06 Outubro 2020
"Trump exibiu de forma contundente o papel do ultraje pessoal na avacalhação do debate público. A ofensa pessoal desqualificadora usada como argumento e a resposta no mesmo tom são instrumentos da brutalização das consciências", escreve Luiz Gonzaga Belluzzo, economista, em artigo publicado por Carta Capital, 03-10-2020.
Em 4 de abril de 2017, Mary Trump, sobrinha do tio Donald, tomou um trem da Amtrak com destino a Washington, D.C, para um jantar em família na Casa Branca. Dez dias antes, ela recebera um e-mail convidando para uma celebração de aniversário das tias Maryanne, de 80 anos, e Elizabeth, de 75. Seu irmão mais novo, Donald, ocupava o Salão Oval desde janeiro.
Quando adentrou seu quarto no Trump International Hotel, a sobrinha Mary encontrou o nome Trump estampado em todos os lugares, em tudo: xampu Trump, condicionador Trump, chinelos Trump, boné Trump, polimento de sapato Trump, kit de costura Trump e roupão TRUMP. “Abri a geladeira, peguei uma garrafa de vinho branco Trump, e derramei na minha garganta Trump, para que pudesse passar pela minha corrente sanguínea Trump e atingir o centro de prazer do meu cérebro Trump.”
Mary escreveu um livro devastador para narrar a trajetória do titio ególatra e tosco. Não por acaso, o livro recebeu o título Too Much and Never Enough: How My Family Created the World’s Most Dangerous Man.
Em uma entrevista concedida a Bob Woodward na Casa Branca, o Homem Mais Perigoso do Mundo confessou: “Eu boto a raiva para fora. Eu boto a raiva para fora. Sempre gostei. Eu não sei se isso é um ativo ou um passivo, mas seja o que for, eu faço”. Trump exprime o declínio dos valores e das ideias que inspiraram os Estados Unidos na construção da chamada ordem mundial do pós-Guerra. Terminado o conflito, as forças vitoriosas, democráticas e antifascistas trataram de criar instituições destinadas a impedir a repetição da desordem destrutiva que nascera da rivalidade entre as potências e da economia destravada.
Nos idos de 2018, Martin Wolf, editor do Financial Times, denunciou as manobras de Donald Trump para implodir a ordem mundial. “São características destacadas do comportamento de Trump suas invenções, sua autocomiseração e sua prática da intimidação: os outros, inclusive os aliados históricos, estão “zombando de nós” em relação ao clima ou “nos enganando” em relação ao comércio exterior. A União Europeia, argumenta ele, “foi implantada para tirar proveito dos EUA, certo? Não mais… Esse tempo acabou”.
O filósofo Fredric Jameson, no livro A Cultura do Dinheiro, já advertia no início do milênio: “Os quatro pilares ideológicos, jurídicos e morais do alto capitalismo – constituições, contratos, cidadania e sociedade civil – são, hoje, vadios maltrapilhos, mas sempre lavados, barbeados e vestidos com roupas novas para esconder sua verdadeira situação de penúria”.
O magnífico projeto iluminista-burguês da liberdade, igualdade e fraternidade, avaliado em seus próprios termos e objetivos, está fazendo água diante da alucinante e alucinada competição entre as sociedades e suas lideranças para mergulhar o planeta nos esgotos da barbárie.
Não podemos colher outro ensinamento do debate Trump-Biden escancarado segunda-feira nas telas planas das tevês e repercutido no terraplanismo das redes sociais.
A civilização ocidental, disse Gandhi, teria sido uma boa ideia. Imaginei, santa ingenuidade, que as batalhas do século XX, além do avanço dos direitos sociais e econômicos, tivessem finalmente estendido os direitos civis e políticos, conquistas das “democracias burguesas”, a todos os cidadãos. Mas talvez estejamos numa empreitada verdadeiramente subversiva em seu paradoxo: a construção da República dos Bárbaros. Uma novidade política engendrada nos porões da inventividade contemporânea, regime em que as garantias republicanas recuam diante dos esgares da máquina movida pelo narcisismo dos ressentidos.
Esses deserdados da civilidade simulam retidão moral para praticar as brutalidades dos homens de bem. Os direitos individuais e os valores da modernidade são tragados no redemoinho do moralismo particularista e exibicionista dos amorais. Trump exibiu de forma contundente o papel do ultraje pessoal na avacalhação do debate público. A ofensa pessoal desqualificadora usada como argumento e a resposta no mesmo tom são instrumentos da brutalização das consciências.
O expediente de satanizar o adversário revela indigência mental e despreparo para a convivência democrática. É, portanto, saudável exorcizar as tentações do maniqueísmo, o bem contra o mal. No debate da segunda-feira, Trump, ao colocar os supremacistas brancos em alerta contra os movimentos antirracistas, desterrou o conflito social para fora da ordem jurídica. Nesse gesto convocou uma guerra civil, o aniquilamento do outro.
Os projéteis disparados no debate ganharam impulso nos Facebooks, Twitters e Instagrams da vida. Os impropérios lançados das plataformas da arrogância não atingiram apenas os dois debatedores, mas maltrataram impiedosamente os princípios elementares da convivência civilizada. Os tecladistas alcançam a proeza de cometer cinco atentados contra os adversários numa frase de 12 palavras.
Os bárbaros do teclado, como Trump e assemelhados, manejam com desembaraço a técnica das oposições binárias, método dominante nas modernas ações e interações entre os participantes das redes. Nos comentários da internet, vai “de vento em popa” o que Herbert Marcuse chamou de “automatização psíquica” dos indivíduos. Os processos conscientes são substituídos por reações imediatas, simplificadoras e simplistas, quase sempre grosseiras, corpóreas.
Os indivíduos mutilados executam os processos descritos por Franz Neumann, em Behemoth, seu livro clássico sobre o nazismo: “Aquilo contra o que os indivíduos nada podem e que os nega é aquilo em que se convertem”. O que aparece sob a forma farsista de um conflito entre o bem e o mal, está objetivado em estruturas que enclausuram e deformam as subjetividades exaltadas. A indignação individualista, a raiva contra os opositores e os arroubos moralistas são expressões da impotência que, não raro, se metamorfoseia em desvario autoritário.
Donald Trump e seu discípulo Jair Messias são fiéis pastores de seus crentes. São fiéis a seus fiéis. Para um contingente parrudo de americanos e brasileiros, não importam os deslizes de seus Deuses e Messias. Importa, sim, que os Escolhidos insistam e persistam na afirmação das crenças, ideologias, visões do mundo, valores que refletem os ressentimentos dos súditos maltratados pelas frustrações e misérias da vida.
Diante das misérias da vida e de uma vida de misérias, as vítimas dos deuses mundanos buscam refúgio no Incompreensível. Nos tempos de cólera, elas fogem das dúvidas e angústias que as atormentam. Adaptadas, conformadas, até mesmo confortadas e felizes, preferem aceitar que sua existência é apenas uma permissão dos deuses e de seus procuradores na Terra.
Nos espaços fabricados pelas Novas Crenças não é possível manter conversações, porque neles a norma não é a argumentação, mas o exercício da animosidade sob todos os seus disfarces, a prática desbragada da agressividade a propósito de tudo e de todos, presentes ou ausentes, amigos ou inimigos.
As redes sociais, prometidas como o espaço do movimento livre das ideias e das opiniões, se transformaram num calabouço policialesco em que a crítica é substituída pela vigilância. A vigilância exige convicções esféricas, maciças, impenetráveis, perfeitas. A vigilância deve adquirir aquela solidez própria da turba enfurecida, disposta ao linchamento. Não se trata de compreender o outro, mas de vigiá-lo. “Estranho ideal policialesco, o de ser a má consciência de alguém”, diz o filósofo Gilles Deleuze, também suspeito de patrocinar o marxismo cultural.
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A república dos bárbaros desnudada no debate eleitoral dos EUA - Instituto Humanitas Unisinos - IHU