22 Janeiro 2021
Se o ataque ao Capitólio foi o de uma turba tentando subverter a ordem constitucional dos Estados Unidos, o que aconteceu na Igreja Católica nos últimos anos foi uma tentativa de defenestrar o atual papa.
A opinião é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, nos EUA. O artigo foi publicado por La Croix International, 20-01-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Parecia uma cena de batalha medieval.”
Foi assim que um policial de Washington descreveu o ataque do dia 6 de janeiro ao Capitólio, sede do Congresso dos Estados Unidos.
A cena de batalha medieval é uma imagem apropriada para descrever o que aconteceu no catolicismo estadunidense desde a eleição do Papa Francisco em 2013.
Vimos gritos de mobilização semelhantes (“Retomemos a nossa Igreja”), táticas semelhantes (a disseminação de mentiras e de teorias da conspiração) e eminentes mentores semelhantes ou pelo menos minimizadores úteis daquilo que está acontecendo (não os desgrenhados personagens da multidão, mas sim os que vestem terno e gravata em um estúdio de TV católico).
Se o ataque ao Capitólio foi o de uma turba tentando subverter a ordem constitucional dos Estados Unidos, o que aconteceu na Igreja Católica nos últimos anos foi uma tentativa de defenestrar o atual papa.
Tudo começou logo no início – na primavera e no verão de 2013 – na tentativa de minar a sua legitimidade.
Então, quando essas táticas de deslegitimação claramente não estavam funcionando, um grupo de conspiradores se formou em torno do arcebispo Carlo Maria Viganò, em agosto de 2018, quando o ex-núncio papal em Washington (2011-2016) liderou uma campanha feroz e sem precedentes para desacreditar Francisco.
Enquanto Viganò instigava o papa jesuíta a renunciar, duas dezenas de bispos estadunidenses apoiaram publicamente o ex-núncio. Nenhum desses bispos jamais se desculpou ou se retratou de seu apoio, mesmo que tanto Viganò quanto suas reivindicações tenham sido decisivamente desmascaradas.
Não é de se surpreender que sejam esses mesmos bispos que procuram deslegitimar as credenciais do presidente Joe Biden como católico.
A Igreja dos Estados Unidos está no centro da crise política e religiosa que não está nem perto de se resolver em um futuro previsível.
A Conferência dos Bispos dos Estados Unidos (USCCB, na sigla em inglês) não conseguiu preencher a lacuna entre o fato de tentar permanecer apartidária e de estar disposta a falar a verdade.
Basta comparar a declaração da USCCB sobre o Capitólio e a denúncia do cardeal austríaco Christoph Schönborn sobre a tentativa de insurreição.
O arcebispo Paul Coakley, de Oklahoma City, presidente da Comissão de Justiça Doméstica e Desenvolvimento Humano da USCCB, emitiu uma declaração no dia 16 de janeiro pedindo a paz e condenando a violência.
Mas o cardeal Schönborn já tinha ido mais longe do que isso.
“A multidão que invadiu o Capitólio estava falsamente convencida de que estava lutando contra a maior fraude eleitoral da história dos Estados Unidos. Nada justifica a sua violência. Muito menos as mentiras que levaram à violência”, disse o cardeal em um comunicado do dia 15 de janeiro.
“Isso é o que acontece quando a verdade não pode mais ser distinguida das mentiras. Que advertência contra o poder das mentiras!”, exclamou ele.
De fato, “o poder das mentiras” está no cerne do problema referente aos recentes ataques contra o sistema constitucional da democracia estadunidense e contra o status eclesial da Igreja Católica no país.
Um debate intracatólico nos últimos dias focalizou correta e necessariamente o fracasso dos bispos estadunidenses em denunciar inequivocamente o trumpismo ou a disposição de algumas lideranças católicas de dar passe livre a Trump e de retratá-lo, tácita ou abertamente, como o candidato mais simpático à Igreja.
A atenção se concentrou também na responsabilidade que as mídias católicas dos Estados Unidos têm de criar um ambiente cheio de ódio.
Mas aqui há outra classe de lideranças que puderam escapar muito facilmente: os profetas e precursores do trumpismo católico que não são membros do clero e não trabalham na mídia católica.
Há comentaristas católicos na mídia tradicional que procuraram dignificar os instintos de “retomada da nossa Igreja” canalizados por meios de comunicação menos prestigiados.
Por exemplo, Ross Douthat, um adulto convertido ao catolicismo que é colunista do New York Times desde 2009, minimizou constantemente a ameaça que Donald Trump representava para a democracia estadunidense desde o momento em que o apresentador de reality show e bilionário anunciou sua candidatura para a Casa Branca em 2015.
Ao mesmo tempo, Douthat fomentava suspeitas contra o Papa Francisco.
“As ambições do pontífice encorajaram conspiradores e contraconspiradores a trabalhar com maior vigor. E, exatamente agora, o conspirador-chefe é o próprio papa”, acusou ele nas linhas de abertura de uma de suas colunas de outubro de 2015.
Esse artigo não foi um incidente isolado. Douthat publicou um livro em 2018 sobre Francisco – ou, melhor ainda, contra ele.
Ele está cheio de intuições típicas de um intelectual perversamente perspicaz. Mas também revela algumas das doenças culturais do trumpismo.
Basta olhar para as fontes citadas por Douthat. Algumas delas são conhecidas pela sua implacável campanha de mentiras contra o papa.
Outro herói dos conservadores católicos é o jornalista Rod Dreher. Outrora convertido ao catolicismo, ele agora é membro da Igreja Ortodoxa Oriental.
Suas explosões contra o Papa Francisco não chegaram ao ponto do não arrependimento que ele publicou depois daquilo que viu no comício do movimento Trump em Washington, no dia 12 de dezembro.
Acontece que Viganò abordou esse evento via vídeo.
Em um artigo de fevereiro de 2020 intitulado “A ameaça do Papa Francisco”, Dreher ridicularizou o atual pontificado.
“A guerra espiritual que está acontecendo agora na cúpula da Igreja Católica será decisiva para o futuro do mundo”, escreveu ele.
Mas esse é apenas um exemplo.
O ataque ao Capitólio foi um ato de terror doméstico preparado e executado por centenas ou milhares de indivíduos. Mas há outros que não fizeram parte daquela turba do dia 6 de janeiro e que têm responsabilidade moral pelo que aconteceu.
Eles incluem católicos que detêm poder político e outros que trabalham na mídia.
E eles também compartilham a responsabilidade pelo ataque ao pontificado de Francisco. A única razão pela qual as mentiras do arcebispo Viganò ganharam força entre o público católico é porque os comentaristas que deveriam conhecer melhor a situação têm alimentado essas mentiras.
Entre eles estão católicos (e ex-católicos) que não tiveram nenhum escrúpulo moral ou profissional em participar nesse ato de falsidade, a fim de expandir suas já grandes audiências na mídia.
É claro, o problema não é criticar o papa. É jogar a culpa das coisas que ele faz e de que você não gosta sobre algum tipo de conspiração nefasta. Vimos isso na política dos Estados Unidos, assim como na Igreja.
Existe um paralelo entre o ataque à legitimidade de uma eleição e a recusa em aceitar o seu resultado, tanto no que diz respeito ao Papa Francisco quanto ao presidente Biden.
As teorias da conspiração levaram várias pessoas dos Estados Unidos e de dentro da Igreja Católica lá a se desorientar totalmente, enquanto seus facilitadores intelectuais conseguiram surfar a onda anti-institucional e antiestablishment.
Neste momento político e eclesial, é fácil perseguir as mídias católicas. É ainda mais fácil apontar o dedo para os bispos, um alvo visível e com muito a responder.
Mas este momento de acerto de contas exige um espectro amplo de análises e, especialmente, uma reflexão sobre o papel dos formadores de opinião que ajudaram a transformar o “safar-se de tudo” em uma arte.
É o privilégio daqueles que George Orwell chamava de classe dominante “inensinável” [unteachable, muito semelhante a untouchable, "intocável"] – o produto de um sistema de elite em que a ignorância é bem disfarçada pelo desdém e pelo desprezo por aquilo que eles ignoram.
Safar-se pelo fato de espalhar mentiras pode ser a regra na política. Mas não deveria ser a forma como a Igreja lida com aquilo que aconteceu nos últimos quatro anos.
Estou ansioso pelo mea culpa de alguns bispos. É mais provável que venha deles do que daqueles que Orwell considera inensináveis.
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O ataque ao Capitólio e a tentativa de golpe contra o Papa Francisco. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU