10 Janeiro 2018
Guerras, migrações, fim das utopias. Pode-se viver em um fim do mundo permanente? Um ano depois da morte de Zygmunt Bauman, eis a sua última lição.
O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 09-01-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O fim dos tempos, o fim do mundo, o fim do universo: um assunto certamente diferente do habitual para mim, que não sou um especialista no campo. Não pretendo, portanto, informá-los sobre o estado atual da arte, da astronomia e da cosmogonia, sobre aquilo que os cientistas pensam sobre o fim do mundo.
Direi apenas que as teorias científicas que se ouvem por aí me deixaram muito confuso, dada a dificuldade de conciliar visões muito diferentes sobre a mesa. [...]
Não que isso deva nos preocupar imediatamente, que fique claro, já que se calculou que o universo viverá pelo menos mais 20 bilhões de anos, e, pelo menos eu, que sou irrevogavelmente velho, não tenho nenhuma esperança de chegar até lá.
Mas voltemos à pergunta inicial, ao porquê estamos hoje todos tão inquietos, por que são feitas tantas premonições sombrias sobre o que nos espera, tanto que, às vezes, não conseguimos sequer focar bem a questão como fim do mundo, mas sim como algo completamente novo e desconhecido e, portanto, ameaçador.
Por que vivemos essa condição nesta fase da nossa história? Essa é a pergunta que devemos nos fazer. Eu sugeriria, entretanto, não ter medo. Mesmo quando nos divertimos, vamos a uma festa com os nossos amigos, em algum lugar, profundamente, sentimos ansiedade. Não nos sentimos seguros: seguros de conseguir controlar as nossas vidas, seguros de ter a capacidade, os meios, a habilidade, os recursos, seguros de poder viver em um mundo em que isso seja possível.
Em suma, não conseguimos dar às nossas vidas a forma que gostaríamos, estamos assustados porque – permito-me sugerir – vivemos uma condição de constante incerteza. E o que é a incerteza? É a sensação de não poder prever como será o mundo quando acordarmos na manhã seguinte; é a fragilidade e a instabilidade do mundo. O mundo sempre nos pega de surpresa [...].
Penso na Lisboa de 1755: [...] primeiro, houve um terremoto que devastou grande parte da cidade, depois um incêndio destruiu aquilo que havia se salvado.
O evento despertou grandes reações, e, entre os intelectuais, começou-se a discutir sobre que sentido tinha uma tragédia desse tipo e como Deus podia permitir tal massacre de inocentes. Voltaire se colocou à frente da campanha filosófica, sentenciando: “Vejam: a natureza é cega, atinge com a mesma imparcialidade e a mesma indiferença as pessoas boas e as pessoas más. Não faz escolhas, não pune. Distribui a sua fúria aleatoriamente. Se quiserem um mundo que esteja alinhado com a ética humana e a razão humana, vocês devem conquistar a natureza”. [...]
Hoje, a mais de 200 anos de distância, podemos ver como todos os esforços para dominar a natureza não tiveram qualquer efeito, e aqueles poucos que tiveram, na realidade, foram mal concebidos e deixaram traços da sua obra em milhões de quilômetros quadrados de terra estéril e desértica, milhões de vidas perdidas, vidas daqueles que, antes, cultivavam aquela terra.
Não funcionou. Por outro lado, outros perigos – qualquer evento envolve inconvenientes –, outros desconfortos foram se somando àquilo que acontecera. Eu acho que foi Freud que resumiu o significado do impulso à civilização: a pressão da civilização para corrigir e dar nova forma à sociedade. [...]
Todas as utopias, por mais diferentes que fossem entre si, tinham uma coisa em comum: estavam situadas em algum lugar no futuro. Ainda não existentes, ainda não conhecidas, ainda não exploradas, intuídas apenas por alguns navegadores solitários. Mas utopia e futuro tinham um significado muito parecido.
Eu acho que estamos perdendo a confiança no futuro. Não acreditamos mais que ele seja favorável, que poderá resolver os nossos problemas, e, se vocês derem uma olhada no nosso mundo contemporâneo, verão a disseminação de tradições que olham para o passado.
Quem sabe, talvez abandonamos algumas coisas prematuramente, erroneamente, estupidamente, talvez devêssemos voltar àqueles estilos de vida. Talvez alguns entre vocês pensem com nostalgia na vida sob Hitler, Stalin ou qualquer outro ditador do passado; mas vocês não fizeram experiência daquilo que foi, porque não é possível. O passado é tão imaginário quanto o futuro. Vocês não estiveram no futuro e não o conhecem, mas também não estiveram no passado. Só podem ler livros sobre o assunto, que, dificilmente, podem restituir as sensações de uma vida realmente vivida no passado.
Estas são, em linhas gerais, as causas do estado de incerteza atual. A fragilidade da posição social que conquistamos após uma longa vida de trabalho e que nos encontramos protegendo, a impossibilidade de prever o que acontecerá amanhã, a suspeita de que qualquer coisa que traga o futuro consigo não será melhor aquilo que existe hoje, mas talvez será pior, a sensação de impotência. Que, mesmo que conhecêssemos todos os segredos sobre o funcionamento das coisas, não teríamos as capacidades nem os instrumentos para impedir que coisas desagradáveis aconteçam. [...]
Cientistas importantes, como por exemplo Ilya Prigogine e Isabelle Stengers, receberam o Prêmio Nobel por terem descoberto que o universo – não só o nosso mundo e as coisas que nos cercam mais de perto, mas o universo inteiro – vive governado por contingências, acidentes e coincidências, em suma, pelo acaso. Não existem regras.
Na história do mundo, verificaram-se cinco grandes catástrofes que quase nos levaram à extinção, que se aproximaram muito de tornar impossível este nosso estar aqui e agora, trocando ideias.
A maior, durante o período permiano, varreu 95% de todas as criaturas vivas. Portanto, é absolutamente correto afirmar que estamos aqui por acaso. Os nossos progenitores encontravam-se naqueles pequenos 5% de criaturas que restaram no mundo. Confiar na coerência do universo, na sua estabilidade ou previsibilidade, portanto, não é possível.
Qualquer coisa que aconteça no universo acontece por acaso, de modo que eu acho que não é possível a completa eliminação da incerteza, mas acredito também que, dentro dos limites impostos a nós pelo universo, ainda há muito a fazer. Por exemplo, evitar o colapso do sistema de crédito ou a fuga súbita de migrantes de uma das guerras mais sujas e desagradáveis jamais ocorrida debaixo dos nossos olhos. Guerras previsíveis, guerras que podemos fazer com que não eclodam.
E eu me permito sugerir que essas coisas – as pequenas coisas que podemos fazer dentro dos limites das nossas capacidades – são tantas, a ponto de podermos nos empenhar nelas durante toda a nossa existência.
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Não tenham medo da incerteza. Artigo de Zygmunt Bauman - Instituto Humanitas Unisinos - IHU