30 Setembro 2020
"Cabe se perguntar o que resta da tão proclamada "revolução da misericórdia" anunciada pelos partidários de Francisco como sinal distintivo e qualificador do pontificado argentino. Parece-me, pelo contrário, que também aqui, como noutras áreas (celibato eclesiástico, presença das mulheres, papel da cúria, etc.) os duzentos anos de atraso da Igreja em relação ao mundo moderno, lastimados a seu tempo pelo Cardeal Martini, se percebam todos, nem um a menos", escreve o sociólogo italiano Marco Marzano, professor da Universidade de Bérgamo, em artigo publicado por Il Fato Quotidiano, 29-09-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nos dias do caso Becciu que tanto fascina os vaticanistas de todas as paróquias, quase passou inobservada a publicação da Congregação para a Doutrina da Fé de um longo documento sobre a eutanásia e o fim da vida. O texto é importante e solene e mais uma vez lança luz sobre a estrutura cultural e política que distingue as intervenções oficiais das autoridades católicas. Dois elementos me impressionaram mais do que os outros na duríssima alegação antieutanásia elaborada pelo órgão chefiado pelo poderoso cardeal Luis Francisco Ladaria, homem de confiança de Francisco, que o nomeou prefeito da congregação para substituir o alemão Müller.
O primeiro elemento é metodológico e consiste na ausência total de uma análise empírica séria. Os redatores do documento tratam de questões enormes como os cuidados paliativos, a obstinação terapêutica, o suicídio assistido sem mostrar nenhum traço de conhecimento da realidade, sem nenhuma competência real. De fato, é altamente improvável que algum entre os milhares de profissionais de saúde que enfrentam o fim da vida alheia todos os dias tenha sido procurada para redigir o documento. Se isso tivesse acontecido, não só teriam sido contempladas no texto a complexidade, as ambiguidades, os paradoxos e as mil nuanças que caracterizam a dramática realidade do fim da vida em nosso tempo, mas também teriam sido evitadas afirmações puramente impressionistas e de senso comum, completamente desprovidas de fundamento sólido, como aquela segundo a qual somente a fé religiosa na existência da vida após a morte reduz o medo da morte. E se o oposto fosse verdadeiro? E se o medo do iminente juízo de Deus aumentasse tremendamente a angústia daquele que morre? Na ausência de dados empíricos confiáveis, é impossível estabelecer qual seja a verdade e, portanto, se aqueles que creem ou aqueles que não creem morrem mais pacificamente. E esse é apenas um exemplo entre muitos.
O fato é que na Samaratinus Bonus as citações são apenas aquelas dos pontífices e dos documentos do Vaticano e que o texto consiste exclusivamente de prescrições, obrigações e receitas, todas tiradas de um arcabouço doutrinário abstrato e pobre, inalterado ao longo do tempo e mecanicamente aplicado a uma específica realidade social. Por isso, por seu caráter integralmente dogmático e ideológico, convence apenas os que já estão convencidos, tornando-se totalmente inútil para quem tem que enfrentar a realidade de morrer, para o pessoal de saúde, para as famílias dos que estão em fim de vida, para os psicólogos e até mesmo para os próprios sacerdotes empenhados na atividade pastoral nos hospitais e hospices.
O segundo elemento que me impressionou é a negação na raiz de qualquer forma de reconhecimento da autonomia e liberdade dos sujeitos. O documento afirma que “suprimir um paciente que pede a eutanásia não significa de forma alguma reconhecer a sua autonomia e valorizá-la, mas, pelo contrário, significa desconsiderar o valor da sua liberdade”. Em outras palavras, segundo os autores do documento, quando um indivíduo pede para pôr um fim à sua própria vida, pretende exercer um direito que não possui. É um motivo semelhante ao que leva a negar a legitimidade de pedir um aborto ou para usar anticoncepcionais, para se divorciar ou para se casar com uma pessoa do mesmo sexo. A voz de quem pretende negar a lei de Deus, segundo a hierarquia católica, não só não deve ser ouvida porque surge de uma interpretação equivocada e distorcida da própria liberdade, mas deve ser proscrita, considerada ímpia e criminosa. E ímpias e criminosas devem ser julgadas aquelas leis que a permitem. Nessa forma de proceder, não revela o fato de que, nas nossas sociedades, existem muitos indivíduos que não acreditam na existência de Deus ou que acreditam que aquela anunciada pela Igreja Católica não seja a sua lei autêntica.
Aquele na base do documento, e aquele de toda a doutrina moral católica, se confirma, apesar de todas as promessas de renovação, um horizonte primorosamente teocrático, no qual a lei divina deve se transferir sic et simpliciter para a legislação do Estado, informando-a de si e impedindo qualquer pluralismo de valores, fechando a porta a qualquer diálogo com quem pensa de modo diferente. Cabe se perguntar o que resta da tão proclamada "revolução da misericórdia" anunciada pelos partidários de Francisco como sinal distintivo e qualificador do pontificado argentino. Parece-me, pelo contrário, que também aqui, como noutras áreas (celibato eclesiástico, presença das mulheres, papel da cúria, etc.) os duzentos anos de atraso da Igreja em relação ao mundo moderno, lastimados a seu tempo pelo Cardeal Martini, se percebam todos, nem um a menos.
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Fim da vida, no duro documento do Vaticano, noto duas coisas. A primeira: nenhum conhecimento da realidade. Artigo de Marco Marzano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU