29 Setembro 2020
"Se por uma parte, a metáfora de 'sociedade líquida' nos é contemporânea, tentando às vezes exprimir uma das características fundamentais da pós-modernidade, por outra, persiste a sensação de que os laços e relações que a compõem há tempo estão se derretendo, se liquefazendo. Tal sensação, desenvolvida enquanto pensamento racional, sistemático e filosófico, acompanha a própria construção daquele edifício dos 'tempos modernos'", escreve Alfredo J. Gonçalves, padre carlista, assessor das Pastorais Sociais e vice-presidente do SPM – São Paulo.
Certo, a metáfora que utiliza o adjetivo “líquido” para evidenciar a ruptura do contrato social sobre o qual se ergue o edifício dos “tempos modernos” foi cunhada pelo sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman. Este último, efetivamente, intitula uma série de obras de sua autoria com um determinado substantivo (modernidade, medo, tempos...), seguido daquele adjetivo. Dessa maneira, a concepção de “modernidade líquida”, por exemplo, tem a ver com a falta de referências firmes e sólidas que ajudem a orientar os seres humanos, e suas principais formas de organização, no mundo contemporâneo. Disso resulta que, na sociedade atual, tanto as pessoas quanto as instituições estariam navegando num mar tempestuoso, como barcos à deriva, sem bússola e sem rumo do porto e do farol.
Mas também é certo que já em torno da metade do século XX, Ernest Bloch, filósofo alemão de origem judaica, escrevia em sua obra monumental sobre o que se poderia chamar de “continente ou arquipélago” da esperança: “O que é infinitamente pequeno, bem como a grandeza variável estavam completamente abaixo do horizonte da sociedade grega; o capitalismo, entretanto, fluidificou tanto aquilo que até então era considerado sólido e finito, que a quietude passou a ser pensada como movimento infinitamente pequeno e passaram a ser concebidos conceitos de grandeza não estáticos” (Cfr. BLOCH, Ernest, Il principio speranza”, Garzanti Editore, Milano, 1994, pág. 153). E nada menos que um século antes de Bloch, ou seja, há mais de 170 anos, os também filósofos e alemães K. Marx e F. Engels deixavam registrado na obra O manifesto comunista que “todas as relações fixas e congeladas, com seu rastro de preconceitos e opiniões, ancestrais e veneráveis, são varridas. Novas relações ficam obsoletas antes de se solidificarem. Tudo o que é sólido se desmancha no ar. Tudo o que é sagrado é profanado. Todos precisam encarar com serenidade sua posição social e relações recíprocas”.
As duas citações, quando combinadas e confrontadas, descortinam uma involução cada vez mais acentuada na desconstrução deste edifício chamado modernidade. Se por uma parte, a metáfora de “sociedade líquida” nos é contemporânea, tentando às vezes exprimir uma das características fundamentais da pós-modernidade, por outra, persiste a sensação de que os laços e relações que a compõem há tempo estão se derretendo, se liquefazendo. Tal sensação, desenvolvida enquanto pensamento racional, sistemático e filosófico, acompanha a própria construção daquele edifício dos “tempos modernos” como legado de leis, contratos e conveniências – o qual, ao fim e ao cabo, desemboca na formação das democracias ocidentais.
Três exemplos desse acelerado processo de ruptura estrutural, seja do ponto de vista econômico e social seja do ponto de vista e político-cultural, são evidentes a olho nu. O primeiro vem da extrema precariedade das relações e dos direitos trabalhistas. Chegamos praticamente ao ponto em que os trabalhadores do mercado informal superam em número aqueles legalizados pelo mercado formal. E mesmo o emprego destes últimos sofre de abalos permanentes. Poder-se-ia afirmar que os empregos, tal como eram considerados pelas gerações passadas, foram abolidos e substituídos por serviços (ou bicos): temporários, vulneráveis e mal remunerados.
Em segundo lugar, decorrente dessa situação “líquida” quanto ao trabalho, sobram por todo lado pessoas desempregadas, subempregadas, desenraizadas e itinerantes. Trata-se de trabalhadores e trabalhadoras que poderíamos chamar de “fluídos”: sem pátria, sem rumo e quase sem endereço fixo. Não possuem qualquer tipo de referência sólida e tanto menos permanente. Não moram, acampam aqui e ali, movendo-se de acordo com os ventos e as migalhas do capital. Mais de 250 milhões de seres humanos, hoje, não residem no país em que nasceram. Isso sem contabilizar os migrantes internos e/ou temporários, os quais, segundo estimativas da ONU, beiram hoje em todo mundo a marca dos 45 milhões de pessoas. A imensa maioria deixa o lugar de nascimento devido à violência, às catástrofes climáticas, à guerra e à pobreza endêmica.
Por fim, cruzando os dois itens anteriores, chega-se a um estado de desigualdade econômica e social que cresce a velocidades assustadoras. Mesmo em tempos de crise e de pandemia (ou justamente por causa disso), o sistema de produção capitalista concentra, contemporaneamente, renda e riqueza de um lado, e exclusão social de outro. Estudos atualizados de Thomas Piketty, em nível internacional, e de Jessé de Souza, em nível nacional, põe a nu esse fosso abissal, e cada vez mais profundo, na distribuição geral dos frutos do trabalho coletivo. Flagrante claro desse desequilíbrio foi o número de pessoas que, no Brasil, procuram o auxílio emergencial de R$ 600,00 por ocasião da pandemia do novo coronavírus.
A esses três exemplos interligados – condições de trabalho precárias, aumento das migrações de massa e disparidade socioeconômica – não seria difícil acrescentar outros fatores que tornam o mundo e a sociedade “líquidos”. Derretem-se com a rapidez do gelo as relações, sejam elas de ordem interpessoal e familiar, comunitária ou social, política ou cultural; derrete-se a confiança entre as gerações, uma vez que uma tem pouco ou nada a dizer à próxima; derretem-se as boas tradições, condenadas juntamente com o “tradicionalismo”; derrete-se, enfim, a vontade e a capacidade de planejar o futuro, pois as carências e lacunas do presente, somadas à ansiedade como doença contemporânea, exigem respostas prontas e imediatas.
O fato é que quando as promessas e os compromissos se manifestam tão precários e efêmeros, também a governabilidade tende a escorregar em areia movediça e a derreter-se. Os governos Trump, nos Estados Unidos, e Bolsonaro, no Brasil, são testemunhas estridentes dessa fluidez mórbida e doentia. Dizer e desdizer, fazer e desfazer, prometer e descumprir – coisas que já eram comuns na prática política, tornaram-se o arroz-com-feijão diário. A exceção virou regra! Derreteram-se igualmente a ética e os critérios de um mandato sério e comprometido com o bem-estar do país. Rompeu-se a ponte entre a população como um todo e seu representante mais elevado, o qual passa a governar para a seita de seus seguidores fanáticos. E mais, tenta-se a todo custo fritar e derreter os canais e instrumentos, os órgãos e instituições, os mecanismos e ações de um regime democrático. Ataques e calúnias, impasses e entraves multiplicam-se a todo momento. Espinhos e pedras de tropeço atentam contra uma boa e sadia gestão.
E isso deixando de lado a temática ligada ao papel relevante e indispensável dos meios de comunicação social, da pesquisa e da ciência, como também da arte e dos artistas. Deixando de lado, ainda, a polêmica em torno das “fake news” e da Internet, em particular, e da revolução informática e cibernética, em geral, pois aí entraríamos em outro capítulo, o que requer uma reflexão bem mais ampla, específica e especializada.
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Governabilidade líquida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU