14 Dezembro 2020
“À margem do maior ou menor impacto da crise socioeconômica, aprofundada pela pandemia nos diferentes países do mundo, o conjunto da humanidade enfrenta as ameaças do aquecimento global, que nas palavras do secretário-geral da Organização das Nações Unidas, António Guterres, são ainda mais graves que a crise econômica e a pandemia”, escreve Alcira Argumedo, socióloga, política e professora universitária argentina, em artigo publicado por Télam, 10-12-2020. A tradução é do Cepat.
Como uma experiência inédita para a humanidade de nossos tempos, a pandemia fez detonar e agravou a crise das políticas econômicas e a globalização neoliberais, que se vinha anunciando tanto nos países centrais como periféricos do Ocidente, há tempos. A Inglaterra, com o Brexit, a França, com os coletes amarelos e as grandes greves, a Itália arrastando a longa recessão, a Alemanha, com os neonazistas, e os Estados Unidos se voltando ao protecionismo pela deterioração de sua balança comercial com a China.
Na América Latina, as crises já golpeavam Colômbia, Equador, Peru, Chile e Argentina. Em fins de 2019, Kristalina Georgieva, do FMI, havia alertado que se a desigualdade no mundo e as orientações financeiras não fossem revertidas, poderia explodir uma crise similar à de 1930: a atual crise é muito mais profunda e complexa.
No transcurso das últimas quatro décadas, a hegemonia neoliberal, contando com o instrumento de poder das tecnologias de ponta, desde 1980, e reafirmada com a queda do Muro de Berlim, em 1989, promoveu no Ocidente um crescimento exponencial da concentração e polarização da riqueza e um crescimento igualmente exponencial do desemprego, a precarização trabalhista, a pobreza e a indigência.
Os números do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento apontam que os 20% mais ricos da população mundial, cerca de 1,1 milhão de pessoas, concentram 96% da riqueza. Os 80% restantes – 6,5 bilhões de pessoas, dos quais 4,5 estão na pobreza e indigência – contam apenas com 4%. A dimensão desta desigualdade alimentou uma crise de superprodução por carência de demanda, ao passo que esses 20% são um mercado excessivamente restrito para o aumento da produtividade das tecnologias de ponta e a presença da China no mercado mundial.
As crises golpeiam especialmente o campo ocidental dado que, em contraste com o predomínio de uma orientação guiada pelos interesses de bancos, fundos de investimento e grandes corporações privadas, a China – sem desconhecer o caráter despótico de seu sistema de governo – definiu uma orientação política de sua economia e de sua inserção na cena mundial, com uma importante participação do Estado e planos a curto, médio e longo prazo, que a permitem equilibrar com maior eficiência as turbulências da crise mundial e a pandemia.
Não obstante, à margem do maior ou menor impacto da crise socioeconômica, aprofundada pela pandemia nos diferentes países do mundo, o conjunto da humanidade enfrenta as ameaças do aquecimento global, que nas palavras do secretário-geral da Organização das Nações Unidas, António Guterres, são ainda mais graves que a crise econômica e a pandemia.
O aquecimento global se manifesta em fenômenos meteorológicos extremos, entre outros, ondas de frio polar ou de calor agonizante, grandes secas ou chuvas torrenciais e tornados, derretimento das geleiras e polos, aumento do nível do mar. Suas causas principais são as emissões de dióxido de carbono dos combustíveis fósseis – petróleo, gás e carvão – e do desmatamento em grande escala, que elimina o papel das árvores na transformação dessas emissões em oxigênio e sua contribuição central para o ciclo da água e os regimes de chuvas.
Pouco antes de morrer em março de 2018, o astrofísico Stephen Hawking, alertou que, se antes de umas cinco ou seis décadas, não forem revertidos os fatores que alimentam o aquecimento global, a Terra pode chegar a um ponto de inflexão, entrando em um processo acelerado e irreversível de aquecimento que alcançaria 200ºC, o que significa o fim da vida no planeta.
No mesmo sentido, 11.000 cientistas de todo o mundo e organismos internacionais como o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática da Organização das Nações Unidas, reafirmaram a necessidade de diminuir as emissões de gases do efeito estufa em 45% até 2030, em relação a 2010, e em 100% até 2050.
Estes objetivos requerem uma reconversão energética de grandes dimensões nos transportes, fábricas, edifícios, moradias e outras áreas, a partir de energias renováveis: solar, eólica, hídrica, hidrogênio e similares. Reconversão energética que deve ser acompanhada por um drástico freio nos processos de desmatamento e pela promoção de políticas de reflorestamento de amplo alcance, como condição decisiva para não alcançar esse ponto de inflexão irreversível.
De acordo com um estudo publicado pela prestigiosa revista científica Nature, a Argentina tem o triste mérito de ser o segundo país no mundo que maior superfície de matas eliminou, entre 1982 e 2016, só superada pelo Brasil e seguida pelo Paraguai. Somente entre 1998 e 2018, por causa do avanço da fronteira agrícola com cultivos transgênicos, foram desmatados 6,5 milhões de hectares.
Este processo teve como resultante uma crescente concentração da terra e a expulsão de populações rurais, afetando também duramente as condições de vida das comunidades indígenas, que obtêm seus alimentos das matas. O desmatamento cresceu de maneira significativa entre 2016 e 2018, e não é por acaso que em 2020 se enfrente a pior seca em anos, quando três em cada cinco hectares se veem duramente afetados.
Em contraste e diferente dos países europeus, que são os mais avançados na reconversão energética, o território argentino apresenta ótimas condições para a produção de energias renováveis em todas as suas variantes: dispõe de sol, ventos, cursos de água e outros recursos, além de reservatórios de lítio, que é um insumo central para a produção de baterias.
A decisão de orientar o grosso dos investimentos e dos subsídios para a produção de hidrocarbonetos não convencionais, principalmente nos reservatórios de Vaca Muerta, constitui para nós [argentinos] um caminho equivocado. Não só por causa da necessidade urgente de substituir os combustíveis fósseis que alimentam o aquecimento global, como também porque a técnica de fracking é poluente e demonstrou que não é rentável.
Com esta técnica, os Estados Unidos alcançaram autossuficiência energética, que é um objetivo estratégico-militar diante das turbulências de seus provedores tradicionais: Venezuela e as nações do Oriente Médio. Mas, ao mesmo tempo, um estudo do Instituto de Economia Energética e Análise Financeira dos Estados Unidos demonstrou que nesse país as atividades dedicadas à produção de petróleo e gás com fratura hidráulica tiveram um fluxo financeiro negativo global, com uma perda líquida de quase 200 bilhões de dólares, entre 2010 e 2019. Além disso, o estudo estima que o excesso de oferta de petróleo e gás, com a saturação do mercado em todo o mundo, ameaça manter os preços baixos no futuro previsível.
Estes desafios obrigam a promover um debate amplo e rigoroso, duro e realista, acerca das orientações produtivas de nosso país [Argentina], com uma avaliação de custos e benefícios a curto e longo prazo, considerando que são necessárias transformações de caráter civilizatório diante dos novos cenários e as ameaças do aquecimento global.
Em 2017, o Parlamento Europeu proibiu a megamineração com cianeto e ácido sulfúrico em todo o território da Europa, por considerar que possui “consequências catastróficas e irreversíveis”. Os cultivos transgênicos significaram um aumento na utilização de glifosato de 860%, entre 1996 e 2019. Está comprovado que é cancerígeno e fez muitas vítimas, segundo dolorosos relatórios da Faculdade de Medicina da Universidade Nacional de Rosário.
Os megacriadouros de produção suína provocam epidemias na China que obrigaram a eliminar 250 milhões de porcos e na Holanda estão sendo desmantelados pelos impactos negativos que geram, quando é possível implementar essa produção em centenas de chácaras mistas, sem contaminação.
Diante da prevista reconversão energética em escala internacional, os grandes investimentos em hidrocarbonetos não convencionais com o objetivo de exportar gás natural liquefeito podem ser tão anacrônicos como ter realizado grandes investimentos para exportar velas de sebo quando a eletricidade chegava. A responsabilidade das decisões políticas atuais com as gerações mais jovens é inescapável.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Os desafios frente a uma crise ambiental e social. Artigo de Alcira Argumedo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU