A mística nos convoca a uma relação direta com a totalidade da condição humana. Entrevista especial com Faustino Teixeira

“A mística não é algo do outro mundo ou de fuga da realidade, mas imersão radical da medula das coisas”, afirma o pesquisador

Foto: Pixabay

Por: Patricia Fachin | 22 Fevereiro 2021

“A mística é a porta de entrada da consciência e o convite fundamental de desaceleração. É também um convite essencial para navegar no mundo interior. Naquele espaço de enigma e mistério, que guarda o essencial de nossa vida”, diz Faustino Teixeira, professor aposentado da Universidade Federal de Juiz de Fora, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

 

Dedicado ao estudo das místicas cristã, islâmica e zen budista em suas pesquisas sobre o diálogo inter-religioso, Teixeira relata, nesta entrevista, como alguns místicos influenciaram sua vida, com destaque para Thomas Merton e Teilhard de Chardin. “Diria que Thomas Merton tenha sido o místico que mais me influenciou para entender e buscar uma mística do cotidiano e de abertura ao cosmo mais amplo, de sintonia com a Terra. Estar atento ao cotidiano, nos seus pequenos detalhes, é estar ‘à beira da grande percepção do Real’. (...) Com Teilhard, aprendi outra coisa essencial: ‘Para compreender o Mundo o saber não basta; é preciso ver, tocar, viver na presença, beber a existência quente no próprio seio da realidade’. Isso é mística: estar sempre atento aos pequenos sinais do cotidiano. ‘A pureza não está na separação, mas numa penetração mais profunda do Universo’”, menciona.

 

Para nos ajudar a compreender como a mística, expressa através da literatura e do cinema, nos ajuda a compreender a nós mesmos em relação ao mistério, neste semestre Faustino Teixeira ministrará dois cursos livres na página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, em parceria com o Canal Paz e Bem, no YouTube: Filmes em Perspectiva e Clarice Lispector, todas as crônicas.

 

O projeto Filmes em Perspectiva traz uma série de discussões sobre obras cinematográficas entrelaçando debate cultural e mística a partir de diálogos com especialistas na área e inicia na próxima quarta-feira, 24-02-2021, às 17h, com o debate sobre o filme Meu amigo hindu, de Hector Babenco (2015). Em março, serão comentados os filmes Melancolia, de Lars Von Trier, A Árvore da Vida, de Terrence Malick e Decálogo (Primeiro e Segundo Mandamentos), de Krzysztof Kieslowski. A programação completa está disponível aqui.

 

O curso livre sobre Clarice Lispector irá analisar a espiritualidade na literatura da escritora ao longo de 17 encontros virtuais, que ocorrerão entre 10 de março e 30 de junho, às quartas-feiras, das 14h às 16h. As discussões terão como referência o livro Clarice Lispector. Todas as crônicas (Rio de Janeiro: Rocco, 2018). A programação completa está disponível aqui.

 

Os dois cursos, ressalta, “se unem por particular sintonia temática, em particular temas que envolvem a questão do enigma do humano, da dor, solidão e os tremendos desafios para manter o mundo interior em paz”.

 

 

Faustino Teixeira (Foto: Arquivo Pessoal)

Faustino Teixeira possui graduação em Ciências das Religiões pela Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF (1977), graduação em Filosofia pela UFJF (1977), mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio (1982) e doutorado em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (1985). Atualmente é professor convidado da UFJF, no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, depois de sua aposentadoria como professor titular na mesma Universidade, em 2017. Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Teologia Sistemática, atuando principalmente nos seguintes temas: religiões, pluralismo religioso, diálogo inter-religioso, catolicismo e mística.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - O que o conduziu ao estudo da mística e à mística propriamente dita? Como e em que contexto surgiu seu interesse por essa temática e por que decidiu conduzir seus estudos nessa perspectiva?

Faustino Teixeira - Meu projeto inicial era fazer o mestrado na Universidade de São Paulo - USP, sob orientação de Duglas Teixeira Monteiro. Depois de seu trágico acidente, onde veio a falecer, decidi então pela teologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-RJ, sob o incentivo do amigo querido, João Batista Libânio. Ele conseguiu um emprego de professor de ensino religioso na PUC-RJ. Minha companheira, Teita, nesse tempo fazia o sexto ano de Medicina, com estágio do Hospital de Bonsucesso.

Eu tinha vindo de duas graduações, feitas simultaneamente: filosofia e ciências das religiões (era o nome utilizado em Juiz de Fora). Foi um tempo apertado, pois tinha que fazer a adaptação do currículo de ciência da religião para a teologia. Era uma época rica de estudos acadêmicos na PUC-RJ. Pude desfrutar de belas aulas com Libânio, Clodovis Boff, Felix Pastor (que se revezava entre a Gregoriana de Roma e a PUC-RJ), Alfonso Garcia Rúbio, Gabriel Selong, Álvaro Barreiro, Mario de França Miranda, Antônio Moser, Francisco Cartaxo Rolim, Ulpiano Vazquez, Carlos Palácio, Pedro Ribeiro de Oliveira. Isto num berço antiteologia da libertação, que era a Arquidiocese do Rio. Recordo-me, com grande desprazer, os rituais de Missio Canonica, anuais, que condicionavam nossa permanência como docentes ali pela nossa humilhante obediência aos padrões tradicionais de teologia. Ficava trêmulo nas mãos toda vez que isso ocorria.

Na época, tinha acabado de sair o precioso livro de Clodovis sobre metodologia da teologia do político, que foi objeto de um curso dado por ele para nós. Na ocasião montamos um grupo de trabalho para estudar o volumoso livro, que tinha sido a tese doutoral de Clodovis, orientada pelo grande teólogo Adolphe Gesché, que é dos teólogos belgas que mais aprecio e admiro. No grupo, estávamos juntos eu e Inácio Neutzling, que hoje dirige o Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

O projeto de doutorado estava em curso. Fiz uma prova na Fundação Konrad Adenauer, sob o incentivo de Vanilda Paiva. Passei no Brasil. Já tinha conseguido orientador, Peter Hünermann, da Universidade de Tübingen. Não fui, porém, aprovado pela Fundação na Alemanha em razão do tema controvertido de minha tese, sobre as Comunidades Eclesiais de Base no Brasil. Libânio me acalmou e começou a mexer as peças para um doutorado em Roma. Conseguiu 5.000 dólares com as Irmãs Médicas Missionárias dos EUA e depois ainda uma bolsa dos Jesuítas. As irmãs Ursulinas também ajudaram com bolsa. O destino era a Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. O primeiro encontro com o Decano, René Latourelle, foi intermediado pelo amigo jesuíta Marcelo Perini. Fui então com minha companheira, Teita, e os dois filhos, Pedro e João, que aprenderam a falar em italiano. A coisa rendeu, pois Pedro é hoje professor de italiano no Departamento de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Parti para o doutorado em 1982, regressando ao Rio de Janeiro em 1986, depois de ser sabatinado ao final em Roma por Dom Romer, para ver se tinha condições de receber a Missio Canonica. Achei isso sempre ridículo. Passar todos os anos num constrangimento: ter que andar na linha institucional para poder manter o vínculo de professor. Soube depois, pelo meu orientador, que até mesmo Juan Alfaro teve que intervir com carta em minha defesa, para dar prosseguimento ao ensino teológico na PUC-RJ.

Ao final do doutorado, após entregar os pacotes com minha tese doutoral de 1.100 páginas, Summa cum Laude, passei por longo processo de estresse e depressão, com manifestações de tremor nas mãos que me acompanharam até o período do transplante de medula óssea, em junho de 2021. Em conversa com meu sábio orientador, Pe. Felix Pastor, ele disse uma frase sóbria, que sempre repassei para os meus orientandos. Uma frase que vale sobretudo para os que fazem doutorado no exterior: “A gente se prepara para ir, mas não se prepara para voltar”. Lembro-me que no início das aulas estava tendo dificuldade para entrar em sala de aula. Contei, na ocasião, com a preciosa ajuda de Ana Maria Tepedino para quebrar a barreira. E quebrei...

Além das aulas de teologia na PUC-RJ, continuei no Departamento de Teologia da Santa Úrsula, cujo decano na ocasião era Dom Estevão Bittencourt. Lembro-me de uma cena hilariante, quando perdi minhas aulas na Santa Úrsula por ter citado Libânio em minha bibliografia. Não se podia falar em teologia da libertação na diocese do Rio, comandada por Dom Eugênio Sales. Por felicidade, Dom Estêvão foi demitido pela Madre Superiora da Santa Úrsula, sendo então chamado para o cargo o exegeta Gabriel Selong, também professor na PUC e com o qual fiz todas as disciplinas de exegese. E isto ocorreu, por sorte, no dia que tinha caído o umbigo de meu filho primogênito Pedro.

Foi motivo de muita festa, pois a família passava certo aperto. O meu mestrado foi bem puxado, pois além das disciplinas e da redação do trabalho, tinha que dar 27 aulas semanais, com sete disciplinas diferentes. Mas consegui terminar no prazo: naquele tempo o mestrado durava três anos e não dois como atualmente. O meu tema de mestrado foi: A gênese das CEBs no Brasil, com a orientação de Libânio. A defesa, realizada em 1978, contou com a presença amiga do moralista Jaime Snoek, do qual tinha sido monitor por três anos na cadeira de Moral Sexual.

Após o retorno do doutorado, assumi as aulas de teologia na PUC, lecionando várias disciplinas, desde eclesiologia e teologia do laicato, até Antropologia Teológica II (Tratado da Graça). No momento final de minha docência na PUC-RJ, celebrei a aceitação pelo Departamento de Teologia dos irmãos evangélicos para alunos na pós-graduação em teologia. Foi então que dei o meu primeiro curso de teologia das religiões. Com o tempo, já em Juiz de Fora, onde fiz concurso de 1989 (na banca Leonardo Boff) para eclesiologia, dei continuidade ao meu curso de Teologia das Religiões e Diálogo Inter-religioso, isso na pós stricto sensu, a partir de 1981, quando começou nosso curso de especialização. O mestrado começou em 1983 e o doutorado em 2000. Os três cursos começaram no tempo em que era coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião - PPCIR. E começaram com avaliação positiva 4, e logo depois 5. Foram dez anos na coordenação do programa. Juiz de Fora teve este pioneirismo: o primeiro curso de graduação em ciência da religião do Brasil. O nosso doutorado foi o primeiro da Universidade Federal de Juiz de Fora.

 

IHU On-Line - Como a mística se manifesta no seu cotidiano?

Faustino Teixeira - Nos inúmeros cursos de mística que venho dando, tenho me dedicado à mística cristã, mística islâmica e mística zen budista. O fruto do primeiro curso saiu recentemente em livro: Malhas da mística cristã, com prefácio de Marco Lucchesi, atual presidente da Academia Brasileira de Letras - ABL e um amigo querido. Ele me escreveu durante os 35 dias que fiquei internado para o transplante de medula, sem falhar um sequer. Os artigos que compõem o livro são dos seguintes místicos: Marguerite Porete, Mestre Eckhart, Teresa de Ávila, João da Cruz, Angelus Silesius, Rainer Maria Rilke, Teilhard de Chardin e Etty Hillesum. O livro está muito bonito. Resolvi dar continuidade a uma trilogia, envolvendo também o conteúdo de minhas aulas de mística islâmica e zen budista, e os livros saem no meio do ano de 2022. Todos pela Editora Appris, de Curitiba. O livro de mística cristã já se encontra disponível nas grandes livrarias, como a Amazon.

 

 

 

 

 

 

Publiquei também dois livros sobre os buscadores do diálogo, em que apresento figuras importantes de peregrinos espirituais. Foi o resultado de uma pesquisa no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, onde sou pesquisador.

O primeiro, pela editora Paulinas: Buscadores de diálogo (2012), com capítulos sobre Thomas Merton, Henri le Saux (Abhishiktananda), Raimon Panikkar, Louis Massignon e Simone Weil.

O segundo, pela editora Paulus: Buscadores cristãos no diálogo com o Islã, com artigos sobre Louis Massignon, Abd-el-Jalil, Louis Gardet, Georges Anawati, Serge de Beaurecueil, Christian de Chergé e Paolo Dal’Oglio. É um livro precioso em que dediquei um bom tempo para a sua redação, numa pesquisa de fôlego. Ele também foi traduzido para o italiano, pela Editora Pazzini (2015).

Os livros de mística foram também muito favorecidos com a experiência dos tradicionais seminários de mística comparada que ocorrem em Juiz de Fora a partir de 2001, justamente na ocasião da queda das Torres Gêmeas. Ali, no Seminário da Floresta, que no passado era o seminário maior dos Redentoristas, nos encontrávamos anualmente cerca de 30 pessoas para partilharmos nossas reflexões sobre o tema. E as presenças que passaram pela Floresta são muitas, entre as quais Otávio Velho (amigo querido, que foi visitante aqui na UFJF, no tempo em que coordenei o PPCIR), José Carlos Michelazzo (por quem sou encantado) e Pablo Beneíto Arias, talvez dos maiores especialistas de Sufismo no mundo, em particular de Ibn Arabi.

Durante todos os 12 seminários, que tinham duração de três dias e todos ficávamos “internados” naquele paraíso de seminário, muita coisa extraordinária aconteceu, inclusive a inserção desse tema no mundo acadêmico das ciências da religião. O grupo era formado por pesquisadores de mística envolvendo o PPCIR da UFJF, a PUC-SP, a UFRJ e a UFF. Acompanhando de perto a experiência com participação em todos os seminários, Luiz Felipe Pondé e Maria Clara Bingemer, e depois Eduardo Losso e Marcos Reis. É um tema que merece uma reflexão acadêmica: essa entrada meio “malcomportada” da mística na academia.

 

Influências

Voltando à sua pergunta, diria que Thomas Merton tenha sido o místico que mais me influenciou para entender e buscar uma mística do cotidiano e de abertura ao cosmo mais amplo, de sintonia com a Terra. Estar atento ao cotidiano, nos seus pequenos detalhes, é estar “à beira da grande percepção do Real”.

Como diz Raimon Panikkar, outra influência marcante em minha vida, a Mística não é algo do outro mundo ou de fuga da realidade, mas imersão radical da medula das coisas. É um “amor desaforado pelo todo”, como diz a filósofa Maria Zambrano.

Nas obras completas de Panikkar, há um belo volume intitulado Mística, plenitude de vida. Ali ele apresenta com detalhes sua mística cosmoteândrica, indicando que a experiência mística “é a experiência completa”. A mística, diz Panikkar, nos convoca a uma relação direta com a totalidade da condição humana”. Isso é muito belo, e isso eu busco seguir.

Gosto muito também de uma frase fantástica de Rilke, que é hoje um dos meus lemas: “Estar aqui é esplendor” (Hiersein ist herrlich). É dos mantras que mais rezo. Toda vez que passo diante do meu Buda, na porta do quarto, digo essa frase para que adentre meu coração, e seja capaz de poder irradiar essa alegria para os outros.

No ano passado, antes do transplante, tinha seis meses de vida. Hoje, a vida se abriu novamente para mim, e criei outro mantra: “O que recebi como dom, passarei a retribuir como serviço gratuito”, atuando naquilo que é de minha competência acadêmica. Essa vai ser minha militância de vida, nesse tempo que vivo aos “cuidados de Deus”, para utilizar uma expressão de Marguerite Porete.

Gostaria ainda de lembrar de dois livros que organizei junto com o meu parceiro querido, o franciscano Volney Berkenbrock: Sede de Deus. Orações do judaísmo, cristianismo e islã (Vozes, 2002) e As orações da humanidade – das tradições religiosas do mundo inteiro (Vozes, 2018). Esses livros, de orações, têm ajudado muita gente em suas travessias, sendo livro de cabeceira de muitos. Tínhamos ainda um projeto que seria fantástico, de um ofício inter-religioso, com base nas estações do ano. Acabamos não levando adiante, pois os dois nos aposentamos na Universidade e os momentos de encontros regulares foram interrompidos, com cada um tomando o seu rumo.

Sob a inspiração de meu mestre Thomas Merton, busco fazer meu “trabalho de cela”, de forma a “despertar e sintonizar o coração com Deus” e com as energias essenciais da Terra, podendo gritar com Teilhard de Chardin: “Oh, abençoada Matéria”.

Com ele, Teilhard, aprendi outra coisa essencial: “Para compreender o Mundo o saber não basta; é preciso ver, tocar, viver na presença, beber a existência quente no próprio seio da realidade”. Isso é mística: estar sempre atento aos pequenos sinais do cotidiano. “A pureza não está na separação, mas numa penetração mais profunda do Universo”.

Thomas Merton é dos exemplos mais ousados no campo do diálogo. Dizia em notas de uma palestra que faria em Calcutá, em outubro de 1968: “O monge a comunicar-se no nível que nos interessa aqui deve ser um exemplo vivo de realização tradicional interior. Deve estar completamente aberto à vida e à nova experiência por ter utilizado integralmente a sua própria tradição e a ter ultrapassado”. Isso é extraordinário e convidativo.

 

 

IHU On-Line - Na crise pandêmica, voltou à pauta a discussão sobre o fato de que a ciência, apesar da sua importância fundamental, não consegue explicar o humano em toda a sua complexidade. Como a mística, expressa através da literatura e do cinema, nos ajuda a compreender a nós mesmos em relação ao mistério?

Faustino Teixeira - A mística é a porta de entrada da consciência e o convite fundamental de desaceleração. É também um convite essencial para navegar no mundo interior. Naquele espaço de enigma e mistério, que guarda o essencial de nossa vida. Não há caminho possível para captar o Aberto senão interiormente. Assim aprenderemos a orvalhar. Para isso, às vezes, “a aguinha das grotas tem que gruguejar sozinha” (Rosa). Aqueles que mais se aproximaram dessa experiência abissal, lembra-nos Rilke, foram as crianças, e também os moribundos, que ao se aproximar da morte, “não mais a podem ver, fixando o infinito com o grande olhar do animal”. Os amantes também aproximam-se desse liminar, mas acabam recuando: “sentem a obscura presença e se espantam...”.

 

 

IHU On-Line - Ao lado do mistério, do sagrado e da busca por Deus, está o problema do mal. Como a experiência estética da literatura e do cinema nos ajuda a compreender essa dualidade?

Faustino Teixeira - Fui captar essa presença de forma viva nas minhas várias leituras do Grande Sertão: Veredas. É dos livros mais essenciais para se poder captar a ambiguidade que habita o ser humano. O tema virou minha nova pesquisa aprovada no CNPq, ainda em curso. Aprendemos equivocadamente que no nosso mundo interior existe apenas a graça. Na verdade, somos habitados pelo bem e pelo mal. Há que saber escolher o cavalo que a gente monta na vida: se escolhe o animal que ruma para o mal, estamos danados. Daí o desafio de aprender a ouvir a “vozinha forte demais” que também nos habita, e nos salva. Não nos podemos esquecer jamais, como diz a sabedoria popular, que junto à mandioca doce nasce também a mandioca brava que mata. Como diz Rosa: “Minha alma tem de ser de Deus: senão como é que ela pode ser minha?”. Por isso que o caminho que se abre é o da alegria, mesmo nos tempos sombrios. Como diz a jovem poeta portuguesa Matilde Campilho, temos que “aprender a dançar sobre os escombros”. E ainda ela:

A gente é construção
e não adianta fingir.
A gente está aqui neste lugar lindo,
com pessoas lindas, incríveis,
mas o mundo está todo arrebentado.
Aqui, na Europa, na Síria,
nos nossos quartos,
está tudo difícil (...)
A poesia, a música, uma pintura
não salvam o mundo.
Mas salvam o minuto.
Isso é suficiente.
A gente está aqui
para dançar um pouquinho
sobre os escombros.
Não deixar que a poeira
dê alergia nos olhos.
Cada um faz como pode.
O cirurgião vai tentar salvar
todas as vidas que puder.
A gente vai tentando salvar os segundinhos
- da minha vida, da vida
de todos meus amigos
e de alguém que lê uma estrofe.
E já é bom [1]

Temos que ter coragem e navegar com tranquilidade nas brechas que se oferecem para a possibilidade de ser feliz, ainda que ela esteja tão distante dos homens-humanos. Há sempre algo de demoníaco em todos nós, que brota dos fundões tremendos e duros de nosso mundo interior enigmático, propiciando brotar, sem razão, a parte torva da alma. Este é desafio a ser enfrentado: captar a paisagem distinta que nos habita. Como dizia Rûmî, que é dos meus místicos sufis favoritos, “para mudar a paisagem basta mudar o que sentes”.

 

 

IHU On-Line - Entre os diversos místicos que o senhor estudou, debruçou-se mais detidamente sobre Clarice Lispector e sobre Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. O que há de singular na mística deles que desperta seu interesse?

Faustino Teixeira - Vejo muita semelhança entre esses dois excepcionais romancistas brasileiros. Eles nos provocam a refletir sobre as questões mais fundamentais de nossa vida. Daí a dimensão metafísica que brilha nos dois. Como diz Antônio Candido, Rosa ao falar do sertão está nos falando em verdade é do mundo; e quando aborda o jagunço, está falando de nós mesmos.

 

 

IHU On-Line - Na entrevista que nos concedeu por ocasião do Natal, o senhor citou o seguinte trecho de Grande Sertão: Veredas: "O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre no meio da tristeza" (GSV 230). Como a mística de Guimarães pode nos ajudar a encontrar a alegria, especialmente em momentos de crises agudas como a que vivemos, em que o número de mortos, de desemprego e de miseráveis não para de aumentar?

Faustino Teixeira - Respondo com uma bela citação de Riobaldo no GSV: “Todo caminho da gente é resvaloso. Mas também cair não prejudica demais – a gente levanta, a gente sobe, a gente volta! Deus resvala”.

 

 

IHU On-Line - Entre os inúmeros filmes a que o senhor assistiu, quais foram determinantes na sua experiência mística?

Faustino Teixeira - Gosto em particular de A Árvore da Vida, do diretor Terrence Malik. Os filmes dele são de uma sensibilidade única. Estou com particular interesse no debate do filme de Hector Babenco, Meu irmão hindu, que aborda o drama de um transplante de medula. E eu, transplantado, estarei conversando com o médico que realizou o bem-sucedido procedimento. Vai ser curioso.

Gosto também muito do filme Melancolia, de Lars von Trier, que trata de um tema que me interessa muito nos dias atuais: essa ideia de que o mundo é mau, que o homem-humano faz tudo para destruir a Terra que o acolhe.

Outros tantos filmes são sensacionais, como Paris, Texas e Asas do desejo (Win Wenders). E ainda Violência e Paixão, de Lucchino Visconti, O quarto do filho, de Nando Moretti (um filme impressionante sobre o drama do luto) e Afinidades afetivas, de Paolo e Vittorio Ottaviane. Posso ainda citar um outro maravilhoso: La Giovinezza, de Paolo Tollentino; E nós que nos amávamos tanto (Ettore Scola); Um dia muito especial (Ettore Scola, com uma espetacular interpretação de Marcello Mastroiani e Sophia Loren).

 

 

 

 

 

 

Na "Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate. Sobre a chamada à santidade no mundo atual", o Papa Francisco convida a humanidade a buscar a santidade a partir do Evangelho. Chamo aqui a atenção do belíssimo documentário sobre o papa, Um homem de palavra, dirigido por Win Wenders.

 

 

IHU On-Line - No primeiro semestre de 2021, o senhor ministrará dois minicursos no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, em parceria com o Canal Paz e Bem, um sobre Guimarães Rosa e outro sobre Clarice Lispector. Pode explicar aos leitores qual é o propósito desses cursos?

Faustino Teixeira - São dois cursos que se unem por particular sintonia temática, em particular temas que envolvem a questão do enigma do humano, da dor, solidão e os tremendos desafios para manter o mundo interior em paz. Para o ano que vem, já estou pensando em outro curso, desta vez sobre os contos de Clarisse, envolvendo também o Paz e Bem e o IHU.

 

 

IHU On-Line - Qual é a importância de cultivar uma vida interior e como fazê-lo num mundo tão barulhento como o de hoje?

Faustino Teixeira - A pista mais bonita neste sentido vem de Rainer Maria Rilke, quando diz que “em parte alguma o mundo existirá senão interiormente. É o conselho que ele dá ao jovem candidato a poeta: manter viva a paciência, que é uma expressão fundamental da mística. Aconselha ao jovem poeta: “Não busque por enquanto respostas que não lhe podem ser dadas, porque não as poderia viver. Pois trata-se de viver tudo. Viva por enquanto as perguntas. Talvez depois, aos poucos, sem que o perceba, num dia longínquo, consiga viver a resposta”.

 

 

IHU On-Line - Na entrevista que nos concedeu por ocasião do Natal do ano passado, o senhor mencionou a religiosidade "como eixo organizador do nomos fundamental". Pode explicar essa ideia?

Faustino Teixeira - A religião é um forte poder nomizador. Já dizia Durkheim em suas Formas Elementares da Vida Religiosa, que a religião traduz, fundamentalmente, uma experiência de poder. Podemos falar, com razão, em força dinamogênica da religião. Ela “vem para fazer viver os homens” (Pierre Sanchis); ou então na fase lapidar de Peter Berger, ela é a “ousada tentativa de conceber o universo inteiro como humanamente significativo”. Ao ler o extraordinário livro de Benjamin Moser, ele fala na decadência dos amantes de Clarice, entre os quais Lúcio Alves e Paulo Mendes Campos, destituídos de um sentido mais profundo em seus projetos de vida. Há, sim, que buscar sempre um espaço luminoso, um horizonte de sentido. Encontrei isso com alegria na Mística.

 

Nota:

[1] Matilde Campilho. In: Ípsilon, Isabel Coutinho, Paraty 03/07/2018: “A poesia não salva o mundo, mas salva o minuto”. (Nota do entrevistado)

 

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