08 Outubro 2020
Ainda que nem todos notassem, na apresentação oficial da nova encíclica do papa Francisco, “Fratelli Tutti”, sobre a fraternidade e a amizade social, que ocorreu na Sala do Sínodo do Vaticano, escutou-se falar em árabe. Junto aos dois altos prelados do Vaticano e dois professores leigos, um dos oradores foi um muçulmano: o juiz Mohamed Mahmoud Abdel Salam, secretário-geral do Alto Comitê para a Fraternidade Humana e conselheiro do Grande Imám de Al-Azhar, Ahmad AL-Tayyeb, figura que inspirou Bergoglio, ex-arcebispo de Buenos Aires, na hora de escrever sua terceira encíclica social.
O cardeal espanhol Miguel Ángel Ayuso Guixot, presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso, que também foi um dos apresentadores, agradeceu especialmente a presença do juiz Mahmoud Abdel Salam, a quem chamou de “irmão”. Em uma entrevista com La Nación, este purpurado de Sevilha, feito cardeal por Francisco no último consistório, há um ano, destacou que sua presença foi algo sem precedentes.
Por outro lado, perguntado sobre as críticas que já começaram a cair sobre o Papa, por parte dos seus detratores devido às suas fortes críticas ao capitalismo e ao mercado, assegurou que “o Papa, o que faz, é simplesmente viver e tratar de aplicar os princípios mais essenciais do Ensino Social da Igreja”.
A entrevista é de Elisabetta Piqué, publicada por La Nación, 06-10-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
No quinto capítulo de Fratelli Tutti, sobre a melhor política, à margem de criticar duramente o mercado e o liberalismo, o Papa fala da função social da propriedade privada. Como você o defenderia dos ataques que seguramente virão por parte dos setores mais conservadores que o chamam de “comunista”?
Eu me ocupo de questões inter-religiosas, mas vejo como – e isto sei diretamente do papa Francisco – às vezes o povo se presta a classificá-lo de modos diferentes e sei que possa haver resistências, oposições, críticas. Porém, eu vejo que o papa Francisco está propondo ao mundo, desde o início de seu pontificado, é trazer um ar fresco para a Igreja e oferecer ao mundo todos os princípios contidos no ensino social da Igreja. E não se sai de uma vez só de tudo isso. Isso é, eu convidaria os que se opõem ao papa Francisco, a que tomem em suas mãos qualquer compêndio da doutrina social da Igreja, e ali verão o tema da igualdade e de outros tantos âmbitos. Sente-se que há pessoas que se encontram um pouco incômoda e que se perguntam “mas por que faz tudo isto?”. Mas é uma missão da Igreja promover a doutrina social, buscando esta igualdade, esta irmandade e esta fraternidade que, neste capítulo em particular, o Papa deseja e dá seus retoques para fazer um chamado.
Talvez seja porque a forma como Francisco diz as coisas é mais direta?
Sim é de uma forma mais direta, porém ali é onde há que se trabalhar. A própria Laudato Si’, que se dizia e se diz que é a encíclica ecológica, ou “verde”, em sua substância, não é outra coisa que outra encíclica que busca promover a doutrina social da Igreja. Prestar-se a dizer ou acusar ao Santo Padre de ser alguém que está inventando coisas ou que se refugia em várias ideologias não é justo. O que o Papa faz é simplesmente viver e tratar de aplicar no mundo de hoje os princípios mais essenciais da doutrina social da Igreja, que quer que nós todos como irmãos e irmãs que somos, vivamos unidos a toda a família humana, promovendo o bem de todos, o bem comum e não para o bem de alguns, a amizade social.
Foi um fato bastante histórico escutar uma fala em árabe na apresentação da encíclica de um Pontífice, concordas?
Sim, evidentemente, ver em um ato oficial, no Vaticano, um muçulmano vir apresentar e fazer suas observações sobre uma encíclica do Papa é algo sem precedentes. E que nos mostra como, mais além de nosso pertencimento religioso, temos um caminho a percorrer e este caminho passa por nossa própria identidade, na qual temos que permanecer sempre bem ancorados, porque senão levar-nos-ia a um sincretismo, a um relativismo de tantas coisas...
Antes que saísse a Fratelli Tutti surgiu uma polêmica por causa do título, considerado não inclusivo e discriminatório por um grupo de mulheres católicas, que inclusive pediram ao Papa, em uma carta aberta, para que mudasse para Fratelli e Sorelle Tutti... E você, o que pensa?
Eu penso que é uma polêmica superficial, no sentido de que basta ler o primeiro parágrafo onde está citada uma frase de São Francisco de Assis, em que se dirige a todos os irmãos e esse “todos” deve ser considerado então não somente os freis, mas toda a humanidade. São Francisco amava toda a criação e amava o ser humano que Deus colocou no centro do mundo e isso é uma abertura universal. E basta depois ler a novidade que tem a universalidade desta encíclica, que me parece um pouco injustificada a revolta, sobre um tema do qual temos que ter muita atenção porque sempre, em qualquer lugar, em qualquer circunstância, em qualquer situação, precisamos pensar em viver em uma cultura inclusiva, de igualdades entre todos. Porém, creio que esta polêmica sobre o título antes de sua publicação foi algo desnecessário.
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Fratelli Tutti: “O que o papa Francisco faz é aplicar o ensino social da Igreja”, afirma o cardeal Ayuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU