20 Novembro 2020
O premiado teólogo tcheco Tomáš Halík diz que os fiéis têm um papel urgente a desempenhar no combate ao fundamentalismo e ao fanatismo.
"A 'pseudo-religião que começa com ‘F’' parasita as religiões, bloqueando seu potencial ético e desenvolvendo o potencial letal que jaz no 'lado sombrio da religião', preservado nos resquícios do abuso da religião pelos poderosos do passado", escreve Tomáš Halík, padre, professor de Sociologia na Universidade Charles, de Praga, presidente da Academia Cristã Tcheca e capelão da universidade, em artigo publicado por La Croix International, 18-11-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Halík, durante o regime comunista, militou na chamada “Igreja clandestina”, na qual foi ordenado padre, recebeu o Prêmio Templeton de 2014, é doutor honoris causa pelas universidades de Oxford e Erfurt e seus livros já foram traduzidos para mais de 20 idiomas, incluindo o português.
O que isto tem em comum?
- Terroristas promulgando slogans religiosos;
- Apoiadores cristãos de Donald Trump;
- Radicais pró-vida;
- Adversários católicos do Papa Francisco que lhe enviam “correções filiais”;
- Grupos guerrilheiros alegando “defender o homem heterossexual branco”;
- Os esforços de Jarosław Kaczyński para transformar a Polônia em um Estado católico autoritário.
Exploremos isso mais de perto.
Os terroristas que falam abertamente sobre a sua lealdade ao Islã e proclamam slogans religiosos representam o exemplo mais evidente, bem conhecido e perigoso de patologia religiosa.
Eles estão completamente alheios aos princípios éticos do Islã, tirando do seu contexto citações das escrituras sagradas e abusando delas para disseminar ódio e violência.
Os cristãos que apoiam Donald Trump ignoram inteiramente o fato de que ele é um político populista imoral, cuja vida pessoal, ações e comportamento contradizem os princípios morais do cristianismo.
Contentando-se com a sua retórica antiaborto, eles estão dispostos a segui-lo e apoiá-lo cegamente.
Nenhum político é um messias.
A tarefa profética da Igreja inclui fornecer críticas construtivas e a “dessacralização” de políticos que afirmam ser salvadores. A Igreja é chamada a nos lembrar constantemente de que eles são apenas seres humanos com suas forças e fraquezas.
Alguns radicais pró-vida ignoram que criminalizar o aborto não é a única forma, nem a mais apropriada, de proteger a vida nascitura.
Por exemplo, o endurecimento da lei atual sobre o aborto na Polônia provavelmente levará ao turismo de aborto de mulheres polonesas para países vizinhos, assim como a abortos domésticos perigosos.
A legislação existente na maioria dos países europeus não força ninguém a fazer um aborto.
A coragem dos pais que se dispõem a aceitar um feto com graves problemas de saúde e a cuidar permanentemente de um filho com graves deficiências representa um admirável ato de bravura moral.
No entanto, ninguém pode ser forçado à bravura, especialmente não pelos moralizadores que “amarram pesados fardos e os colocam no ombro dos outros, mas eles mesmos não estão dispostos a movê-los, nem sequer com um dedo” (cf. Mt 23,4).
Os defensores da vida nascitura devem se concentrar mais na assistência prática a mães solteiras e a famílias com crianças com deficiências graves.
Os adversários do Papa Francisco que lhe enviam “correções filiais” claramente não são terroristas nem fanáticos religiosos.
Frequentemente, eles estão entre os cristãos verdadeiramente “bons e justos” que têm preocupações genuínas sobre a identidade da fé católica interpretada como um sistema a-histórico imutável de declarações doutrinárias.
Esse sistema é perfeitamente coerente em si mesmo, mas desmorona como um castelo de cartas quando exposto à realidade da vida. Essas pessoas aderem ao tipo de religião legalista à qual Jesus se opôs durante toda a sua vida.
Os grupos guerrilheiros fascistas que buscam “defender o homem heterossexual branco”, inspirados na tradição da Ku Klux Klan, costumavam se concentrar em ataques contra negros, judeus e católicos.
Hoje, esses grupos fomentam o ódio especialmente contra gays e migrantes. Sua ideologia se baseia na xenofobia, o medo da diferença cultural. Eles gostam de se ver como os defensores do “Ocidente cristão”.
Até agora, a atividade deles permaneceu, em geral, no nível de agressividade verbal (principalmente nas redes sociais digitais, mas também em comícios de fanáticos).
No entanto, esses grupos guerrilheiros facilmente poderiam recorrer a atos de violência e a atividades terroristas à la extremismo islâmico, com quem eles compartilham vários traços psicológicos semelhantes.
A presença deles é bastante tragicômica nos países pós-comunistas, incluindo a República Tcheca, onde o “homem heterossexual branco” está ameaçado, acima de tudo, como observou um jornalista tcheco, pela obesidade.
A tentativa de Jarosław Kaczyński de transformar a Polônia em um Estado católico autoritário é um exemplo perigoso de uma aliança entre religião e política que contribui para a secularização radical da sociedade polonesa e leva o cristianismo ao descrédito aos olhos dos jovens e das pessoas instruídas.
Empregando a ficção de um “tsunami de homossexualismo que é pior do que o comunismo” para assombrar as pessoas, alguns bispos acabaram criando esse “demônio”, soprando a energia do medo deles sobre ele e liberando-o na sociedade.
Criar demônios em vez de fomentar o diálogo e o entendimento é sempre perigoso.
Os esforços para formar uma “aliança de bispos conservadores de países do Visegrado” – Polônia, Hungria, República Tcheca e Eslováquia –, convocada por Steve Bannon, ex-conselheiro de Donald Trump (provavelmente ainda cumprindo pena na prisão por fraude), desacreditariam a Igreja nessa região, substituindo o cristianismo por uma ideologia política de extrema direita.
Eles tentam se aproveitar da afinidade de certos católicos com regimes autoritários (como o Estado eslovaco durante a Segunda Guerra Mundial ou a Espanha franquista e muitos outros). Historicamente, a Igreja sempre pagou caro por tal afetação.
A Igreja polonesa agora tem que enfrentar uma onda de escândalos que estão sendo revelados e a reação à política de Kaczyński. Embora essa onda possa ser catártica, ela é e será agonizante, mesmo assim. No fundo, há a necessidade de “divorciar” o catolicismo do nacionalismo.
Essa aliança tem profundas raízes históricas e, sem dúvida, ajudou a manter a identidade nacional polonesa no passado.
Com uma mudança de paradigma civilizacional em curso, no entanto, é necessário que a vitalidade do cristianismo polonês hoje vá além dos “ícones de polonesidade” e redescubra o Evangelho e a fé libertada do nacionalismo e do clientelismo político.
Eu sugiro que todos esses fenômenos mencionados acima podem ser subsumidos sob a categoria a que me refiro como “pseudo-religião que começa com ‘F’” (com um “F” de fundamentalismo e fanatismo).
Apesar de todas as diferenças, esses grupos compartilham uma mentalidade semelhante, caracterizada pelo uso seletivo da retórica religiosa.
É uma retórica que contradiz o cerne ético dessas religiões, que tem aversão a uma abordagem histórica e hermenêutica da religião, que promove a intolerância (um sentimento de “posse de toda a verdade”), que funde a religião com interesses de poder de certos círculos políticos, e assim por diante.
Uma abordagem seletiva das fontes religiosas e a “exculturação da religião” (a perda de um contexto original) transformam esse fenômeno em uma “religião civil” secular e política. Embora o conteúdo seja secundário, a carga emocional representa o ponto final de conexão.
Devo enfatizar que a “pseudo-religião que começa com ‘F’” é uma construção teórica semelhante às quatro categorias de “tipos ideais” de Max Weber. Seu objetivo é ajudar a encontrar características comuns de fenômenos aparentemente incomensuráveis para mais bem compreendê-los.
Isso não significa que todas as características individuais podem ser encontradas em todos os fenômenos, ou que as características estão representadas na mesma intensidade. Eu ofereço essa sugestão como uma hipótese.
O fenômeno da “pseudo-religião que começa com ‘F’” deve ser exposto à pesquisa empírica psicológica, sociológica, teológica e histórico-cultural que levem seriamente em consideração as suas causas e efeitos.
A “pseudo-religião que começa com ‘F’” parasita as religiões, bloqueando seu potencial ético e desenvolvendo o potencial letal que jaz no “lado sombrio da religião”, preservado nos resquícios do abuso da religião pelos poderosos do passado.
Precisamos analisar quais tipos de religiosidade são particularmente propensos a tal abuso e onde procurar o potencial de “imunidade moral” dentro das tradições religiosas para combater esses tipos patológicos.
Por exemplo, um impacto até agora muito fraco dos métodos histórico-críticos em relação às escrituras sagradas na teologia islâmica torna o Islã mais facilmente utilizável pela “pseudo-religião que começa com ‘F’”. Um argumento semelhante pode ser defendido em relação ao fundamentalismo cristão.
Obviamente, para que o fundamentalismo se transforme em fanatismo, e para que o fanatismo se transforme em terrorismo, são necessárias diversas circunstâncias sociais.
Diante de uma aliança de fenômenos sob a égide da “pseudo-religião que começa com ‘F’”, é inevitável fortalecer uma aliança de pessoas de vários pontos de vista e crenças – aquelas que procuram oferecer uma alternativa positiva da religião como uma escola para superar o egoísmo, cultivar os instintos (especialmente o instinto agressivo), derrotar o medo e alimentar a solidariedade, a justiça e a convivência pacífica.
A encíclica Fratelli tutti do Papa Francisco traz importantes impulsos nesse sentido.
Os teólogos cristãos estão diante da tarefa de pensar sobre uma teologia e uma espiritualidade para essa “oikumene mais ampla” (ou, para usar as palavras da Fratelli tutti, uma “nova fraternidade”).
Nos países onde a “pseudo-religião que começa com ‘F’” já se enraizou nas estruturas eclesiais tradicionais e sobre os quais paira uma profunda crise de confiança na Igreja, é necessário voltar às raízes do Evangelho, iniciando verdadeiramente uma “nova evangelização”.
Em países fortemente secularizados como a República Tcheca, parece que a Igreja não tem nada a perder.
De fato, porém, é preciso se dissociar claramente das expressões da “pseudo-religião que começa com ‘F’” que afastam da Igreja o público que pensa criticamente e que, simultaneamente, atraem e fascinam as pessoas que anseiam por respostas simples a questões complicadas e por “certezas inabaláveis”.
É necessário destacar exemplos alternativos de grupos cristãos que buscam genuinamente uma interpretação inteligente e inteligível da fé cristã, fomentam a vida espiritual pessoal (por meio de uma abordagem contemplativa da realidade), buscam uma participação ativa dos cristãos na sociedade civil e em iniciativas culturais, educacionais e ecológicas, e se engajam no fortalecimento do ecumenismo e do diálogo inter-religioso e intercultural.
Os cristãos não deveriam estar ausentes entre aqueles que defendem a imunidade social contra o populismo, as fake news e as teorias da conspiração (infelizmente, muitas vezes são os adeptos da “pseudo-religião que começa com ‘F’” os defensores mais zelosos dessa patologia social).
Graças a Deus, existem comunidades ecumênicas abertas na República Tcheca e em outros lugares ao redor do mundo que podem se tornar uma fonte de esperança, mesmo que as instituições estabelecidas da Igreja – como o sistema de administração paroquial – entrem em colapso.
O que será decisivo é a abertura e a educação de quem tem responsabilidade oficial na Igreja e a iniciativa e a responsabilidade dos “leigos”.
Para buscar respostas adequadas aos “sinais dos tempos”, precisamos de uma discussão completamente livre e aberta nas nossas Igrejas. Um exemplo dessa discussão é o “Caminho Sinodal” na Igreja Católica da Alemanha.
Devemos nos dar conta de que o que está acontecendo no ambiente cristão afeta significativamente a vida da sociedade como um todo, pois os cristãos representam uma parte insubstituível dela, independentemente da representação percentual.
Hoje, estamos em uma encruzilhada.
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A pseudo-religião que começa com “F”: um exemplo de patologia religiosa. Artigo de Tomáš Halík - Instituto Humanitas Unisinos - IHU