É possível o fim da espécie humana?

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29 Setembro 2020

"Não sabemos para onde estamos indo. Contudo, uma coisa é certa. Se a humanidade quer ter um futuro aceitável, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. E o preço do fracasso ou seja, a alternativa para a mudança da sociedade é a escuridão", escreve Leonardo Boff, ecoteólogo, filósofo e autor de "Covid-19: o contra-ataque da Mãe Terra à humanidade", que será publicado em breve pela Editora Vozes.

 

Eis o artigo.

 

A irrupção do Covid-19 afetando, pela primeira vez, todo o planeta e causando verdadeira dizimação humana, podendo chegar a dois milhões de pessoas vitimadas, antes de se descobrir e aplicar uma vacina eficaz, coloca ineludivelmente a questão: pode a espécie homo, a espécie humana desaparecer?

 

Um dos maiores especialistas em vírus que alertou os chefes de Estado, sem efeito, de um provável ataque de um vírus da linha do SARS, o coronavírus 19, David Quammen, advertiu recentemente num vídeo acerca da possibilidade, caso não mudarmos nossa relação destrutiva para com a natureza, da irrupção de um outro vírus ainda mais letal, podendo destruir parte da biosfera e levar grande parte da humanidade, senão toda, a um fim dramático.

 

O Papa Francisco em sua alocução na ONU no dia 25 de setembro do corrente ano de 2020, advertiu por duas vezes da eventualidade do desaparecimento da vida humana como consequência da irresponsabilidade em nosso trato com a Mãe Terra e com a natureza superexploradas. Na sua encíclica Laudado Sì: sobre o cuidado da Casa Comum (2015) constata: ”As situações ameaçadoras provocam os gemidos da irmã Terra que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo; nunca maltratamos e ferimos a nossa Casa Comum, como nos últimos dois séculos” (n. 53).

 

 

Isso não significa o fim do sistema-vida, mas o fim da vida humana. Curiosamente, o Covid-19 afetou somente os humanos de todos os continentes e não os demais animais domésticos como os gatos e os cães.

 

Como interpretar esta eventual catástrofe à luz de uma reflexão radical, quer dizer, filosófica e teológica?

 

Sabemos que normalmente a cada ano cerca de 300 espécies de organismos vivos chegam ao seu clímax, depois de milhões e milhões de anos de existência e retornam à Fonte Originária de Todo Ser (Vácuo Quântico), aquele oceano insondável de energia, anterior ao big bang e que continua subjacente a todo o universo. Conhecem-se muitas extinções em massa durante os mais de três bilhões de anos da história da vida (Ward 1997). Atualmente cerca de um milhão de espécies de seres vivos estão sob ameaça de desaparecimento devido à excessiva agressividade humana.

 

Dos seres humanos sabemos que das várias expressões, somente o homo sapiens sapiens se consolidou na história há cerca de 100 mil anos e permaneceu até o presente sobre a Terra. Os demais representantes, especialmente o homem de Neandertal, desapareceram definitivamente da história.

 

Da mesma forma vale para as culturas ancestrais do passado. No Brasil, por exemplo, a cultura do sambaqui e os próprios sambaquieiros que viveram há mais de 8 mil anos nas costas oceânicas brasileiras foram literalmente exterminados, por antropófagos, diferentes dos atuais indígenas. Deles nada restou a não ser os grandes monturos de conchas, cascos de tartarugas e restos de crustáceos (Miranda, 2007,52-53). Muitas delas sumiram definitivamente, deixando parcos sinais de sua existência como a cultura da ilha de Páscoa ou as culturas matriarcais que dominaram em várias partes do mundo, há cerca de 20 mil anos, especialmente na bacia do Mediterrâneo. Deixaram as figuras das divindades maternas ainda hoje encontradas em sítios arqueológicos.

 

Entre as tantas espécies que desaparecem anualmente, não poderá estar a espécie homo sapiens/demens? Desta vez, tudo indica que seu desaparecimento não se deve a um processo natural da evolução, mas a causas derivadas de sua prática irresponsável, destituída de cuidado e de sabedoria face ao conjunto do sistema da vida e do sistema-Gaia. Seria consequência da nova era geológica do antropoceno e mesmo no necroceno.

 

O fato é que o Covid-19 colocou em xeque, diria, de joelhos, o modo de produção capitalista e sua expressão política, o neoliberalismo. Seriam eles suicidários?

 

 

Esta pergunta não é de mau agouro mas um chamamento dirigido a todos os que alimentam solidariedade geracional e amor à Casa Comum. Há um obstáculo cultural grave: estamos habituados a resultados imediatos, quando aqui se trata de resultados futuros, fruto de ações postas agora. Como afirma a Carta da Terra, um dos mais importantes documentos ecológicos assumidos pela UNESCO em 2003: “as bases da segurança global estão ameaçadas; estas tendências são perigosas mas não inevitáveis”.

 

Estes perigos somente serão evitados caso mudemos o modo de produção e o padrão de consumo. Esta reviravolta civilizatória exige a vontade política de todos os países do mundo e a colaboração sem exceção de toda rede de empresas transnacionais e nacionais de produção, pequenas, médias e grandes. Se empresas mundiais se negarem a agir nesta mesma direção, poderão anular os esforços de todas as demais. Por isso, a vontade política deve ser coletiva e impositiva com prioridades bem definidas e com linhas gerais bem claras, assumidas por todos, pequenos e grandes. É uma política de salvação global.

 

O grande risco reside na lógica do sistema do capital globalmente articulado. Seu objetivo é lucrar o mais que pode, no tempo mais curto possível, com a expansão cada vez maior de seu poder, flexibilizando legislações que limitam sua dinâmica. Ele se orienta pela competição e não pela cooperação, pela busca do lucro e não pela defesa e promoção da vida.

 

Diante das mudanças paradigmáticas atuais, se vê confrontado com esse dilema: ou se autonega, mostrando-se solidário com o futuro da humanidade e muda sua lógica e assim se afunda como empresa capitalista, ou se autoafirma em seu seu objetivo, desconsiderando toda compaixão e solidariedade, fazendo aumentar os lucros, mesmo passando por cima de cemitérios de cadáveres e da Terra devastada. Não é impossível que, obedecendo à sua natureza de lobo voraz, o capitalismo seja autossuicidário. Prefere morrer e fazer morrer do que perder seus lucros. Mas quem sabe, quando a água chegar ao nariz e o risco de morte coletiva atinja a todos, inclusive a eles, os poderosos, não seria impossível que o próprio capitalismo se renda à vida. O instinto dominante é viver e não morrer. Este instinto possivelmente acabará prevalecendo. Mas devemos estar atentos à força da lógica interna do sistema, montado sobre uma mecânica que produz morte de vidas humanas e vidas da natureza.

 

 

Nomes notáveis das ciências não excluem a eventualidade do fim de nossa espécie. Stephen Hawking em seu livro O universo numa casca de noz (2001,159) reconhece que em 2600 a população mundial ficará ombro a ombro e o consumo de eletricidade deixará a Terra incandescente. Ela poderá se destruir a si mesma.

 

O prêmio Nobel Christian de Duve, em seu conhecido Poeira Vital (1997, 355) atesta que a evolução biológica marcha em ritmo acelerado para uma grande instabilidade; de certa forma nosso tempo lembra uma daquelas importantes rupturas na evolução, assinaladas por extinções maciças. Antigamente eram os meteoros rasantes que ameaçavam a Terra; hoje o meteoro rasante se chama ser humano.

 

Théodore Monod, talvez o último grande naturalista moderno, deixou como testamento um texto de reflexão com este título: E se a aventura humana vier a falhar (2000, 246, 248)? Assevera: somos capazes de uma conduta insensata e demente; pode-se a partir de agora temer tudo, tudo mesmo, inclusive a aniquilação da raça humana (p. 246). E acrescenta: seria o justo preço de nossas loucuras e de nossas crueldades.

 

Se tomarmos a sério o drama mundial, sanitário, social e o alarme ecológico crescente, esse cenário de horror não é impensável.

 

Edward Wilson atesta em seu instigante livro O futuro da vida (2002, 121): O homem até hoje tem desempenhado o papel de assassino planetário…a ética da conservação, na forma de tabu, totemismo ou ciência, quase sempre chegou tarde demais; talvez ainda haja tempo para agir.

 

Vale citar ainda dois nomes da ciência que possuem grande respeitabilidade: James Lovelock, que elaborou a teoria da Terra como Super-organismo vivo, Gaia, com um título forte A vingança de Gaia (2006), e o astrofísico inglês Martin Rees (Hora final, 2005), que preveem o fim da espécie antes do fim do século XXI. Lovelock é contundente: até o fim do século 80% da população humana desaparecerá. Os 20% restantes vão viver no Ártico e em alguns poucos oásis em outros continentes, onde as temperaturas forem mais baixas e houver um pouco de chuva… quase todo o território brasileiro será demasiadamente quente e seco para ser habitado ”(Veja, Páginas Amarelas de 25 de outubro de 2006).

 

Um fato que tem provocado muitos cientistas, especialmente biólogos e astrofísicos, a falarem do eventual colapso da espécie humana é o caráter exponencial da população. A humanidade precisou um milhão de anos para alcançar em 1850 a um bilhão de pessoas. Os espaços temporais entre um crescimento e outro diminuem cada vez mais. De 75 anos – de 1850 a 1925 – passaram para 5 anos atualmente. Prevê-se que por volta de 2050 haverá dez bilhões de pessoas. É o triunfo inegável de nossa espécie.

 

Lynn Margulis e Dorian Sagan no conhecido livro Microcosmos (1990) afirmam com dados dos registros fósseis e da própria biologia evolutiva que um dos sinais do colapso próximo de uma espécie é sua rápida superpopulação. Isso pode ser visto com micro-organismos colocados na cápsula Petri (placas redondas de vidro com colônias de bactérias e nutrientes). Pouco antes de atingirem as bordas da placa e se esgotarem os nutrientes, multiplicam-se de forma exponencial. E de repente todas morrem.

 

Para a humanidade, comentam eles, a Terra pode mostrar-se idêntica a uma cápsula Petri. Com efeito, ocupamos quase toda a superfície terrestre, deixando apenas 17% livre, por ser inóspita como os desertos e as altas montanhas nevadas ou rochosas. Lamentavelmente de homicidas, genocidas e ecocidas nos faríamos biocidas.

 

Carl Sagan, já falecido, via no intento humano de demandar à Lua e enviar naves espaciais como o Voyager para fora do sistema solar como manifestação do inconsciente coletivo que pressente o risco de nossa próxima extinção. A vontade de viver nos leva a cogitar formas de sobrevivência para além da Terra. O astrofísico Stephen Hawking fala da possível colonização extrassolar com naves, espécie de veleiros espaciais, propelidas por raios laser que lhes confeririam uma velocidade de trinta mil quilômetros por segundo. Mas para chegar a outros sistemas planetários teríamos que percorrer bilhões e bilhões de quilômetros de distância, necessitando muitos e muitos anos de tempo. Ocorre que somos prisioneiros da luz, cuja velocidade de trezentos mil quilômetros por segundo é até hoje insuperável. Mesmo assim só para chegar à estrela mais próxima – a Alfa do Centauro – precisaríamos de quarenta e três anos, sem ainda saber como frear essa nave a esta altíssima velocidade.

 

Para terminar, a opinião de dois notáveis historiadores Arnold Toynbe em sua autobiografia: “vivi para ver o fim da história humana tornar-se uma possibilidade real que pode ser traduzida em fato não por um ato de Deus mas do ser humano” (Experiências 1970,422).

 

E por fim de Eric J. Hobsbawm, em sua conhecida Era dos extremos (1994, 562) concluindo seu livro: Não sabemos para onde estamos indo. Contudo, uma coisa é certa. Se a humanidade quer ter um futuro aceitável, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. E o preço do fracasso ou seja, a alternativa para a mudança da sociedade é a escuridão.

 

Naturalmente, precisamos ter paciência para com o ser humano. Ele não está pronto ainda. Tem muito a aprender. Em relação ao tempo cósmico possui menos de um minuto de vida. Mas com ele, a evolução deu um salto, de inconsciente se fez consciente. E com a consciência pode decidir que destino quer para si. Nesta perspectiva, a situação atual representa antes um desafio que um desastre inevitável, a travessia para um patamar mais alto e não fatalmente um mergulho na autodestruição. Estaríamos portanto num cenário de crise de paradigma civilizacional e não de tragédia.

 

 

Mas haverá tempo para tal aprendizado? Tudo parece indicar que o tempo do relógio corre contra nós. Não estaríamos chegando tarde demais, tendo passado já o ponto de não retorno? Mas como a evolução não é linear e conhece frequentes rupturas e saltos para cima como expressão de maior complexidade e como existe o caráter indeterminado e flutuante de todas as energias e de toda a evolução, consoante a física quântica de W. Heisenberg e de N. Bohr, nada impede que ocorra a emergência de um outro patamar de consciência e de vida humana que salvaguarde a biosfera e o planeta Terra. Essa transmutação seria, segundo Santo Agostinho em suas Confissões, fruto de duas grandes forças: de um grande amor e de uma grande dor. É o amor e a dor que têm o condão de nos transformar inteiramente. Desta vez mudaremos por uma imenso amor à Terra, nossa Mãe e por uma grande dor pelas penas que está sofrendo.

 

Mesmo assim, na hipótese de um eventual desaparecimento da espécie humana, que consequências se derivariam para nós e para o processo da evolução?

 

Antes de qualquer consideração, seria uma catástrofe biológica de incomensurável magnitude. O trabalho de pelo menos 3,8 bilhões de anos, data provável do surgimento da vida, e dos últimos 5-7 milhões de anos, data do aparecimento da espécie homo e dos últimos cem mil anos, da irrupção do homo sapiens sapiens, trabalho esse feito pelo inteiro universo das energias, das informações e das diferentes densidades de matéria, teria sido senão anulado, pelo menos profundamente afetado.

 

O ser humano, na medida em que podemos constatar, estudando o universo, é o ser da natureza mais complexo já conhecido. Complexo em seu corpo com trinta bilhões de células, continuamente renovadas pelo sistema genético, complexo em seu cérebro de cem bilhões de neurônios em contínua sinapse, complexo em sua interioridade, em sua psique e em sua consciência, carregada de informações recolhidas desde o irromper do cosmos com o big bang e enriquecida com emoções, sonhos, arquétipos, símbolos oriundos das interações da consciência consigo mesma e com o ambiente à sua volta, complexo em seu espírito, capaz de captar o Todo e sentir-se parte dele e de identificar aquele Elo que une e re-une, liga e re-liga todas as coisas fazendo que não sejam caóticas mas ordenadas e confiram sentido e significado à existência neste mundo e nos fazendo suscitar sentimentos de profunda veneração e respeito face à grandeur do cosmos.

 

Até hoje não foram identificadas cientificamente e de forma irrefutável outras inteligências no universo. Por enquanto somos como espécie homo uma singularidade sem comparação no cosmos. Somos um habitante de uma galáxia média, a Via Láctea, dependendo de uma estrela, o Sol, de quinta grandeza, num canto da Via Láctea, morando no terceiro planeta do sistema solar, a Terra, e agora estando aqui neste pequeno espaço virtual discutindo sobre as consequências de nosso provável fim.

 

O universo, a história da vida e a história da vida humana perderiam algo inestimável. Toda a criatividade produzida por este ser, criado criador, que fez coisas que a evolução por ela mesma jamais faria, como uma tela de Di Cavalcanti ou uma sinfonia de Beethoven, um poema de Carlos Drumond de Andrade ou um canal de televisão, um avião e a internet com suas redes sociais. As construções da cultura seja daquela material, simbólica e espiritual teriam desaparecido para sempre.

 

Para sempre teriam virado pó as grandes produções poéticas, musicais, literárias, científicas, sociais, políticas éticas e religiosas da humanidade.

 

Para sempre teriam desaparecido as referências de figuras paradigmáticas de seres humanos entregues ao amor, ao cuidado, à compaixão e à proteção da vida em todas as suas formas como Buda, Chuang-tzu, Moisés, Jesus, Maria de Nazaré, Maomé, Francisco de Assis, Gandhi entre tantos e tantas outras. Para sempre teriam desaparecido também as antifiguras que macularam o humano e violaram a dignidade da vida em incontáveis guerras e extermínios cujos nomes sequer queremos mencionar. Cabe lembrar as atuais queimadas fenomenais na Amazônia e no Pantanal muito provavelmente provocadas intencionalmente por gananciosos buscadores de lucro a qualquer custo. Tais eventos podem ameaçar o equilíbrio dos climas da Terra.

 

Para sempre teria desaparecido a decifração feita da Fonte Originária de Todo Ser que permeia toda a realidade e a consciência de nossa profunda comunhão com ela, fazendo-nos sentir filhos e filhas do Mistério Inominável e compreendermo-nos como um projeto infinito que somente descansa quando se aconchega no seio deste Mistério de infinita ternura e bondade.

 

Para sempre tudo isso teria desaparecido desta pequena parte do universo que é a nossa Mãe Terra.

 

Por fim cabe perguntar: quem nos substituiria na evolução da vida, caso alguma forma de vida subsistir? Na hipótese de que o ser humano venha a desaparecer como espécie, mesmo assim o princípio de inteligibilidade e de amorização ficaria preservado. Ele está primeiro no universo e depois nos seres humanos. Esse princípio é tão ancestral quanto o universo.

 

 

Quando, nos primeiríssimos momentos após a grande explosão, quarks, prótons e outras partículas elementares começaram a interagir, surgiram campos de relações e unidades de informação e ordens mínimas de complexidade. Aí se manifestava aquilo que depois se chamará de espírito, aquela capacidade de criar unidades e quadros de ordem e sentido. Ao desaparecer dentro da espécie humana, ele emergiria, um dia, quem sabe em milhões de anos de evolução em algum ser mais complexo.

 

Théodore Monod, falecido no ano 2000, sugere até um candidato já presente na evolução atual, os cefalópodes, isto é, uma espécie de moluscos à semelhança dos polvos e das lulas. Alguns deles, possuem um aperfeiçoamento anatômico notável; sua cabeça vem dotada de uma cápsula cartiginosa, funcionando como crânio e possuem olhos como os vertebrados. Detém ainda um psiquismo altamente desenvolvido, até com dupla memória, quando nós possuímos apenas uma (2000, 247-248).

 

Evidentemente, eles não sairiam amanhã do mar e entrariam continente adentro. Precisariam de milhões de anos de evolução. Mas já possuem a base biológica para um salto rumo à consciência.

 

De todas as formas, urge escolher: ou o ser humano e seu futuro ou os polvos e as lulas. Mais que otimismo, alimento a esperança de que vamos criar juízo e aprender a ser sábios.

 

 

Entretanto, importa já agora mostrar amor à vida em sua majestática diversidade, ter com-paixão com todos os que sofrem, realizar rapidamente a justiça social necessária e amar a Grande Mãe, a Terra. Incentivam-nos as Escrituras judaico-cristãs: Escolha a vida e viverás (Deut 30,28) Andemos depressa, pois não temos muito tempo a perder.

 

Por fim, buscando radicalidade nos perguntamos: como vê a teologia cristã esta questão de uma eventual extinção da espécie humana?

 

Antes situemos a pergunta em sua tradição histórica, pois não é a primeira vez que os seres humanos se colocam seriamente esta questão. Sempre que uma cultura entra em crise, como a nossa, surgem mitos de fim do mundo e de destruição da espécie. Usa-se, então, um recurso literário conhecido: relatos patéticos de visões e de intervenções de anjos que se comunicam para anunciar mudanças iminentes e preparar a humanidade. No Novo Testamento esse gênero ganhou corpo no livro do Apocalipse e em alguns trechos dos Evangelhos que colocam na boca de Jesus predições de fim do mundo.

 

Hoje prolifera vasta literatura esotérica que usa códigos diferentes como passagem a outro tipo de vibração e comunicação com extraterrestres. Mas a mensagem é idêntica: a viragem é iminente e há que estar preparado.

 

Importante é não deixar-se iludir por esse tipo de linguagem. É linguagem de tempos de crise e não uma reportagem antecipada do que vai ocorrer. Mas há uma diferença entre os antigos e nós hoje. Para os antigos, o fim do mundo estava no imaginário deles e não no processo realmente existente. Para nós está no processo real, pois criamos de fato o princípio de autodestruição.

 

E se desaparecermos, como se há de interpretar? Chegou a nossa vez no processo de evolução já que há sempre espécies, desaparecendo naturalmente? Que diz a reflexão teológica cristã?

 

Suscintamente diria: se o ser humano frustrar sua aventura planetária significa, sem dúvida, uma tragédia inominável. Mas não seria uma tragédia absoluta. Essa, ele já a perpetrou um dia. Quando o Filho de Deus se encarnou em nossa miséria, por Jesus de Nazaré, logo após seu nascimento foi ameaçado de morte por Herodes que sacrificou todas as crianças dos arredores de Belém, na esperança de ter assassinado o Messias. Depois, durante a sua vida foi caluniando, perseguido, rejeitado, preso, torturado e pregado numa cruz. Só então se formalizou o que chamamos de pecado original que é um processo histórico de negação da vida. Mas, creem os cristãos, ocorreu outrossim a suprema salvação, pois onde abundou pecado, superabundou também graça. Houve a ressurreição, não como reanimação de um cadáver mas como irrupção do ser humano novo, na plenitude de suas virtualidades realizadas. Entretanto, maior perversidade que matar a criatura, a vida, o planeta, é matar o Criador encarnado.

 

Mesmo que a espécie mate a si mesma, ela não consegue matar tudo dela. Só mata o que é. Não pode matar aquilo que ainda não é: as virtualidades escondidas nela e que querem se realizar. E aqui entra a morte em sua função libertadora. A morte não separa corpo e alma, pois, no ser humano não há nada a separar. Ele é um ser unitário com muitas dimensões, uma exterior e material, o corpo, e esse mesmo corpo com sua interioridade e profundidade que chamamos de espírito. O que a morte separa é o tempo da eternidade. Ao morrer, o ser humano deixa o tempo e penetra na eternidade. Caindo as barreiras espaço-temporais, as virtualidades agrilhoadas podem desabrochar em sua plenitude. Só então acabaremos de nascer como seres humanos plenos (Boff, 2000). Portanto, mesmo com a liquidação criminosa da espécie, o triunfo da espécie não é frustrado. A espécie sai tragicamente do tempo pela morte, morte esta que lhe concede entrar na eternidade. E Deus é aquele que pode tirar da morte a vida e da ruína a nova criatura.

