17 Abril 2020
"Temos, então, em todos ciclos do Tempo Litúrgico uma ocasião especial de salvação, desse ato salvífico de Jesus que é continuamente atualizado pela celebração dos sacramentos, recebendo força e luz para vivermos nossa altíssima vocação na concretude do cotidiano. E o Tempo Pascal, em específico, nos presenteia com maravilhosas revelações sobre em que consiste essa salvação que nos foi conquistada por Jesus", escreve Elvis Rezende Messias, mestre em Educação, licenciado em Filosofia, bacharelando em Teologia, desenvolve pesquisa de doutoramento em Ciências da Religião, professor efetivo na UEMG (Unidade Campanha) e convidado no Instituto Filosófico São José (Diocese da Campanha), escritor e pesquisador.
O Tempo Pascal é uma ocasião agraciada para a vivência da fé a um cristão católico. Neste Tempo litúrgico, vivemos o coroamento de todo o Plano de Salvação que marcou a vida terrena de Jesus do início ao fim: tudo começou com o mistério de Sua Encarnação, quando assume de modo completamente radical a história e a carne da humanidade, e tudo encontra sua plenitude no mistério de Sua Ressurreição, quando as portas da santidade e da nossa comunhão com o Deus Uno e Trino nos foram definitivamente abertas.
Toda a vida de Jesus é um verdadeiro mistério e ministério de Salvação. Ele veio ao mundo especialmente para isso: para nos salvar, com todo amor – “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13, 1). Temos, então, em todos ciclos do Tempo Litúrgico uma ocasião especial de salvação, desse ato salvífico de Jesus que é continuamente atualizado pela celebração dos sacramentos, recebendo força e luz para vivermos nossa altíssima vocação na concretude do cotidiano. E o Tempo Pascal, em específico, nos presenteia com maravilhosas revelações sobre em que consiste essa salvação que nos foi conquistada por Jesus.
O Magistério da Igreja Católica nos anuncia uma grande verdade de fé em sua Doutrina Social, da qual não podemos nos esquecer. Veja que beleza de ensinamento:
A salvação, que o Senhor Jesus nos conquistou por um ‘alto preço’, se realiza na vida nova que espera os justos após a morte, mas abrange também este mundo nas realidades da economia e do trabalho, da sociedade e da política, da técnica e da comunicação, da comunidade internacional e das relações entre as culturas e os povos. Jesus veio trazer a salvação integral, que abrange o homem todo e todos os homens, abrindo-lhes os horizontes admiráveis da filiação divina. (Compêndio da Doutrina Social da Igreja = CDSI, 1).
O que está em jogo no ministério salvífico de Jesus não é salvar somente a alma das pessoas, mas salvar a pessoa inteira. E isso ensina a Igreja: a salvação que o Senhor nos conquistou é uma salvação integral. Cada cristão deve reconhecer na fé a sua dignidade existencial e é chamado a levar uma “vida digna do Evangelho de Cristo” (Fl 1, 27; cf. Catecismo da Igreja Católica = CIC, 1692). “Cristo manifesta plenamente o homem ao próprio homem e lhe descobre a sua altíssima vocação” (Gaudium et Spes = GS, 22, 2; CIC, 1701). Não podemos viver menos dignamente do que isso.
Toda a graça de salvação que Jesus alcançou para cada um de nós no madeiro da cruz é uma salvação completa. Deus não nos salva parcialmente. E, como tal, a salvação abrange também este mundo. A Igreja nos ajuda a entender que a dignidade: 1) é para todas pessoas 2) é para a pessoa no seu todo; 3) todas as dimensões da vida humana é digna. A salvação engloba cada pessoa em todas as suas necessidades: espirituais, psicológicas, físicas; a salvação envolve a vida em cada uma de suas realidades: sociedade, política, economia, trabalho, técnica, comunicação, comunidade internacional, cultura, ética etc. As curas que Jesus realiza são profundamente integrais e integralizadoras: integra as pessoas, acima de tudo, ao convívio com Deus, mas também as integra consigo mesmas e com a sociedade que as havia excluído.
Então, não dá para ficar só com uma parte do Evangelho da Salvação. Não convém fragmentar o todo da doutrina cristã. Como bem disse o papa Francisco na Evangelii Gaudium: “Já não se pode afirmar que a religião se deve limitar ao âmbito privado e servir apenas para preparar as almas para o Céu” (EG, 182).
O próprio Jesus, assim, é o fundamento de toda a ação social do cristão. É Ele mesmo a própria Palavra de Deus encarnada no meio de nós e que levou em Sua carne toda indigência e indignidade que pesou sobre a humanidade por causa do pecado. Mas, como bem ensinou Santo Irineu de Lion em sua Demonstração da Pregação Apostólica, tudo que Jesus assumiu, Ele também redimiu. A salvação nos toca em nossa materialidade e em nossa carne também. O artigo 11 da Profissão de Fé Católica crê, inclusive, na ressurreição da carne: também nossos corpos mortais readquirirão vida, e uma vida gloriosa (cf. CIC, 990). O artigo 12, por consequência, afirma a fé na vida eterna, em que “também o universo visível está destinado a ser transformado. [...] Passa certamente a figura deste mundo deformado pelo pecado, mas aprendemos que Deus prepara uma nova morada e nova terra. Nela reinará a justiça, e sua felicidade irá satisfazer e superar todos os desejos de paz que sobem aos corações dos homens” (CIC, 1047-1048). E complementa o ensinamento oficial da Igreja de forma extremamente clara: “Contudo, a expectativa de uma terra nova, longe de atenuar, deve impulsionar em vós a solicitude pelo aprimoramento desta terra” (GS, 39, 2; CIC, 1049). Na cruz e na ressurreição nossa humanidade toda, e não somente uma parte dela, é salva, a redenção nos tocou por completo, assim como o próprio Cristo ressuscitou por completo, em alma, espírito e corpo.
A Ressurreição de Jesus é o grito transbordante de vida numa cultura de morte. A Ressurreição é o mais puro significado da responsabilidade e do comprometimento com a promoção da vida. A Ressurreição é a mais consistente denúncia aos projetos que destroem a dignidade integral da pessoa humana. A Ressurreição é evento que escancara a hipocrisia de uma religiosidade transformada em poder e opressão, e do dinheiro transformado em “deus”. A Ressurreição é testemunho eloquente de que o clamor dos pobres e injustiçados jamais poderá ser silenciado. A Ressurreição sustenta a esperança daqueles que são continuamente crucificados na indigência, na miséria, na exploração político-econômica, no moralismo pseudo-religioso...
Até tentaram silenciar Jesus, mas não puderam negar o que Ele disse: na cruz, mesmo morto, continuou anunciando e denunciando; no túmulo, mesmo envolto em faixas, libertava cativos... Hoje, vivo, nos dá forças para lutar pela vida, para anunciá-la, para denunciar o que a degrada. O Seu Reino não é deste mundo (cf. Jo 18, 36), mas este mundo também é obra Sua, e está sendo usurpado por quem faz de um bem que é de Deus, e que nos foi dado como bem comum, um bem privado (cf. CDSI, 172-182). O Senhor criou, com todo o Amor que marca Sua própria essência divina, um mundo tão grande e bonito como esse para somente alguns poderem usufruir dele e o restante viver na miséria? Questionar isso não é fazer “politicagem”, mas sim tornar presente a justiça do Evangelho, é reconhecer aquilo que pertence a Deus e à Sua criação. Não esperamos que a glória se realize definitivamente na terra (cf. CDSI, 1), mas sabemos que o Céu começa aqui, e a injustiça não é projeto de Deus. A experiência cristã não se faz ao largo nem exclusivamente além da história. A salvação abrange todos os sentidos da criação. E é maravilhosa e exigente essa verdade de fé. A Ressurreição denuncia o patrimonialismo. Sim, a Ressurreição é um perigo! Ela é também uma Doutrina Social, e não somente Espiritual.
Enfim, a fé cristã se fundamenta em um acontecimento histórico: Jesus Cristo, encarnado, crucificado, morto e ressuscitado. Se negarmos a incidência histórica da fé, nós também devemos negar que Jesus viveu historicamente e mudou os rumos da história. Jesus foi morto, mas reina vivo. E, nós, com Ele. Revelou-nos o Céu, que, embora transcenda o mero agora da existência, começa aqui, com a coerência de nossa vida... Ele manifestou-nos nossa altíssima vocação, mostrou o quanto somos dignos aos olhos de Pai... Não podemos aceitar nada menos que isso! E não aceitaremos! Contemplamos a Vida! E agora queremos Vida! E seremos a Vida que já somos segundo o coração de Deus. Ressurreição não é ópio do povo. Ao contrário, ela é revolucionária, e, ao mesmo tempo, cheia de ternura... É sempre tempo de ver, sentir compaixão, aproximar-se e cuidar (cf. Lc 10, 33-34). O mistério pascal é mistério de salvação. E a salvação que nos foi conquistada é salvação integral.
Referências:
BÍBLIA SAGRADA. 1. ed. Tradução Oficial da CNBB. Brasília: Edições CNBB, 2018.
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Edição típica vaticana. São Paulo: Loyola, 2000.
FRANCISCO. Evangelii gaudium (24 nov. 2013). São Paulo: Loyola, 2013. (Documentos do Magistério)
IRINEU DE LION. Demonstração da pregação apostólica. Tradução de Ari Luís do Vale Ribeiro. São Paulo: Paulus, 2014.
JOÃO PAULO II. Sollicitudo rei socialis (30 dez. 1987). Petrópolis: Vozes, 1988. (Documentos Pontifícios)
PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. Tradução: CNBB. São Paulo: Paulinas, 2005.
VATICANO II. Gaudium et spes. In: Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus, 2001. (Clássicos de bolso)
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Páscoa e salvação integral: compreensões à luz da Doutrina Social da Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU