Diplomata que viveu 16 anos na Ásia é enfático ao afirmar que “o conceito do Ocidente não se traduz em Oriente” e detalha como a China tem realinhado a geopolítica enquanto ocidentais tropeçam para compreender o mundo em transformação
Enquanto o governo brasileiro arrumava querelas diplomáticas, mergulhado no caos e morte na pandemia, a China seguia seu curso e enviava ao Brasil a primeira vacina contra a Covid-19, além de insumos para a produção de vacinas de outras farmacêuticas. Para o professor de Relações Internacionais e diplomata aposentado Fausto Godoy isso é ilustrativo de o quanto não só o Brasil, mas o Ocidente de modo geral estão aquém da lógica e do pensamento chinês. “A China não só não está já organizando sua vacinação como está mandando vacinas para o mundo todo, e ainda sem falar no envio de técnicos e equipamentos”, observa, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. Além disso, chama atenção para a forma como a população responde culturalmente bem às ações do governo e demonstra melhores resultados para frear o novo coronavírus. “O que fez com que os chineses obedecessem é o conceito que eles têm da vida em sociedade, que faz com que eles sejam responsáveis pelo outro”.
O professor reconhece que a postura do governo brasileiro feriu algo que é muito caro aos chineses, provocando inclusive respostas oficiais. Mas chama atenção para o fato de eles olharem além e, na realidade, tratarem esta situação realmente como querelinhas. “Eles são estrategistas e consideram o Brasil muito importante para eles, porque lhes dá o que mais necessitam, que é comida”, analisa. E completa: “a China mantém sempre o olhar de longo prazo, como tudo o que faz. Seu conceito é o de eternidade, o peso da história na China é fundamental”.
Por isso, Godoy considera muito mais interessante olhar para os grandes movimentos chineses que têm elevado a nação ao topo do mundo. “O foco da China é outro, tornar-se essa grande potência tecnológica no mundo e o que constatou o último congresso do Partido Comunista é essa definição do que a China vai ser, uma Sociedade Moderadamente Próspera; este é o objetivo do governo chinês”, explica. Segundo ele, esse status vai ainda além de dominar cadeias produtivas de alta tecnologia e estabelecer relações comerciais com quase todo o mundo. Tem ainda relação com o bem-estar social da população. “A China erradicou a miséria absoluta, declarou o governo na reunião do Congresso do Partido Comunista, em novembro passado. Significa que a China, com um bilhão e 300 milhões de habitantes fez o que a gente, no Brasil, não conseguiu, que é a transformação em uma Sociedade Moderadamente Próspera”, completa.
Ainda na entrevista a seguir, o professor analisa a história chinesa e os pilares que sustentam essa sociedade milenar, mas extremamente conectada com as mudanças no mundo. São cinco mil anos de história que atravessa reinos, impérios, repúblicas, mas que, essencialmente, conserva um olhar ao seu povo e reforça o conceito de ‘mandato do céu’. “A história da China é assim desde as dinastias mais antigas, como a Shang: começa sempre assim. Normalmente um grupo, uma tribo ascende ao poder e a sociedade lhe delega o “mandato do céu”, ou seja, o direito de governá-la segundo os seus preceitos, condicionado, porém, a que esses lideres correspondam aos seus anseios; caso contrário eles perderão esse mandato e serão derrubados. Ou seja, o governo vai se desenvolvendo até o momento que não atende mais, então cai e tem início uma outra dinastia, e assim vai”, enfatiza. “O que mais me emocionou em toda Ásia foi a busca de harmonia dentro do contexto social. Existem disputa e brigas, mas no cotidiano o convívio na sociedade é muito mais orgânico, muito mais harmônico, menos contundente e muito menos briguento”, finaliza.
Fausto Godoy (Foto: Arquivo pessoal)
Fausto Godoy é bacharel em Direito pela Instituição Toledo de Ensino, em Bauru, São Paulo. Cursou doutorado na Universidade de Paris (I), em Direito Internacional Público, e História da Arte na École du Louvre. Ingressou na carreira diplomática em 1976, serviu nas embaixadas de Bruxelas, Buenos Aires, Nova Delhi, Washington, Pequim, Tóquio, Islamabad (onde foi Embaixador do Brasil, em 2004). Ainda cumpriu missões transitórias no Vietnã e Taiwan. Viveu 16 anos na Ásia, para onde orientou sua carreira por considerar que o continente seria o mais importante do século XXI. Atualmente é coordenador do Núcleo de Estudos e Negócios Asiáticos na ESPM e coordena o sítio Mapa Mundi, em que publica análises da conjuntura internacional.
IHU On-Line – Nessa edição do Fórum Econômico de Davos de 2021, o presidente chinês Xi Jinping alertou para o que chamou de “nova guerra fria”. Quais as questões de fundo desse alerta? Como ler a mensagem chinesa acerca do multilateralismo?
Fausto Godoy – A China de 2021 é completamente diferente da de dez anos atrás, pois está num processo acelerado de modificação de parâmetros, não somente econômicos, mas também quase que civilizacionais. Escutei atentamente a palestra de Xi Jinping em Davos e anotei algumas ênfases que ele fez no discurso que se encaixam perfeitamente nessa China de 2021 a que referi.
Primeiro, Xi fala muito de governança global. No contexto dessa governança global destaca a importância dos organismos internacionais. Sabemos que este era um dos pontos fundamentais da política de Donald Trump – na ocasião do encontro de Davos Trump ainda estava no poder –, essa ideia de América first, a “desmultilaterização” dos EUA. Então, o recado que Xi Jinping deu em Davos foi justamente de apoio ao multilateralismo. Isso é muito importante porque ele acoplou o multilateralismo ao processo da globalização.
A globalização é fundamental para a China, porque ela precisa do comércio internacional, a economia chinesa sobrevive sobretudo desse comércio internacional. E este é o farol para a China; não se esqueça de que a China é a principal parceira comercial para 124 países do mundo, contra cerca de 60 para os EUA. Isto já demonstra a importância desse comércio. E para China o multilateralismo, onde exista um acordo em torno de pontos principais de uma agenda internacional, é fundamental para ela.
Nesse seu discurso, Xi Jinping fala muito da importância do G20, o que é muito sintomático pois ele não menciona o G7, do qual a China não participa; ele coloca o G20 como o principal órgão da governança internacional. Então, está querendo compartilhar com os outros países que fazem parte do G20 a liderança do comércio internacional, e não retirando a importância do G7 ou G9, eleva o G20 a um patamar mais amplo, com mais países interagindo juntos.
Ele fala também da importância do respeito à diversidade para convivência internacional. Isso para ele é muito importante, na medida em que tira essa pecha de “comunismo X capitalismo”, pois são termos que estão cada vez mais anacrônicos; não faz mais sentido em 2021 falar-se em comunismo. Eu me pergunto, inclusive: o que é comunismo em 2021? Desde a queda do muro de Berlim não existe mais um comunismo ortodoxo. A agenda internacional contemporânea é muito mais diversificada do que a ideológica conservadora.
É possível considerar um país como a China, que tem o maior número de bilionários do planeta e empresas privadas do porte da Huawei e da Xiaomi como comunista? Esta insistência que o Ocidente tem para analisar a China como “comunista” é anacrônica. Isto é uma coisa que interessa a alguns países: achar ameaça comunista num mundo em que não existe. É preciso o respeito às diversidades políticas e econômicas. Se formos ler “O Capital”, de Karl Marx, veremos que aplicar as suas “receitas” à China de 2021 é algo “estratosférico”.
O grande trauma para os chineses é até hoje a herança do colonialismo. Não se esqueça de que o século XIX foi o “Século das Humilhações” para a China, como eles o chamam até hoje: foi quando o império chinês sofreu duas “Guerras do Ópio” – em 1839 e 1856 - promovidas pela corte de Londres, quando Pequim resolveu resistir ao consumo espúrio do ópio que a Inglaterra lhe exportava como única forma de tentar equilibrar a balança de comércio bilateral, altamente deficitária para ela. Os produtos chineses - seda, porcelana, chá, especiarias, etc. – haviam “invadido” a Europa no século XIX e não havia nada além da prata - proveniente da América Latina, aliás, que as cortes portuguesa e espanhola, “vassalas” economicamente dos ingleses, transferiam para Londres -, que os ingleses pudessem oferecer que interessasse a Pequim. Não se esqueça de que até o século XIX a China era a maior potência econômica mundial.
Contextualizando, fruto do seu pioneirismo na Revolução Industrial, a Inglaterra começa a crescer no início do século XIX e precisa de mercados alternativos para expandir o seu mercado, pois a Europa não é suficiente para ela. Obviamente busca a China, e tenta “aliciar” a corte do “Império do Meio”. Foi quando o Rei George III enviou uma missão a Pequim para propor a abertura dos portos chineses ao comércio com a Inglaterra. Deu tudo errado nessa missão. E a carta de resposta que o Imperador Qianlong enviou a George III é “antológica”.
Nela, Qianlong chama o rei da Inglaterra de “vassalo” pois, para o Império do Meio, todos os demais países eram seus vassalos. E continua: “oh, você vassalo que quer iniciar o comércio comigo e estabelecer entrepostos no meu país, saiba que não há nada que possa me mandar que seja do meu interesse. Seja feliz e continue sendo um bom vassalo”. Resumindo, os termos da carta são mais ou menos estes.
Imagine o que foi isto para o rei da Inglaterra. Como os chineses não queriam nada deles para contrabalançar o comércio, foi então que os ingleses resolveram exportar ópio que produziam no nordeste da China e mandavam para lá, transformando, como disse antes, a China em um país de drogados. Foi no momento em que a corte de Pequim resolve resistir a isto tudo que os ingleses promovem e vencem as duas guerras; e foi após a primeira delas que eles conseguiram, pelo Tratado de Nanquim, a propriedade da ilha de Hong Kong, que pertenceu à Grã-Bretanha até 1997.
Estas humilhações sofridas ficaram muito marcadas na psique dos chineses. Até quando estava lá, em 1994, eu ouvia esse papo sobre o trauma do “século das humilhações”. Resultado: isto ficou entranhado na mente chinesa, tanto que o “resgate da honra” está na raiz psicossocial da revolução comunista.
Bem, o comunismo estabelecido por Mao Tsé-tung, em 1949, quando o Partido Comunista Chinês assumiu o poder em Pequim, a dialética, a estrutura filosófica, econômica e política do comunismo, tudo isto se encaixava na China daquele momento. Ora, a partir de 1979, quando Deng Xiaoping assume o poder, ele sabe que “a coisa não é por aí”. Vai perceber que isto está esgotado, vai reconhecer que Mao Tsé-tung fez o que fez, mas que é preciso descontruir isso e se abrir para o mundo. Assim, resolve promover o que ele chama de “economia socialista de mercado”, o que é um neologismo econômico maravilhoso.
Como é que você pode qualificar o comunismo chinês? Na verdade, podemos considerá-lo um experimentalismo na busca de uma receita chinesa para o seu desenvolvimento enquanto país. É quando Deng Xiaoping vai criar as zonas econômicas especiais e tudo o mais. Ou seja, esse foi o vagido da China de hoje. Portanto, falar-se hoje em dia da “China comunista” a partir de 1979, a partir de Deng Xiaoping, é no mínimo, no caso das pessoas mais lidas, uma mentira, e no caso de alguns governos que existem por aí, total ignorância.
IHU On-Line – Então, o senhor nos explicou como essa nação vem galgando espaço no mundo para chegar num fórum como Davos e alertar para uma nova Guerra Fria. Mas de que Guerra Fria está falando?
Fausto Godoy – O que Xi Jinping chama de “Guerra Fria” é a guerra que era explícita quando Donald Trump estava no poder, essa briga por espaços econômico-comerciais; atualmente, com Joe Biden, ainda é uma incógnita. Não vai mudar o posicionamento entre EUA e China de forma substancial, porque o que está em jogo é uma coisa muito mais importante: o que se chama de “Guerra Fria”, na atualidade, é a transferência do eixo geoeconômico do Atlântico para o Pacífico/China. Resultado: a China está liderando esse processo de transferência da economia do Oeste para o Leste, que é cada dia mais evidente.
Neste último congresso do Partido Comunista, realizado agora em novembro, isto ficou bem claro. Xi Jinping falou em seu discurso que a China se transformou numa sociedade moderadamente próspera. O que isso significa para Xi Jinping, ao falar isso na reunião do Partido Comunista? Significa que ele quer destacar, e fez isso em Davos também, que a China acabou com a miséria absoluta. Isto ele afirma em alto e bom som. Significa que a China com um bilhão e 300 milhões de habitantes fez o que a gente, no Brasil, não conseguiu: é sua transformação em uma Sociedade Moderadamente Próspera.
Mas o que isto significa? O que tornou a China na China do século XX, na era Deng Xiaoping, a partir de 1979? O que fez, então, foi fabricar e comercializar produtos de baixa tecnologia, têxteis, brinquedinhos, bola de gude, bolas de Natal, etc.; foi com tudo isto ela “invadiu” a Rua 25 de Março, aqui em São Paulo. Com isto fez sua riqueza, inclusive usando sua mão de obra abundante e barata. Em 2015, ela criou o plano “Made in China 2025”. É um plano em que ela decidiu dar um salto tecnológico. Tem um livro importante, que Xi Jinping cita a todo instante, que é escrito por um professor da Academia de Defesa da China, o nome dele é Liu Mingfu. O título do livro é “The China Dream” (CN Times Books Inc., 2015) [edição em inglês].
No primeiro capítulo da primeira página desse livro o autor diz que o sonho da China é tornar-se, no final do século XXI, a principal potência mundial. E, para ele, isto significa tornar-se a maior economia mundial. Nas palavras do próprio autor, “significa que a economia da China vai liderar o planeta. Baseado nisso, a China se tornará o pais mais poderoso do mundo. À medida que a China alça esses degraus para ser a maior potência do século XXI, o seu objetivo é nada menos que o topo, tornar-se o líder da economia global moderna” [livre tradução do entrevistado]. Isto está escrito no livro, e Xi Jinping repete em quase todo discurso que ele faz.
É com essa ambição que os chineses resolveram, em 2015, criar o plano “Made In China 2025”, no qual foram selecionados dez setores de tecnologia de ponta para dar esse grande pulo para chegar ao topo de maior potência econômica e tecnológica do planeta. A China está deixando de produzir seus produtos de baixa tecnologia e os terceirizando para os países da região, para o Vietnã, Filipinas, países onde a mão de obra é barata, produtos estes que a tornaram tão importante nessa primeira etapa do processo de desenvolvimento, a partir da era Deng Xiaoping.
Vou elencar os dez produtos que eles querem incluir conteúdo doméstico chinês, feito com componentes domésticos, em até 40%, até 2020, e depois, em 70%, até 2025. Pois o objetivo é diminuir a dependência da China da tecnologia estrangeira, inserindo os fabricantes chineses de alta tecnologia no mercado global.
