18 Novembro 2020
Profundamente semelhante ao da Fratelli tutti, o pensamento do jesuíta romano sequestrado em 2013 oferece e deve muito à fraternidade: desde a proposta de um Caminho de Abraão à capacidade de indicar o que é o fundamentalismo.
O comentário é de Riccardo Cristiano, publicado por Vatican Insider, 16-11-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Vou ser prudente... Mas não quero viver uma vida que não seja um dom radical, até a morte, até a vida.” O que o Pe. Paolo Dall’Oglio tem a nos dizer e talvez a nos perguntar nas horas do seu 66º aniversário?
Só podemos imaginá-lo. Não temos notícias dele desde que ele foi sequestrado pelo ISIS em Raqqa, no dia 29 de julho de 2013.
Para fazê-lo, é oportuno partir do seu objetivo de vida, que ele expressou ao afirmar: “Devemos todos ser Matteo Ricci”, acrescentando logo depois: “Ou, pelo menos, os jesuítas chineses, na nossa atitude para com as culturas, sobretudo nas suas dimensões espirituais: no nosso caso, para com o Islã”.
Algumas das páginas mais importantes do seu livro “Innamorato dell’Islam, credente in Gesù” [Apaixonado pelo Islã, crente em Jesus] são dedicadas justamente à China e a Matteo Ricci. Dall’Oglio indica claramente, nesse seu texto publicado em 2011, os modelos da sua missão: são Charles de Foucauld e Louis Massignon, mas, para se fazer entender em termos mais gerais, ele remonta a 2001, quando um artigo do Pe. Giovanni Marchesi SJ na revista La Civiltà Cattolica relatou a chegada de Matteo Ricci a Pequim em 1601 e o grande congresso por ocasião do quarto centenário daquele evento, apresentado assim: “Os trabalhos do congresso romano começaram com o anúncio e a leitura de uma Mensagem especial que João Paulo II escreveu, por ocasião desse centenário, dirigindo-a, através dos congressistas, a todo o povo chinês e aos seus governantes. As palavras do Santo Padre tiveram uma agradável repercussão e suscitaram uma forte impressão, sobretudo pelo seu pedido de perdão à China e pela esperança explícita acerca da abertura de um espaço de diálogo com as autoridades da República Popular da China”.
A longa citação do Pe. Marchesi chega ao seu ápice aqui: “Em primeiro lugar, os neófitos chineses, abraçando o cristianismo, não deveriam de modo algum ter renunciado à lealdade ao seu país; em segundo lugar, a revelação cristã sobre o mistério da Deus não destruía absolutamente, mas, ao contrário, valorizava e completava aquilo que a antiga tradição chinesa havia pressentido e transmitido de bom e de belo, de justo e de santo”.
Dall’Oglio sabe que, com o Islã, o discurso é mais difícil por ser pós-cristão; por isso, para a sua missão com os muçulmanos, ele apresenta o valor dos modelos escolhidos assim: “Para Charles de Foucauld, o enigma da resistência muçulmana à evangelização leva a Igreja a uma mais forte radicalidade de imitação da humildade de Jesus, do seu espírito de acolhida e de serviço... Com Louis Massignon, levanta-se com clareza a questão propriamente teológica do valor e da função do Islã na história da salvação”.
Nessas mesmas páginas, ele fala de uma viagem a Mindanao, onde o bispo favorecia de todos os modos possíveis o diálogo com a população muçulmana. Ele visitou o convento carmelita que apresenta como “pulmão contemplativo da diocese” e onde as freiras, debaixo do hábito clássico, vestiam o tradicional tecido colorido das mulheres muçulmanas do lugar. Nos anos seguintes, anos de lutas e tensões, elas foram sequestradas duas vezes, e a intensificação da radicalização levou à sua dispersão: “Quantas vezes homens e mulheres de diálogo, muçulmanos e cristãos, deverão ser marginalizados na sua própria comunidade, perseguidos, talvez mortos, para que a violência seja excluída das nossas relações e para que se estabeleça o Reino de Deus?”.
Chama a atenção essa interrogação, ao ser relida sete anos depois do seu sequestro, mas sabemos que, na sua vida, Dall’Oglio se manteve fiel à sua convicção profunda: “A atitude que une a todos nós, que consiste em comparar para demonstrar a própria superioridade, não me interessa. O que me apaixona é procurar a obra de Deus nas pegadas lamacentas das estradas da história humana”.
Essa paixão também passa pelo relato dos sonhos, como quando ele imaginou um católico, um bom católico, praticante, observante, que, depois da morte, chega às portas do Paraíso. Mas São Pedro, perscrutando no seu computador, o detém: ele não encontra o nome do seu amigo muçulmano e lhe indica que, sem isso, não poderá entrar. Atordoado, o homem protesta, mas em vão. E é convidado, com tons reconfortantes, a se sentar no banco perto da entrada. Abalado, encontra lá um bom muçulmano na sua mesma condição: ele também está pasmo, passou anos rezando cinco vezes por dia, indo à mesquita, foi até Meca para a peregrinação, e agora lhe dizem que não pode entrar, porque o nome do seu amigo cristão está faltando na sua ficha. Os dois, depois de se terem se falado sobre as disfunções do mundo moderno, baixam a voz, confidenciam seus pequenos defeitos e, no fim, se levantam dizendo: “Vamos, no fim tudo vai se ajeitar...”.
Essa verdadeira amizade o levou pouco a pouco a expressar uma opinião que pode parecer surpreendente, senão levarmos em conta que ele fala do Islã em nome do amor de Deus: “Há alguns meses, 138 representantes muçulmanos enviaram ao papa [Bento XVI] e a outros líderes cristãos uma carta na qual convidavam a se chegar a um acordo justo, a uma palavra comum sobre o amor de Deus e o amor ao próximo. [...] A carta queria ser uma resposta irênica, a ‘melhor resposta’ à conferência de Regensburg, que, por assim dizer, havia tirado o diálogo inter-religioso da retórica das boas maneiras diplomáticas para inaugurar uma dinâmica de franqueza entre irmãos e um diálogo de responsabilidade comum com o mundo de hoje”.
Não é possível reler hoje sem nos determos naquela “franqueza entre irmãos”. Uma franqueza que leva ao relato da visita do presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso, cardeal Francis Arinze, a Damasco. Ele o acompanhou ao Grão-Mufti, e o cardeal logo pediu informações sobre quantos cristãos havia na Síria: “Aqui – respondeu-lhe o Grão-Mufti – são todos cristãos; é difícil ser muçulmano sem também ser cristão”.
Não é uma piada: o professor Muhammad Sammak, o único muçulmano que tomou a palavra em dois Sínodos da Igreja Católica, define o Islã como “a religião que crê em todas as religiões”. “Humildemente, firmemente, nos oporemos às cercas dos pertencimentos bloqueados”, reiterava Dall’Oglio com convicção, ao aderir à verdade das tradições, nas suas originalidades e interconexões, para chegar a um desejo: “É hora de uma profecia: não tanto de novos profetas, mas de todos nós, profetas!”.
Quando foi solicitado a esclarecer no Vaticano sobre algumas das suas frases relativas ao fracasso da Igreja, ele explicou que “o modelo que eu considero fracassado é aquele inspirado em uma uniformidade universalizada, edificada na difusão de uma forma histórica, principalmente ocidental, de um cristianismo monocultural que procura substituir as outras religiões e as outras culturas. Por outro lado, eu absolutamente não considero um fracasso o projeto humano-divino constituído por Jesus e a sua Igreja, e que sempre carregamos em vasilhas de barro”.
O seu mosteiro, Mar Musa, é um observatório privilegiado para reconhecer a mistura que une os fundamentalismos, revelando, a partir da própria verdade de fé, apenas falsas crenças e, portanto, uma falsa humanidade.
Mas eu encontro o ponto de adesão mais profundo e importante à fraternidade escondido nas dobras dos seus textos. Há uma interessante recorrência nos seus escritos relativa à não credibilidade das teorias sobre um iminente fim do mundo; para todos nós, ele costumava dizer, “com a importante exceção dos adeptos das seitas fundamentalistas, que, ao invés disso, só veem o fim!”.
Ele sabia muito bem como isso entrava na visão herética dos jihadistas, em guerra com a linearidade do tempo que querem tornar conflituoso, com atentados que provocam reações cada vez maiores, para aproximar o fim dos tempos. No comentário do Pe. Antonio Spadaro sobre a última encíclica do Papa Francisco, a Fratelli tutti, encontramos precisamente este conceito: “A fraternidade assim entendida inverte a lógica do apocalipse hoje dominante; uma lógica que luta contra o mundo porque crê que ele é o oposto de Deus, isto é, um ídolo, e portanto deve ser destruído o mais rápido possível para acelerar o fim dos tempos. Diante do abismo do apocalipse, não há mais irmãos: apenas apóstatas ou ‘mártires’ correndo ‘contra’ o tempo. Não somos militantes nem apóstatas, mas irmãos todos. A fraternidade não queima o tempo nem cega os olhos e as almas. Em vez disso, ocupa o tempo, pede tempo. O do litígio e o da reconciliação. A fraternidade ‘perde’ tempo. O apocalipse o queima. A fraternidade requer o tempo do tédio. O ódio é pura excitação. A fraternidade é aquilo que permite que os iguais sejam pessoas diferentes. O ódio elimina o diferente. A fraternidade salva o tempo da política, da mediação, do encontro, da construção da sociedade civil, do cuidado. O fundamentalismo o anula em um videogame”.
Consciente disso e de que a fraternidade é o verdadeiro antídoto, Dall’Oglio colaborava com um projeto voltado a promover um caminho nas pegadas do pai comum, Abraão: desde a Mesopotâmia das origens do “nosso” patriarca, ele devia levar à Turquia, a Haran, o lugar da vocação, depois à Síria, à Jordânia e chegar ao Hebron. Voltado para aqueles que pertencem às três grandes tradições abraâmicas, assim como aos pós-religiosos e a quem busca um caminho espiritual pós-agnóstico, ele o imaginou como “um caminho de iniciação à harmonia espiritual que possa alimentar a esperança das gerações vindouras e ajudar os jovens nas suas escolhas em relação às próprias consciências identitárias, na perspectiva da fraternidade e não da competição, da contraposição e do conflito”.
Uma ideia para se dedicar no pós-pandemia? Mas, ainda em 2013, ele recomendava, com as palavras que escreveu quase no fim do seu último livro, “Collera e luce” [Cólera e luz], que era preciso lembrar que “é possível renunciar a se vingar daquilo que foi feito contra o nosso corpo, mas é mais difícil não pedir contas daquilo que foi infligido aos nossos entes queridos”.
Na capa desse volume, há uma fotografia de destroços sobre os quais se vê aquilo que foi um buquê de flores. Relendo-o sete anos após o seu sequestro, parece que Dall’Oglio havia entendido que, para sair do ódio, era necessário fazer as contas com os 100 mil “desaparecidos” na Síria: as suas famílias não sabem há anos o que lhes aconteceu desde que foram engolidos na escuridão síria. Muitos estão em valas comuns, jogados como detritos; mas um mar de sírios continua à espera de notícias deles, para abraçá-los novamente ou para poder enterrá-los e, finalmente, levar-lhes aquele buquê de flores.
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Pe. Dall’Oglio, do caminho da fraternidade à importância de um buquê de flores - Instituto Humanitas Unisinos - IHU