06 Setembro 2017
Intitula-se Elogio della letteratura [Elogio à literatura] o livro que reúne as conversas entre Riccardo Mazzeo e Zygmunt Bauman (Ed. Einaudi, 156 páginas), já nas livrarias [italianas], e do qual publicamos um trecho abaixo.
No livro, Mazzeo e Bauman examinam a controversa questão da relação entre a literatura (e as artes em geral) e a sociologia (ou aquele ramo das ciências humanas que pretendem ter um status científico).
Enquanto muitos veem literatura e sociologia como vocações radicalmente diferentes, Bauman e Mazzeo defendem que elas estão ligadas por um objetivo comum e compartilham o mesmo âmbito de pesquisa.
O trecho foi publicado por Avvenire, 05-09-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Deus, Pai, Pátria: nomes diferentes para uma totalidade que supera a soma das suas (únicas!) partes: o Leviatã de Hobbes, a sociedade de Durkheim, o Soberano de Schmitt. Este último revelou-se o mais lúcido e perspicaz quando decidiu intitular como “Teologia política” a sua obra magna e definir a figura do “Soberano” não tanto em virtude da sua capacidade específica de legislar, mas sim de estar acima das leis, uma ausência de responsabilidade que faz com que ambos os atos (o fato de criá-las e de infringi-las) sejam exclusivamente de sua decisão; em última análise, o soberano é aquele que não é obrigado a dar qualquer explicação ou justificação para aqueles que estão sujeitos ao seu legislar.
É essa liberdade de decisão absoluta, sem limites e indiscutível, que torna todos nós, que estamos sujeitos à sua vontade, dependentes de escolhas exclusivamente suas, escolhas que, por definição, são imprevisíveis e estão absolutamente fora do nosso controle.
Como Jó pôde provar na própria pele: “Eu sei muito bem que é assim. Como pode um homem ter razão diante de Deus? Se alguém quisesse disputar com Deus, este não lhe responderia uma só vez entre mil”.
Paradoxalmente, porém, o “temor e tremor”, como diria Kierkegaard, gerado pelo confronto com um Absoluto tão prepotente e invencível, tão insondável e inconcebível, também poderia se revelar um estratagema cultural sagaz, capaz de tornar suportável ou até mesmo vivível a existência, apesar de um destino teimosamente impenetrável. Em vez de exacerbar, pode mitigar o incurável terror do desconhecido.
Deus, o Pai, o Rei consegue ver e sentir mais de longe em relação a mim; não só sabe o que o futuro tem reservado, mas esse futuro é argila nas suas mãos, pode moldá-lo como quiser. Ele é onisciente e onipotente, e, se ele se abstém de fazer o que eu gostaria muito de ver se tornar realidade, certamente é porque sabe algo que eu, com os meus sentidos limitados e o meu intelecto limitado, não posso saber nem saberia compreender se estivesse ciente.
Tendo a ver em 1755 o ano em que se começou a redigir a notificação de despejo de Deus do centro do universo. Em 1755, Lisboa foi atingida por um triplo desastre: em rápida sucessão, verificaram-se um terremoto, uma série de incêndios e um tsunami. Os golpes abateram-se sobre ele por acaso: como Voltaire teve a prontidão de observar, “l’innocent, ainsi que le coupable, / subit également ce mal inévitable”.
O veredicto de Voltaire era de uma clareza cristalina: a permanência de Deus no centro do universo não tinha passado pelo teste fixado pelos homens em matéria de razão e de moral. Subentendida àquele veredicto, estava a conclusão de que o universo teria tido muito mais possibilidades de conquistar uma ordem mais “civilizada” e uma justiça mais justa se tivesse passado por uma nova administração, que devia ser confiada aos seres humanos.
Nos dois séculos seguintes, demo-nos conta, e de modo bastante brutal, que os administradores humanos não obtiveram resultados muito diferentes em relação aos de Deus quando se tratou de administrar de modo desastroso tanto a razão quanto o senso moral, e descobrimos não só que o Grande Desconhecido não está tão pronto para se pôr de lado, mas também quão tenazes são os vínculos que impedem que os humanos se aproximem da onisciência, muito menos da onipotência.
O Estado e o Mercado, as duas agências para as quais a razão e a moral (depois de terem se consultado reciprocamente, mas sem chegar a um pleno acordo) tinham apontado para administrar de modo eficaz a parte do universo povoada pelos homens, ou pelo menos para colocá-la em condições de se autogerir como se deve, fracassaram e fracassam cada dia mais ao longo de toda uma série de provas práticas, decepcionando as expectativas que haviam sido postas neles. E, neste momento, não vemos candidatos papáveis para assumir o seu papel, por mais meticulosas e desesperadas que sejam as buscas e por mais criativos e promissores que possam parecer os esboços sobre a mesa.
Na nossa realidade fractal, repropõe-se, embora em escala diferente, um dilema do mesmo tipo. A crise de uma autoridade marcada pela imagem de Deus Pai onisciente e onipotente é fortemente sentida desde a base até o topo, embora cada nível tenha os seus próprios motivos para vivê-la assim, e apesar dos fatores desencadeantes desse senso de crise serem diferentes.
O pai em carne e osso, não o metafórico, pertence ao fractal menor na sucessão/hierarquia de fractais. Aquele pai feito de carne funciona mais do que qualquer outra coisa como anel de conjunção – ou, mais corretamente, como interface de transferência/intercâmbio – entre aquelas duas modalidades de agregação humana coexistentes, entrelaçadas e interagentes, que Victor Turner distinguia em societas e communitas.
As provas e as tribulações que afligem hoje aquela particular “figura paterna” refletem em forma condensada os fenômenos que afetam cada uma das suas extensões e idealizações, independentemente do degrau ocupado na estrutura fractal.
Independentemente do fato de que ambos os progenitores vivam ou não sob o mesmo teto, os vínculos entre progenitores e filhos estão se tornando cada vez mais frouxos e, ao mesmo tempo, é-lhes arrancada a identificação quase total com a estrutura da autoridade. Acredito que a “evaporação do pai” da vida familiar de que falam Lacan e Recalcati ou, pelo menos, daquele “centro em torno do qual gravita a vida familiar” é, em grande medida, embora certamente não de modo exclusivo, uma situação autoinfligida, uma fossa escavada por conta própria.
Não há dúvida de que a volatilidade do mercado de trabalho e a intrínseca fragilidade, friabilidade e não finalidade quase crônica das posições sociais revelam cotidianamente o espetacular desaparecimento da onipotência e, com ainda mais razão, da onipotência da lista das qualidades do Pai: estas novas realidades de vida enfraquecem aquelas condições, criadas e preservadas no plano social, sobre as quais, antigamente, tendia a se fundamentar a possibilidade de recorrer ao chefe de família como o protótipo para qualquer futuro garantidor da ordem e da justiça do mundo.
Porém, a “evaporação” do Pai e, assim, as suas consequências mais decisivas em termos de Weltanschauung, como o esvaziamento repentino do “centro gravitacional”, foram favorecidas e promovidas pela renúncia de uma considerável fatia de responsabilidade genitorial, um ato de rendimento que pode ser coagido ou voluntário, resignado ou acolhido com entusiasmo.
Os escrúpulos morais que poderiam insurgir depois dessa renúncia tendem a ser enfrentados através dos serviços pagos oferecidos pelos mercados de consumo; e ainda mais através do recurso aos bens que estes oferecem com a função de tranquilizantes morais. O que, por sua vez, amplia ainda mais o caminho para a comercialização dos aspectos mais íntimos da agregação e da interação humanas.
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O que aconteceu com o pai? Artigo de Zygmunt Bauman - Instituto Humanitas Unisinos - IHU