Os dez setores-chaves são:
1) tecnologia da informação avançada;
2) máquinas e ferramentas de controle digital;
3) robótica;
4) aviões, equipamentos oceânicos e navegação;
5) equipamentos de transporte ferroviário;
6) automóveis utilizando novas fontes energéticas;
7) equipamentos de energia elétrica;
8) equipamentos agrícolas;
9) novos materiais; e
10) biofarmacêutica e equipamentos médicos. Ou seja, o mundo tecnológico.
Esta é a ambição da China, este é o sonho de Xi Jinping.
Se você vê tudo isto que tratei e compara com o mundo Westfaliano [o chamado sistema Westfaliano, passou a servir de referência para guiar as relações internacionais europeias, sobretudo, durante o período compreendido entre 1648 e 1789, consolidando o conceito de Estado Nacional, em desenvolvimento, em estágios diferenciados, em Portugal, Espanha, Inglaterra e França, vinculado às Monarquias Absolutistas, desde o século XV; inaugurando o princípio da soberania estatal] verá que seus ideais não têm interesse algum para os chineses. O mundo Westfaliano, que é esse nosso mundo desequilibrado de você ter de expulsar os sírios de suas casas e todas essas guerras, isto não cabe mais na cabeça da China, que já persegue outro parâmetro.
Somos nós, no Ocidente, que temos de resolver nossas questões de fronteiras; a China não tem problema de fronteira, ela resolveu praticamente todas as fronteiras que ela tinha. As pessoas questionam sobre Taiwan e o Tibete. É um tema muito controverso, mas a China sempre considerou esses dois lugares como se fossem dela por questões e razões que podemos discutir eternamente; mas veremos que no século XXI a China não invadiu nenhum país. Não fez guerra contra nenhum país. Os EUA, por sua vez, por diversas razões, foram para o Afeganistão, Iraque... e a China quietinha...
Isto porque na cabeça do governo chinês o mundo do século XXI não tem nada a ver com território. Território é uma herança colonial que ela sofreu, e muito. Esta ambição colonial a China não teve, porque ela não foi colonizadora mas, sim, colonizada; portanto não tem que resolver essas fronteiras todas, a não ser as do Tibete e Taiwan, e com a Índia. O foco da China é outro, tornar-se a grande potência tecnológica do mundo e tudo o que aconteceu neste último congresso do Partido Comunista, esta definição do que a China vai ser, o objetivo de uma sociedade moderadamente próspera, é o objetivo do governo chinês.
IHU On-Line – Mas isso não quer dizer que não haja disputas, como a própria guerra comercial. Onde o senhor situa essa guerra comercial?
Fausto Godoy – A guerra comercial revela o empenho da China de levar esse seu projeto adiante e, evidentemente, esse processo ameaça a hegemonia do Ocidente, basicamente do Ocidente central. Podemos pensar: qual foi a iniciativa que China tomou nesta guerra comercial? Nenhuma; ela simplesmente reagiu. O “briguento” foi Donald Trump, que criou o America First e começou a “cutucá-la”. A China nunca fez isso, até porque ela estava muito bem. Foi a partir das investidas dos americanos que ela começou a reagir. Então, na realidade, na guerra comercial não é ela quem toma as iniciativas; está reagindo. A China ameaça? Claro que sim, ameaça com a realidade!
IHU On-Line – Algumas análises apontam que o interesse da China é tornar o Ocidente seu grande mercado consumidor para se tornar essa grande potência mundial e para isso ignora valores tão caros ao Ocidente, como a ideia de humanismo. Como o senhor observa isso?
Fausto Godoy – Primeiro, precisamos pensar: o que é cultura? O que é hegemonia cultural? Quem usa jeans? Nós todos, os chineses inclusive. Quem assiste filmes norte-americanos pelo mundo afora? Isto não é soft-power? Pois é, isso não é dominação cultural? Então, quer dizer que esse domínio cultural do Ocidente, com suas verdades que estão agora sendo ameaçadas pelas “alienígenas”, é o que podemos chamar de ocaso do humanismo?
Morei durante 16 anos em 11 países da Ásia, passando pela China, Índia, Japão, Paquistão, morei em seis países muçulmanos, e como resultado desta vivência, compreendi que os conceitos do Ocidente não se traduzem no Oriente. Estes conceitos e valores ocidentais, mesmo com a globalização e tudo mais, não são os valores dos chineses. O humanismo do Ocidente não é o humanismo dos chineses. Os chineses têm uma coisa maravilhosa que se chama “confucionismo”. E resumindo a filosofia confucionista, podemos dizer que por ela o bom cidadão é aquele que respeita seu pai, sua família, seus vizinhos, sua sociedade e seus líderes.
Nesse universo, que é plural desde sempre, o indivíduo vai se realizar em sociedade. A cultura do Oriente vem a ser a do homem inserido na sociedade. A cultura do Ocidente, ao contrário, desde sempre é a cultura do “eu”, a cultura da “Declaração dos Direitos do Homem” francesa. Ou seja, o meu direito vai até onde começa o seu. São diametralmente opostos os conceitos de inserção do indivíduo no Ocidente e no Oriente. A maioria dos países do Oriente, especialmente os da Ásia do leste, tem esse fundo confucionista muito presente na sua civilização. Então, se falamos de Descartes, de Platão e Aristóteles e toda a cultura do Ocidente, vemos que quando se fala em cultura no Oriente fala-se de Confúcio e todos os seus outros grandes filósofos e pensadores.
Será que os chineses estão ameaçando a cultura do Ocidente com seu confucionismo? Será que o nosso humanismo se traduz em chinês (ou mandarim)? Essa visão do mundo é básica: como nós temos a nossa visão do mundo, e nossas verdades, considerando-as absolutas e irretocáveis, achamos que quem não comunga das nossas verdades e conceitos não é um humanista. Se formos para lá, eles vão achar que não, que somos egoístas e autocentrados. Por isso questiono: será que essa expansão da China, que é – e será geoeconômica – e não geocultural, significa que a China quer “culturalizar” o mundo, transformando a cultura Ocidental em dependente da cultura chinesa? Nunca!
O chinês é pragmático, o confucionismo é pragmático, o budismo na China não “pegou” muito porque tem valores e éticas estratificados e os chineses, que são absolutamente sociais no sentido da convivência, o que querem é o bem-estar. A cultura chinesa é baseada no eixo familiar, no convívio da família e da sociedade nuclear; da família, se expande para a cidade e por aí em diante. E é extremamente pragmática. Tanto que as religiões são difusas, você não consegue saber qual a religião dominante na China. Confucionismo não é religião, é filosofia. O chinês é budista? Sim, e não. É taoista? Sim, e não: é taoista, budista e tudo que se quiser e o que lhe atender num determinado momento.
É isso que precisamos entender, pois estamos agora com uma visão muito radical, uma radicalização religiosa que acaba transformando tudo em ideologia. O chinês não está se importando minimamente com isso. Somos nós que nos molestamos, porque achamos que o mundo deve ser visto da nossa maneira. É o que Xi Jinping falou no Fórum de Davos, no humanismo internacional.
IHU On-Line – Ainda no final de 2019, o mundo olhava para China tentando compreender o seu crescimento e poder no cenário global. Mas, essa mesma China foi o primeiro país impactado pelo novo coronavírus. Como a pandemia impactou essa ascensão chinesa e reconfigura a China de hoje na relação com o mundo?
Fausto Godoy – Quais são as vacinas que estão salvando o Ocidente? De onde elas vêm? Da China, da Índia, da Rússia, são estas vacinas que estão nos salvando. Não se fala de vacina francesa, inglesa... É como se fosse uma “vingança” do Oriente. A pandemia pode ter começado na China, como a febre amarela começou em outro lugar, assim como outras pestes: pandemia não tem fronteira. Presume-se que começou na China esta pandemia, atualmente, porque a China é um país que está vivendo as consequências de um profundo processo de urbanização, o que é, aliás, um dos maiores desafios para o governo chinês.
Imagine que até 1976, quando teve lugar o “Grande Salto em Avanço” de Mao Zedong, a China era um país eminentemente agrário. Mao tentou industrializar a China de maneira acelerada, e foi uma catástrofe: 20 milhões de pessoas morreram porque ela não estava preparada para se industrializar dessa forma. Agora está num processo de urbanização aceleradíssimo, e nós estamos falando em um bilhão e 300 milhões de pessoas se movimentando. Tanto que eles têm um processo que chamam de hukou, pelo qual o indivíduo tem que ter uma espécie de identidade/passaporte do lugar onde nasceu. Segundo este processo, que ainda existe, mas está cada vez mais caindo em desuso, com a carteira do hukou ele tem direito a escola grátis para seus filhos, saúde pública e outros benefícios sociais, mas só no lugar onde está registrado; no momento em que não está mais lá perde todos estes benefícios. Era uma maneira que o governo havia criado para reter a população no campo e evitar fossem para as cidades, que inchavam com a industrialização.
Assim, o processo de urbanização que traz as pessoas para cidade, fruto da industrialização da China, é que está definindo o que vai acontecer no futuro. Aliás, cabe aqui uma observação: viajei muito pela China nos três anos em que morei lá, e nunca vi uma pessoa descalça, ou vivendo dentro de caixotes de madeira, ou debaixo de pontes, como a gente vê aqui em São Paulo. Era uma pobreza franciscana, mas não vi mendigos – isso estou falando de 1994.
Pois bem, esse chinês que está indo para a cidade não está acostumado com os modos de vida urbanos, está acostumado com a vida no campo, onde cria galinha solta, come tartaruga, grilo, gafanhoto, etc. Ou seja, o hábito alimentar e o padrão de higiene do chinês na cidade ainda repete muito o padrão do campo e foi isto que acredito tenha sido a causa do espraiamento do coronavírus. Dizem, inclusive, que foram moluscos que foram vendidos nos mercados de rua que estavam contaminados. Mas isto poderia ter acontecido em qualquer lugar do mundo. A pandemia não tem autor, começou em Wuhan comprovadamente, mas quando isso aconteceu a China alegou que ainda estava averiguando. Isso porque ela não queria “perder a face”, desprestigiar-se: um dos esteios da civilização chinesa é o “mianzi”, que significa a honra, ‘não perder a face’.
No universo confucionista, como o indivíduo tem que agir - e só se realiza - em sociedade, ele tem que ter o respeito dessa sociedade, tem que ter sua honra reconhecida e, portanto, não pode “perder a face”. Foi isto o que aconteceu: a China, no começo estava sendo acusada de ter começado a pandemia; e as autoridades reagiram mal quando foram acusadas de terem desenvolvido o vírus num laboratório a fim de contaminar o mundo. Veja que coisa sem sentido, quer dizer que eles primeiramente se contaminaram, a fim de depois contaminarem os outros? Olha como a paranoia do Ocidente é uma coisa incrível, como estamos atrasados com relação ao pensamento universal.
Então, os chineses foram averiguar e reconheceram que realmente ela iniciou-se lá, e começaram a fazer de tudo. Estamos vendo os chineses mandando médicos para todos os lugares do mundo, principalmente para a região vizinha, que mais interessa a eles, países como Mianmar, Bangladesh, e até para regiões da África. Além disso, são as empresas chinesas que estão desenvolvendo as vacinas e agora exportando para o mundo todo. Veja a bobagem de vermos autoridades falando em “comunavírus”, o vírus comunista chinês que veio nos contaminar. Mas quem nos está oferecendo a maior quantidade de vacinas é justamente a China. E está fazendo isto para todo o mundo.
É claro que as empresas fabricantes ganham com isso, mas China está atendendo a nós antes de atender a si mesma: um bilhão e 300 milhões de pessoas para serem vacinadas é um projeto de que não temos nem ideia. Veja só o caso do Brasil: temos 210 milhões de habitantes e estamos nesta balbúrdia, neste caos para fazer a vacinação. A China não só já organizou seu processo de vacinação como está mandando vacinas para o mundo todo, sem falar no envio de técnicos e equipamentos para vários países, e mandou inclusive respiradores para nós.
IHU On-Line – Ou seja, podemos mais uma vez dizer que esse episódio da pandemia, apesar de doloroso para todo o mundo, mostra o poder de resiliência e a potência de reação da China sob situações adversas?
Fausto Godoy – Nesse sentido, tem outra coisa que é fundamental no conceito do confucionismo. Eu considero que a civilização chinesa tem alguns pilares. O primeiro é o confucionismo, outro é a unidade do território e outros dois, muito importantes, que são a questão que comentei da honra do indivíduo no contexto social; o outro é o guanxi, que é a camaradagem, a amizade.
Entre os fundamentos confucionistas do conceito de sociedade, o amigo, o vizinho, aquele que está mais próximo tem uma importância enorme. É o que chamo de relacionamentos/camaradagem, pois você precisa conviver em harmonia. Aliás, essa busca pela harmonia também está na base da civilização chinesa. E já antes da dinastia Zhou [calcula-se que o início desta dinastia tenha se dado com a queda da Dinastia Shang, no final do século X ou IX a.C., e seu término com a ascensão da dinastia Qin, em 221 a.C.], foi criado um conceito político-filosófico chamado ‘o Mandato do Céu’.
Segundo esta filosofia, a sociedade, baseada no princípio da harmonia entre todos, e do bem-estar comum, para funcionar em harmonia delega plenos poderes ao governante, seja ele líder tribal, governador, imperador, ou mesmo o Partido Comunista. Esse conceito do ‘mandato do céu’, significa ‘faça por mim o que você acha correto’, desde que você seja – e essa palavra é fundamental – virtuoso. O reino, ou império, ou governo, tem que ser virtuoso. No momento em que o imperador, o governante, ou o Partido Comunista, não mais se provar virtuoso para a sociedade, essa mesma sociedade o destitui. A história da China foi sempre assim: na dinastia Shang, e em todas as que a seguiram, aconteceu desta forma. Normalmente, quando um grupo, uma tribo, assume o poder, a sociedade lhe delega o mandato do céu; e ela vai levando e decidindo pelo grupo com total liderança até o momento em que não lhe corresponde mais; ela então cai, e tem início uma outra dinastia, e assim vai.
Este princípio do mandato do céu é o que justifica o que está acontecendo na China. A pergunta é a seguinte: será que o Partido Comunista chinês detém o mandato do céu atualmente? Ele tem. Exemplo: quando eu morava na China, em 1994, os chineses não tinham direito de ter carro, casa; tudo pertencia ao Estado. Hoje eles não só possuem tudo isto como contam com empresas privadas importantes, possuem o maior número de bilionários no mundo e vão fazer turismo em qualquer lugar. Olhe, fui a Valência na Espanha – e quem você conhece vai fazer turismo em Valência, aliás uma linda cidade? – e lá encontrei turistas chineses. Isso significa que essas pessoas com as quais eu convivi em 1994 que não tinham direito nem de ter casa própria agora fazem turismo pelo mundo afora.
Portanto, eles estão felicíssimos com o Partido Comunista! Claro que há dissidentes, claro que há reações, principalmente em Hong Kong, mas tirando estas exceções, que são reduzidas ainda, o chinês está muito contente com a sua liderança. E eu trago isso para a questão da pandemia. Quando a pandemia começou a estourar, o Partido Comunista decidiu fechar de imediato Wuhan, com seus 12 milhões de habitantes; toda a sociedade obedeceu na hora. Aqui, falamos em fechar São Paulo, e o Brasil, mas conseguimos? Ficamos em casa trancados? Percebem a diferença? O que fez com que os chineses obedecessem é que o conceito que eles têm da vida em sociedade faz com que eles se sintam responsáveis pelos outros. Não estão apenas cumprindo ordens.
O conceito que nós ocidentais, e brasileiros em particular, temos é baseado no individualismo: o sujeito quer tomar um chopinho e vai, não gosta de máscara porque machuca o nariz e não usa, e vemos o que está acontecendo. E estamos, também, vendo o que está acontecendo na China. Ela está controlando de maneira eficiente o surto pandêmico.
IHU On-Line – Como compreender a diplomacia chinesa? Quais os maiores erros do Brasil na compreensão dessa diplomacia? Quais as possíveis consequências?
Fausto Godoy – Qual é a idade da civilização chinesa? No mínimo, 5 mil anos! Qual é o tempo de nossa civilização brasileira? 500 anos. Então, como é que uma civilização de mais de cinco mil anos olha para “meninos” de 500 anos? Nós os ferimos com as manifestações do nosso presidente, de alguns deputados e de quem quer que estivesse falando aqueles impropérios contra eles. Ferimos o conceito de honra, o mianzi, deles, os ferimos, sim, e bastante. Nós os afrontamos naquilo – o “mianzi” – de que eles mais precisam para se sentirem bem recebidos no mundo. Só que temos aí como filtro os 6 mil anos de história. Quem foi o maior estrategista da história? Um senhor chamado Sun Tzu (544 a.C. – 496 a.C.), que escreveu “A Arte da Guerra” [com versão do original traduzido em português numa edição da Geração Editorial, 2009].
Então, como são estrategistas, eles consideram o Brasil muito importante para eles, porque lhes fornece o que mais necessitam, que é comida; se olharmos para a geografia da China, veremos que ela é o terceiro maior país do mundo em termos territoriais, mas só possui um terço do seu território com terras habitáveis e cultiváveis; dois terços são ou montanhas, ou desertos. Na realidade, um bilhão e 300 milhões de habitantes moram num espaço geográfico que vai do Rio Grande do Sul até a Bahia. O que é fundamental para essa gente toda encaixada num espaço tão exíguo? Comida! E quem pode alimentar a China? A Europa vai produzir soja que é a base da alimentação chinesa? Por isto, somos fundamentais para ela (e os países africanos também).
40% de nossas exportações do agronegócio vão para a China. A “parceria estratégica” que firmou conosco em 1993 é fundamental para ela. Podemos dar “chute na sua canela”, mas, como estrategista com olhar antigo, a China vai pensar ‘deixa essa coisa pra lá; vai passar ’. E fez o que tinha que fazer: certamente seguindo instruções do seu governo, o embaixador chinês redigiu uma cartinha pesada e brigou com Bolsonaro, o filho dele e algumas outras autoridades, mas deixou por isto mesmo, porque ela não vai comprometer o que é essencial para ela por causa de alguns mal-educados de plantão, pois sabe-se lá até quando essa gente ficará no poder. Até porque, também no caso da vacina, seus detratores ‘tiveram que engolir suas palavras” com o auxílio dos chineses.
A China mantém um olhar de longo prazo em tudo o que faz. Seu conceito é o da eternidade, o peso, e as lições da História são fundamentais para ela. Os chineses sabem de onde vêm, quem são, e têm um roteiro para onde querem ir.
IHU On-Line – Podemos, então, dizer que a China olha para esse governo brasileiro como uma onda que vai passar e por isso olha adiante, enquanto nós aqui nos debatemos nessa onda sem um olhar mais amplo?
Fausto Godoy – É claro! E não é nem com o governo Bolsonaro: é com relação aos governos. Em relações internacionais os países não têm amigos, têm aliados, interesses: as relações são baseadas em interesse. E a China tem todo o interesse de manter relações conosco, porque ela precisa de nós, não só de alimento como também das nossas outras commodities. E não vejo nisto problema algum. Nós, brasileiros, ficamos com complexo achando que seremos o país das commodities enquanto os outros vão produzir tecnologia, mas e daí? Não se pode comer computadores e celulares, né? E o nosso campo, a nossa agricultura, tem imensa tecnologia. Temos tecnologia orientada para um setor fundamental.
O mundo está se encaixando em janelas de oportunidades. Tanto é assim que a Ásia praticamente prescinde do Ocidente: os principais parceiros da Ásia do leste são os próprios países da Ásia do leste. Em novembro do ano passado, China, Japão, Coreia do Sul e Austrália criaram uma Parceria Regional Econômica Abrangente, que será a primeira grande zona de livre comércio do planeta (firmaram o acordo, mas ainda falta retificá-lo). O Ocidente está fora deste processo. Nele, eles têm parceiros tecnológicos - China, Coreia e Japão -, têm os que fornecem mão de obra barata - Vietnã, Filipinas -, e têm um mercado enorme. Quase que dispensam o restante do mundo. Isto é um perigo, uma ameaça que ninguém está vendo aqui. A gente ainda está no mundo Westfaliano enquanto eles estão em outra esfera. Esta é minha grande preocupação, pois estamos formando quase que dois mundos incomunicáveis: um mundo que está olhando para o outro, e o outro que está se bastando a si mesmo.
Claro que haverá desafios para eles, pois também vai chegar um momento em que vão brigar entre si. E até já brigam: os chineses não gostam dos japoneses, que não gostam dos coreanos, e por aí vai. E tem agora a China invadindo as ilhotas do Mar do Sul da China. Portanto, o que estou falando é que nada é róseo. Como disse, nas relações internacionais não tem branco e nem preto, é tudo cinza. Neste momento é o que está acontecendo, e para vermos o quanto nós no Ocidente estamos deslocados dessa realidade, que já chegou e que é pós-westfaliana, com todos seus conceitos de transnacionalidade, basta olhar para a nossa realidade: ainda estamos brigando por territórios. Veja se têm cabimento hoje as guerras da Síria, do Afeganistão, do Iraque, os massacres que estão perpetrando em nome de quê? Estamos todos infectados por estes radicalismos religiosos, e eles estão lá, tranquilos no caminho deles.
IHU On-Line – O que muda com a saída de Donald Trump e a chegada de Joe Biden na relação EUA e China? E na geopolítica atual?
Fausto Godoy – Muda a verbosidade, muda a virulência, muda a contundência, muda a “briguinha de quintal”. Evidentemente que os EUA, o Ocidente, todos nós estamos confrontados com a emergência do Oriente. O mundo já não tem mais como escapar: a região que mais cresce é a do Pacífico, e a Índia também. Esse mundo já é! Nós só não nos demos conta ainda. Vocês ainda verão – eu não mais, pois estou com 75 anos de idade – um mundo radicalmente diferente do que tínhamos. Quando eu nasci em 1945, a maior potência mundial era a Inglaterra, “o sol não se punha no império britânico”, dizia o jargão político. Mas, a partir da Segunda Guerra Mundial, os EUA já estavam tomando a liderança; a segunda metade do século XX foi uma hegemonia compartilhada entre a União Soviética e os Estados Unidos; depois, cai a União Soviética, em 1991, e continuam os EUA como hegemon. Portanto, no meu tempo de vida, vi o eixo civilizacional e a hegemonia mundial passarem por várias regiões. E não tenho dúvida de que a próxima região hegemônica será a Ásia. O que não se sabe ainda é por quanto tempo, pode ser por outros dez anos, ou por muito tempo, vai depender da vontade política e da capacidade dos dirigentes asiáticos.
Os EUA estão confrontados com a realidade da China. Por enquanto, a coisa ainda é temática, é “guerra comercial”, e tudo mais, mas o buraco é mais embaixo, trata-se de uma transferência da geoeconomia, e talvez de uma geopolítica, dos EUA/Ocidente para a China. O que é interessante é que a China jamais vai querer impor seus valores pois isto não faz parte da sua civilização, ela não acha que é a dona da verdade; acha que é dona da sua verdade. É o que Xi Jinping falou no Fórum de Davos. Essa disputa vai continuar pela própria necessidade de o mundo se encaixar e interagir economicamente e politicamente. Só que nós no Ocidente – não só no Brasil – não estamos entendendo que isso é inarredável: ao invés de confrontar, é preciso encarar que o mundo é poli-hegemônico, e nesse mundo não cabe mais impor conceitos.
A guerra comercial é só uma partezinha numa disputa muito maior que é pela hegemonia mundial, pois a China já disse que quer ser a maior economia do mundo. Mas será? Só o tempo dirá, pois ela também tem desafios enormes, tem a urbanização, a questão populacional, da despopulação, tem uma série de problemas, também, que não são fáceis de resolver, não.
IHU On-Line – O que esses anos de atuação em países asiáticos lhe revelou? O que mais lhe marcou nessas experiências?
Fausto Godoy – Olha, nunca pensei nisso, mas vou arriscar. Acho que o que mais me marcou em toda a Ásia foi a busca da harmonia no contexto social. Existem disputas e brigas, mas no cotidiano, seja no Japão, na China, em Myanmar, até nos países muçulmanos - Paquistão, Cazaquistão, excetuando-se os grupos radicais – o convívio em sociedade é muito mais orgânico, muito mais harmônico, menos contundente e muito menos briguento. As pessoas na Ásia têm esta visão; talvez seja a religião que faz isso; o universo confucionista e o budismo fazem com que você olhe para as relações humanas de uma maneira menos agressiva. Isto acho muito reconfortador: é a lição mais profunda que eu trouxe da Ásia. É algo muito, muito importante na minha vida.