21 Outubro 2020
A Covid-19, que já deixa mais de 600.000 mortos na América, monopolizou a atenção e os recursos do continente a tal ponto de colocar em risco outros temas sanitários fundamentais, com previsíveis “consequências catastróficas”, disse Pedro Porrino, coordenador de Saúde em Emergências para as Américas, da Cruz Vermelha Internacional.
Embora a organização humanitária considere primordial enfrentar o efeito direto da pandemia - América registra 19 milhões de casos, 50% do total global, e mais de 600.000 mortes (54%) -, a preocupação também está no impacto secundário: as doenças que estão deixando de ser atendidas, a queda nas taxas de vacinação e a interrupção de serviços essenciais de saúde.
“Se continuarmos abordando a Covid-19 de forma quase exclusiva, o longo impacto, as consequências tão negativas do impacto secundário podem ser catastróficas”, destacou Porrino, médico espanhol e especialista da Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha, com experiência em intervenções em crises humanitárias como a do ebola na África Ocidental, o conflito e refúgio no Oriente Médio e agora a pandemia na América.
Em entrevista, o especialista em medicina humanitária mencionou esse dano colateral da pandemia e as opções para uma região marcada pela desigualdade.
A entrevista é publicada por Vistazo, 20-10-2020. A tradução é do Cepat.
A América é agora a região do mundo mais afetada pela pandemia. Qual é o impacto secundário de uma crise com estas dimensões?
A crise sanitária está golpeando a América de forma extremamente intensa, se a comparamos com outras regiões em nível mundial. O impacto secundário é enorme e tem muitos aspectos, mas quero destacar os mais importantes como a interrupção de serviços essenciais, de diagnóstico e de tratamento.
Além disso, há um problema de acesso à saúde que está marcado pela limitação da mobilidade, pela desinformação e pelo medo dos indivíduos e comunidades em acessar as estruturas sanitárias (diante da possibilidade de se contagiar com o vírus).
Estamos vendo também que já ocorre um excesso de mortes por causa, por exemplo, da falta de atendimento a doenças não transmissíveis (patologias cardiovasculares, crônicas e por causa do câncer), durante a pandemia.
Quais áreas se viram mais afetadas?
Quando enfrentamos crises tão complexas e prolongadas, o que temos é um impacto global, que neste caso está resultando realmente catastrófico. Para oferecer alguns dados, em agosto, a Organização Mundial de Saúde (OMS) apresentou um relatório que aponta para uma interrupção de serviços essenciais de saúde e mais de 50% de uma centena de países consultados reportava uma descontinuidade em áreas tão importantes como os programas de vacinação. De fato, o UNICEF informou que neste momento há mais crianças em perigo de morrer por doenças que podem ser prevenidas com a vacinação.
Na América, nota-se, além disso, um grande impacto no controle de doenças não transmissíveis e de patologias como o câncer, em relação às quais sabemos que o diagnóstico e o início de tratamento precoce é o que marcam a maior ou menor expectativa de vida e de recuperação.
E outro impacto “desastroso” está nos serviços de saúde sexual e reprodutiva, que são fundamentais porque regiões como a América Central e algumas áreas da região andina apresentam algumas das porcentagens de gravidez adolescente mais altas do mundo.
Neste contexto, o que acontece com doenças infecciosas como a dengue, sobre a qual precisamente houve um grande surto e um alerta epidemiológico na América Latina, no ano passado?
Essa é uma preocupação muito grande e que realmente deve nos colocar intensamente em alerta. Na região, temos dengue, chikungunya e também chagas, e existe uma estratégia da OMS para reduzir ou erradicar estas doenças que se viu totalmente impactada pela Covid-19.
Nesse exato momento, há 500 milhões de pessoas na América que estão em um risco importante e grave de serem infectados por dengue. Estamos falando de uma doença que antes da pandemia não era bem atendida e, longe de ir para um controle, está experimentando um crescimento exponencial. Além disso, é verdade que agora há um certo atraso na contagem de casos e os recursos tiveram que ser colocados quase com exclusividade para a Covid-19.
Ao confluir o coronavírus com a desatenção a doenças não transmissíveis e infecciosas, em uma região marcada pela desigualdade, pode-se falar em uma tempestade perfeita?
Exatamente, uma tempestade perfeita. Agora, também se utiliza muito o termo sindemia, uma sinergia de epidemias.
Se vamos aos dados, mais de 50% dos casos acumulados de Covid-19, mais de 50% do total das mortes e mais de 50% dos casos ativos estão na América. E o continente tem, além disso, uma particularidade que agrava a situação: a tremenda desigualdade no acesso a serviços de saúde de qualidade.
Isso nos coloca em um ponto de partida nada favorável frente ao impacto secundário, que está totalmente condicionado pela desigualdade e pela quantidade de comunidades que já viviam em situações praticamente catastróficas.
Então, como a região pode enfrentar as duas coisas ao mesmo tempo: a urgência da pandemia e atender essas outras doenças?
A situação está nos levando a um impacto secundário em que a carga de doença, de incapacidade e de morte pode ser, a longo prazo, inclusive muito maior que a diretamente atribuível à Covid-19.
O que está claro é que após sete meses de pandemia, não podemos continuar respondendo como nas duas primeiras semanas. A pandemia evolui, o impacto secundário aumenta e temos que mostrar dinamismo e flexibilidade.
Falamos de meios para diagnósticos da Covid-19, de uma possível vacina e, claro, é importantíssimo, mas não podemos continuar sem atender a problemas como a dengue, chagas, malária, febre amarela e tuberculose.
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A pandemia pode causar um efeito secundário “catastrófico” na América Latina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU