morrer”. Entrevista com Edith Bruck - Instituto Humanitas Unisinos - IHU