23 Dezembro 2020
"O momento está a exigir de nós coragem e sabedoria para sobreviver em águas turvas e violentas. O que está em crise afinal nos interpela a uma nova oportunidade. A superação da crise é antes de tudo a manutenção da esperança, da purificação e da libertação de tudo que acrisola", escreve Rafael dos Santos Silva, professor da Universidade Federal do Ceará - UFC e doutorando em sociologia pela Universidade de Coimbra.
O substantivo feminino esperança é a tradução da expectativa humana em relação a algo que deve acontecer. Se traduz em uma grande aposta que se junta a fé e a caridade para propor um conjunto de virtudes essenciais para a continuação da vida. Esperança nada mais é que uma crença que na verdade ainda não foi revelada, mas que se alimenta pelo próprio movimento de sua existência. Nas palavras de Gianni Vattimo é acreditar em algo com alguma margem de certeza. Quem não cultiva a esperança é por definição um desesperado. Não espera mais nada, nem tão pouco acredita na mudança. Sem ter o que apostar, o desesperado já perdeu porque sufocou o imaginário, não cultivou a utopia, ao se dá a racionalidade pura.
Foi com essa dimensão que Dante Alighieri identificou a fronteira de acesso ao inferno justamente quando sentenciou “ao entrar deixe a esperança”. Para o autor da Divina Comédia, desfazer-se da esperança é o ato mais evidente do desembarque no lugar das trevas, sem luz e mediado pelo medo. A frase escrita no início da idade média servia de prenúncio a tudo que estava por vir para aquela fase da história. Era a mais pura síntese das pestes, das guerras e das pandemias, além de todo peso do fundamentalismo religioso a grassar sobre a sociedade mais humilde, amontoada sobre a sua própria pobreza.
Em tempo, tomo emprestado do italiano sua famosa frase, associando a um antigo adágio popular ao dizer que “cada ano merece uma inscrição”. A sentença anunciada por Dante bem que poderia servir ao ano de 2020 como sua inscrição. Isso porque o período foi marcado por profundas mudanças. Nem tanto devido a evolução das tecnologias, nem tão pouco devido ao fim das fronteiras financeiras, mas certamente por uma mudança radicalmente simples, e potencialmente destruidora. Quem primeiro tentou chamar atenção foi um jovem médico chinês chamado Li Wenliang, quando em novembro de 2019 alertou para os riscos de uma catástrofe humanitária em função da SarsCov-2. O coronavírus havia subido, para usar o termo dos biólogos, ao circuito humano, colocando toda a modernidade de joelhos. Novamente uma pandemia a confundir a história da humanidade, mais desta vez com uma capacidade de globalizar-se como nunca antes.
A ciência nos serviu de escudo, mas seu ritmo, era infinitamente inferior a velocidade de contágio do vírus. Toda a tecnologia disponível de pesquisa foi concentrada em um único foco e o mundo elegeu seu inimigo número um. Quase que instantaneamente uma rede de solidariedade foi instalada para garantir suprimento de equipamentos de proteção individual aos profissionais da saúde. Muitas lideranças se apressaram para garantir proteção aos seus cidadãos. Nessa área, registra-se com grande destaque o pontificado de Francisco, que a um só tempo tisnou sua liderança religiosa com tonalidades políticas capazes de impactar decisivamente os rumos destes tempos.
Contudo, não era só o vírus. Havia a mesquinhez de alguns políticos. Nos EUA, por exemplo, um sujeito empunhou a velha a frase de Dante na porta da casa branca. Sua inspiração contaminou outras lideranças que igualmente apequenadas emprestaram seus poderes para produzir medo e morte. Utilizaram o argumento de que não poderia parar a economia, como se pudesse haver economia sem pessoas, e sustentaram uma verdadeira batalha sob o manto do fundamentalismo religioso.
No Brasil, não foram poucas as pessoas que teimavam em sustentar a placa da porta do inferno. Seu principal expoente foi exatamente o presidente da república. Figura insólita e desprezível, não poupou esforços para atrapalhar, desfazer e desorganizar qualquer ação cuja finalidade fosse coletiva. Seus atos assentados na égide do “quanto pior melhor” não encontravam limites ético e moral. Agiu de forma sistemática e proposital para erguer a identificação do inferno no Palácio do Planalto. Sua postura a frente da república brasileira o colocou como um pária na diplomacia global.
Na prática, o governo brasileiro nem cuidou da pandemia, nem da economia. Retardou o auxílio emergencial, criou dificuldades para estabelecer regras nos momentos de crise. Desarticulou equipes que buscavam, bem ou mal, enfrentar a situação calamitosa. Por último, desautorizou o seu ministro da saúde a não comprar a vacina pelo simplesmente fato desta ser chinesa. Incrível!
Como se não bastasse, há três meses reduziu pela metade, a ajuda da renda direta, retirando o poder de compra das famílias mais pobres. Pesquisa recente divulgada pelos meios de comunicações revelam que tal medida reduziu o poder de compra de alimentos em 75%, de medicamentos em 65%, e em 57%, a capacidade de pagar por água, luz e gás. Ainda insatisfeito, o governo caminha para retirar totalmente a única renda de 36% da população, mesmo sabendo que seus recursos foram reduzidos em 60%. Para não lembrar das pessoas em situação de fome, da exclusão social colossal, e da desigualdade predatória a tornar os pobres, ainda mais pobres.
Paralelo a tudo isso, o governo federal se esforçou apenas para ocupar os noticiários articulando chavões com sadismos, retoricas toscas com boçalidades, mas quando somadas se mostravam capazes construir, dia-a-dia, uma narrativa pueril a confundir as mentes e a provocar divisão. A insanidade vista no Brasil, chega a lembrar o famoso imperador romano que ao atear fogo na cidade eterna, culpava seus opositores como forma de escamotear seus reais planos de sequestrar a poder. Um sadismo sem igual.
Como se vê, o ano de 2020, foi sem dúvidas o mais desafiador de todo o tempo moderno.
Mas fomos agraciados com a belíssima coincidência astronômica apresentada pelo solstício de verão ocorrido exatamente quando escrevia esse texto. Tal fenômeno só havia sido observado a olho nu há pouco mais de 600 anos, quando serviu aos estudos de Galileu Galilei. Não faltam quem diga que o grande encontro entre Júpiter e Saturno resultou na estrela de Belém que orientou os reis magos à manjedoura, irrompendo outra possibilidade. Sim, como diz o velho samba: o sol há de brilhar mais uma vez... Há esperança!
Por isso, não podemos dizer com tristeza: apesar de tudo é natal. É preciso entusiasmo para dizer: é natal, mesmo apesar de tudo. É o advento da boa nova a irromper a alegria nos pobres, congregar os afetos e renova o esperançar. Temos muitos motivos, abstratos e concretos a comemorar. Várias mensagens positivas não param de chegar. Vem da ciência a principal delas. Em tempo recorde, não uma, mas seis vacinas entraram em fase final de pesquisa, dentre as quais duas já começam a ser aplicadas. Da sociedade, muitos ensinamentos de cooperação. O distanciamento social, paradoxalmente, reuniu muitos em torno da solidariedade. há que se manter esperança!
Como não lembrar dos profissionais da saúde que insistiram na vida. Das lideranças comunitárias que conseguiram organizar práticas solidárias; de cada costureira que voltou a velha bancada para produzir máscaras a vizinhança. Enfim, cada sujeito que topou com os desafios e reinventou a história. É preciso, compreender isso como re-existência, ou seja, capacidade de existir novamente! Em outras palavras, precisamos aprender a aprender, como esses seres humanos que souberam enxergar a oportunidade da mudança, reorientar os sentidos a outros rumos, reorganizar os desafios, e radicalizar na mudança.
A lição do ano é que o mundo parece ter reestabelecido a humanidade. Pelo sim, pelo não, ao menos conseguiu lembrar dela. Sobretudo, ao se observar a crise a qual foi imerso, e que lhe roubou os sentidos orientadores. O momento está a exigir de nós coragem e sabedoria para sobreviver em águas turvas e violentas. O que está em crise afinal nos interpela a uma nova oportunidade. A superação da crise é antes de tudo a manutenção da esperança, da purificação e da libertação de tudo que acrisola. Esse parece ser um estágio insuportável, cheio de incertezas, mas como bem lembrava o filosofo alemão Martin Heidegger “todas as coisas grandes acontecem no turbilhão da crise”.
Por isso, voltar a sonhar é necessário e revolucionário, ainda que possa parecer impossível. Mesmo com tantos motivos para desanimar, razões para perder o ânimo! É preciso revigorar o sentido da vida, reunir forças para não voltar ao velho normal pelo simples fato de que aquilo nunca fora normal.
Aí reside a esperança, como a justa e teimosa herança herdada daqueles que ao nos preceder, pavimentaram a estrada da mudança, radicalizaram os sonhos possíveis, e rejeitaram passar pela porta em que se lia “ao entrar deixe a esperança”.
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Ao entrar deixe a Esperança – cada ano tem sua inscrição - Instituto Humanitas Unisinos - IHU