17 Dezembro 2020
Um dos custos semióticos mais altos da pandemia possivelmente seja o uso de máscaras, nossa perda temporal do rosto, a fratura do eu, da comunicação facial com o outro, da identidade individual que de uma hora para outra se viu oculta, gerando distância e fissura do social.
Mais que o fechamento, a máscara foi a verdadeira distância, o isolamento. O artefato indispensável para evitar o contágio, mas ao mesmo tempo o imaginário de perigo e de rejeição. A percepção do outro mediada pela suspeita e a desconfiança. O sinal de ‘afaste-se’ e o colapso da sedução que precisou migrar para novas formas e canais de comunicação.
Com as máscaras, não falamos bem, não nos ouvem bem, a intenção do tom se altera em prol de sermos escutados. Também não se nota se sorrimos, se algo nos agrada ou nos incomoda. Obriga a aumentar o volume, a diluir a intenção de nossos gestos, a perder o tom original do que queremos dizer. Desaparece toda a carga de expressividade facial, assim como o sorriso, que é por essência a conexão, o feeling com os outros.
Hoje, quando é um elemento obrigatório e vital em nossa disciplina de sobrevivência, o impacto social deste pequeno retângulo de 18x10 centímetros nos deixa uma multiplicidade de efeitos semióticos, sociológicos e comunicativos de grande importância.
Passamos de nem sequer querer nos vermos, nos primeiros meses, a uma ampliação da comunicação visual como única ponte e forma de contato. E, depois, tentamos sobrepor nosso rosto sobre o muro infranqueável da máscara. Começamos a pintar nela narizes, bocas, a transformar sua simples função sanitária em estética e tornar este ocultamento do rosto moda. E assim, os olhos adquiriram maior ênfase, o mesmo aconteceu com a expressão corporal.
O impulso por ‘completar’ nosso rosto explodiu em mil designs e possibilidades. A necessidade humana de ‘estetizar’ o mundo e tornar cada elemento algo não somente útil, mas belo (instinto inerente do Homo sapiens), encontrou na tela ou no papel cirúrgico a nova bandeira de expressão. O rosto se tornou uma vitrine empresarial, panfleto de caretas, publicidade, tela de arte e até muro para grafitar e protestar.
Sobre as máscaras, símbolo do ano 2020 e do vírus global, são escritas reclamações, letreiros, imprimidos logotipos, todos os tipos de marcas e até é exaltada como objeto de luxo e de moda. Uma tentativa de tornar o mais amável possível aquilo que nos é apresentado como um ‘bloqueio’ para a interação social. A tragédia de inícios do século XXI foi transformada em tendência ‘fashionista’.
Conversei sobre estes e outros aspectos com o sociólogo francês Gilles Lipovetsky, um dos principais analistas do mundo contemporâneo, com quem há um ano abordamos um de seus temas frequentes de análise: a sociedade da sedução, essa pulsão intensa da hipermodernidade que a pandemia freou bruscamente.
A entrevista é de Sophía Rodríguez Pouget, publicada por El Tiempo, 09-12-2020. A tradução é do Cepat.
Como vê o efeito da pandemia na interação social, e o impacto das máscaras, de perder uma boa parte de nosso rosto, no que você chama de “sociedade da sedução”?
O que a pandemia gerou obviamente foi o que eu chamo de uma verdadeira máquina antissedução radical, pois o imperativo do sanitário e da proteção é o que prima. E a sedução não é isso. A sedução é o teatro do artifício que busca ressaltar os encantos de uma pessoa. É a roupa, a maquiagem, tudo o que fazemos para ‘nos melhorar’ e para atrair os outros.
Com a pandemia, tudo isso perdeu importância. Como as pessoas devem permanecer em sua casa, tudo o que implique se reunir (bares, clubes, festas) ficou proibido. Só restaram as telas para nos comunicar sem máscaras, e aí o território da sedução e suas estratégias estão suspensas.
Isso deu, sem dúvida, uma tonalidade muito triste a este momento, o clima de relação social está depressivo, as pessoas estão temerosas, encurraladas. A moda, as saídas, o encontro, tudo isso parou. O vírus se apresentou como algo desconhecido. E o desconhecido produz medo. E o medo substituiu o desejo de encontro.
No momento, as pessoas só compartilham com seus próximos. E a sedução, que costuma se dirigir mais para pessoas novas, foi adiada. Isso não significa que as pessoas não se arrumem para ficar em sua casa ou participar de uma videoconferência, mas obviamente há uma grande redução de todo esse ‘teatro pessoal’. Daí que a indústria cosmética registre quedas vertiginosas em objetos como os batons, por exemplo. Mas tudo passará.
A sedução migrou ou aumentou no campo virtual e das telas?
Mas só como jogo, porque neste momento a sedução é vista como algo perigoso. Os gestos, o sorriso, a maquiagem, tudo isso que é consubstancial à sedução ficou entre parênteses, exceto na virtualidade, onde não há covid-19, nem contágio, e onde sentimos como se nada acontecesse. Mas daí não podemos passar para o encontro, porque implica um risco, um problema.
Esse reflexo de medo ou receio diante do outro perdurará na pós-pandemia?
Muitos consideram que sim, eu penso que não. Obviamente, os tempos dos vírus já mudaram muitas coisas para sempre: as formas de trabalho, o cibercomércio, os mecanismos online, as novas formas de entretenimento, o aumento de plataformas estilo Netflix, Disney, etc. Além disso, continuará uma porcentagem importante da tele-educação, do teletrabalho, videoconferências, certas mudanças do esquema educacional. Mas a sedução interpessoal retornará como antes, sobretudo quando houver vacinas e for em boa medida o risco de contágio for superado, o que acontecerá relativamente rápido.
Você disse que a sedução está presente não apenas nas relações interpessoais, mas que é uma lógica mais ampla, que atravessa a integralidade da vida social, sendo quase a matriz do mundo atual. Como a pandemia afeta essa lógica?
A sedução não é apenas a maquiagem e a moda. Há muitas outras seduções, como todas as derivadas do consumismo, o entretenimento, o turismo. Tudo isso será retomado com muita força, precisamente porque as pessoas carecem disso, durante este período. O problema é que certamente o poder de compra será afetado e demorará para decolar, mas esse é um problema de orçamento, não de desejo. As tendências, os gostos, as aspirações não mudarão.
Acontecerão mudanças culturais de fundo, após uma situação mundial como esta?
Sabemos que este período durará aproximadamente dois anos, não mais, porque já há vacinas a caminho, então, não há nada na cultura que alcançará uma mudança de fundo. O homem, o indivíduo moderno, não está enterrado, nem morto, e o gosto por descobrir as novidades, as belezas e distrações da vida são consubstanciais a esse indivíduo que já não tem tradições fortes, nem uma religião severa que restrinja a sua existência. De modo que sempre persiste o anseio pela novidade, os prazeres da vida.
A pandemia não fez isso desaparecer. O desejo é um fenômeno antropológico. Não há ser humano sem desejos. Mas, ao longo da história, os desejos não são os mesmos, mudam, evoluem. Os anseios de um homem primitivo não são os mesmos do homem moderno. Além disso, mudam segundo as culturas. De modo que quando o vírus passar, tudo voltará à normalidade.
Relembremos o pânico que o HIV produziu nos anos 1980. Foi algo parecido. Criou um verdadeiro terror e medo do outro, a probabilidade de contrai-lo era alta. Mas, depois, falou-se em tratamentos e o pânico passou. E, no entanto, é uma doença que continua ativa, presente, mas deixou de ser aterrorizante e já nem pensamos nela. Isto para dizer que a pandemia não mudará nossas formas de sentir e de desejar. O que, sim, mudará serão algumas orientações dos Estados e certas políticas.
A crise econômica que se vive, e que durará um tempo, pode adiantar certas mudanças?
A queda do poder de compra não atinge o desejo. De fato, até nas comunidades e bairros mais vulneráveis da América Latina são desejadas marcas, moda, turismo. A pobreza não faz esses anseios desaparecerem. Mas, logicamente, uma coisa são as aspirações e outra a realidade econômica que leva a muitas frustrações. Esse é outro assunto. A falta de poder de compra afetará muitas pessoas durante algum tempo, mas aumentará o desejo e a nostalgia de desfrutar coisas belas.
Épocas difíceis são seguidas, às vezes, por auges impensáveis. Seria este o caso?
Claro, um exemplo clássico disso ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, em 1947, quando ocorreu todo o sucesso mundial de Christian Dior, que anunciou o surgimento de um novo look e lançou essa imagem muito glamorosa da mulher, toda essa feminilização representada pela parisiense chique. E fez isso em plenos tempos difíceis, nada menos que no período de reconstrução do pós-guerra. Mas havia tal desejo de beleza, de charme, de encanto, de sedução, que paradoxalmente foi o que obteve sucesso. A Guerra era a abstinência, a carência, inclusive a fome, etc., e quando passou, o que surgiu foi o apetite por viver e viver melhor, o que levou a todo esse auge.
Como vê o impacto das máscaras no individual e social?
Às vezes, sentimos que a máscara nos agride profundamente porque não estávamos acostumados com ela. Coisa que no Oriente não se vive igual, porque lá estão mais acostumados a usá-la. De fato, seu uso não diminui o ritmo frenético de consumo deles, que é muito alto. São consumidores compulsivos.
Em nosso caso, o impacto é maior. Na América Latina, ela é mais decorada. Na Europa, alguns a veem como um atropelo à liberdade ou como algo prejudicial para a educação e para as crianças. Há argumentações a esse respeito, ainda que muito minoritárias. Sobre isso, considero que o princípio de liberdade individual tem seus limites. Não se pode exigir sua liberdade afetando os outros. A liberdade própria termina onde começa a do outro. E em uma pandemia é obrigatório todos nós nos cuidarmos.
De modo que nem toda limitação da liberdade é indigna. Muitas são legítimas, como neste caso. Observo, além disso, que a maioria das pessoas aceita o seu uso. Essa consciência de sua necessidade e da proteção que significa é muito destacável. É claro, não é agradável, nem se respira bem com ela, mas se compreende como é essencial.
No momento, em quais aspectos sua análise está centrada?
Estou chocado com o fato de que os protestos na Europa estejam focados mais no problema de se fechar os armazéns e os estabelecimentos comerciais, pois se considera que, com a implementação de certas medidas de proteção, a vida deve poder continuar e não ser detida. Porque o contrário, sim, destrói e acaba com a vida econômica que é o sustento, algo que não pode se estender indefinidamente. Isso, sim, é visto como algo nada legítimo. As máscaras, ao contrário, embora a maioria não goste delas, são usadas e foi, sem dúvida, o objeto central na pandemia.
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“A pandemia não mudará nossas formas de sentir e de desejar”. Entrevista com Gilles Lipovetsky - Instituto Humanitas Unisinos - IHU