08 Agosto 2019
No Brasil, o padre Jaime Snoek se tornou um pioneiro cristão católico na defesa dos homossexuais antes de Stonewall.
O artigo é de Luís Corrêa Lima, sacerdote jesuíta e professor do Departamento de Teologia da PUC-Rio, que trabalha com pesquisa sobre gênero e diversidade sexual e no acompanhamento espiritual de pessoas LGBT.
Os protestos de Stonewall, ocorridos em Nova Iorque há 50 anos, são considerados o grande marco histórico do movimento LGBT, pois criaram uma consciência social em favor da cidadania desta população. Na sequência destes protestos vieram as Paradas do Orgulho LGBT, que hoje reúnem imensas multidões em muitos países. Nem tudo, porém, começou com Stonewall. Entre os precursores nos Estados Unidos, há também cristãos, como a Igreja da Comunidade Metropolitana, fundada em 1968 pelo reverendo Troy Perry; e o grupo católico Dignity USA, fundado no início de 1969 pelo padre agostiniano Patrick Nidorf.
No Brasil, por incrível que pareça, há também um pioneiro cristão católico que antes de Stonewall defendeu os homossexuais, atuando no campo da teologia e da pastoral. É o padre redentorista holandês Jaime Snoek (1920-2013), aqui radicado desde 1953. Em Juiz de Fora (MG), ele fundou um ambulatório e, com as irmãs Missionárias de Jesus Crucificado, criou a Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora. Nos tempos da ditadura militar, ele atuou em favor de professores e estudantes perseguidos pelo regime, salvando a vida de muitos.
Em 1967, Snoek escreveu um artigo na Revista Vozes, dos franciscanos de Petrópolis: “Eles também são da nossa estirpe: considerações sobre a homofilia” (disponível aqui). Era um tempo em que ainda se considerava a homossexualidade doença, médicos chegavam a propor o seu tratamento com choque elétrico, mais países criminalizavam a prática homossexual e a homofobia era muito maior.
Snoek denunciava o tabu e a censura social sobre este tema, do qual quase não se falava, pois muitos consideravam os homossexuais como degenerados, perversos e criminosos. Isto gerava uma repulsa espontânea e generalizada, tendo como consequência uma conspiração de silêncio. Homossexuais acabavam vivendo no ostracismo e na clandestinidade, sofrendo amargamente rejeição por parte dos homens e “suposta reprovação por Deus”. Tudo isso faz com que o suicídio seja cinco vezes mais frequente em homossexuais do que em heterossexuais.
A estrutura hétero ou homo já está fixada antes da idade de seis anos, e não depende da livre opção da pessoa. As perspectivas de uma terapia para mudar esta estrutura são francamente desanimadoras. O homossexual terá que viver com sua condição. E também deve existir para ele e ela um caminho de santidade, um modo cristão de ser homossexual. Snoek cita o Novo Catecismo, publicado pelos bispos holandeses depois do Concílio Vaticano II. Este Catecismo afirma que as expressões severas da Sagrada Escritura a respeito da homossexualidade genital não devem ser mal-entendidas, como se denunciassem o fato de certas pessoas terem atração pelo mesmo sexo sem culpa própria.
Sobre a moralidade da prática homossexual, Snoek formula a questão de outra maneira: esta vivência no plano erótico e genital pode ou não promover as pessoas envolvidas em termos de amor oblativo, interação mútua, humanidade e responsabilidade comum na construção do mundo? Se estes valores podem ser realizados, não se pode a priori qualificar a conduta homossexual como imoral e contra a natureza. Aos que propõem como caminho o celibato, este é dom e vocação, e não pode ser exigido. Muitas vezes será irrealizável.
Após traçar um bom panorama do tema, o artigo finaliza com cinco diretrizes práticas do Instituto Pastoral da Holanda:
1) em hipótese alguma pode-se romper uma amizade existente;
2) o matrimônio (entendido como união entre homem e mulher) não pode ser solução e deve ser desaconselhado;
3) não se deve esquecer que a continência, a chamada “via régia”, não é uma exigência tão evidente; na verdade ela é observada só esporadicamente;
4) parece recomendável ajudar o homossexual a construir uma amizade firme;
5) no acompanhamento de amizades homossexuais, parece importante insistir sobretudo na fidelidade.
Estas posições, evidentemente, não foram compartilhadas pela ampla maioria do mundo católico. Já na época, o núncio apostólico do Brasil, dom Sebastião Baggio, foi a Petrópolis e reclamou do artigo de Snoek. Baggio chegou a dizer até que concordava com o conteúdo, mas que o tema não ficava bem em uma revista católica.
Passadas mais de cinco décadas, a homossexualidade foi despatologizada, as terapias de reversão estão proibidas, muitos assumem publicamente sua condição e a homofobia tornou-se crime equiparado ao racismo, embora muitos problemas ainda existam. Em meio a tudo isso, para os homossexuais deve haver hoje um caminho de santidade, um modo cristão de viver sua condição. O papa Francisco aponta este caminho ao lançar a interrogação: “Se uma pessoa é gay, busca o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgar”? Jaime Snoek abriu para eles (e elas) uma picada na mata virgem, em um ambiente bem inóspito e adverso. Seu pioneirismo é uma luz que brilha no firmamento.
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Um pioneiro católico antes de Stonewall - Instituto Humanitas Unisinos - IHU