 

Alimentamos essa esperança. Assim como o ser humano domesticou outros meios de destruição como o primeiro deles, o fogo, (que originou os mitos de fim do mundo) assim agora, esperamos, domesticará os meios que podem destruí-lo. Aqui caberia uma análise das possibilidades dadas pela nanotecnologia (que trabalha com partículas ínfimas de átomos, genes e moléculas) que pode, eventualmente, oferecer meios técnicos para diminuir o aquecimento global e purificar a biosfera dos gases de efeito estufa (Martins, 2006,168-170).

 

Mas esclarecedor é pensar esta questões em termos da física quântica e da nova cosmologia. A evolução não é linear. Ela acumula energia e dá saltos. Assim também nos sugere a física quântica à la Niels Bohr e Werner Heisenberg: virtualidades escondidas, vindas do Vácuo Quântico, daquele oceano indecifrável de energia que subjaz e pervade o universo, a Terra e cada ser humano, podem irromper e modificar a seta da evolução.

 

Recuso-me a pensar que nosso destino, depois de milhões de anos de evolução, termine assim miseravelmente no próximo tempo ou nas próximas gerações. Haverá uma salto, quem sabe, na direção daquilo que já em 1933 Pierre Teilhard de Chardin anunciava: a irrupção da noosfera, vale dizer, aquele estado de consciência e de relação com a natureza que inaugurará uma nova convergência de mentes e corações e assim um novo patamar da evolução humana e da história da Terra.

 

Nesta perspectiva o cenário atual não seria de tragédia mas de crise de paradigma, da forma como habitamos a Casa Comum. A crise acrisola, purifica e amadurece. Ela anuncia um novo começo; nossa dor é de um parto promissor e não as dores de um prestes a morrer. Ainda vamos irradiar.

 

O que importa dizer é que não acabaria o mundo, mas pode acabar este tipo de mundo insensato que ama a guerra e a destruição em massa. Vamos inaugurar um mundo humano que ama a vida, dessacraliza a violência, tem cuidado e piedade para com todos os seres, pratica a justiça verdadeira, venera o Mistério do mundo que chamamos de Fonte Originária que faz Ser todos os seres e que nós nomeamos de Deus, enfim, que nos permite estarmos no monte das bem-aventuranças. O ser humano terá simplesmente aprendido a tratar humanamente todos os seres humanos e com cuidado, respeito e compaixão a todos os demais seres. Tudo que existe, merece existir. Tudo o que vive merece viver. Especialmente nós seres humanos.

 

Referências

Boff, L. (2000), Vida para além da morte, Petrópolis: Vozes.

—- (2000), Tempo de transcendência. O ser humano como projeto infinito, Rio de Janeiro: Sextante.

Duve, C.(1997), Poeira vital. A vida como imperativo cósmico, Rio de Janeiro: Campus.

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Higa, T.,(2002), Eine Revolution zur Rettng der Erde, Xanten: OLV, Organischer Landbau.

Hobsbawn, E.(1994), A era dos extremos, São Paulo: Objetiva.

Jacquard, A. e Kahn, A., (2001), L’avenir n’est pas écrit, Paris: Boyard.

Lovelock, J. (2006), A vingança de Gaia, Rio de Janeiro: Intrinseca.

Martins, P.R.(org)(2006), Nanotecnologia, sociedade e meio ambiente, São Paulo: Xamã.

Miranda, E. E.,(2007),Quando o Amazonas corria para o Pacifico, Petrópolis: Vozes.

Monod, J.(2000), Et si l’aventure humaine devait échouer? Paris: Grasset.

Rees, M. (2005), Hora final, São Paulo: Companhia das Letras.

Revista Veja, páginas amarelas de 25 de outubro 2006.

Toynbee, A. Experiências (1970), Petrópolis: Vozes, Petrópolis.

Ward, P.(1997), O fim da evolução. Extinções em massa e preservação da biodiversidade, Rio de Janeiro: Campus.

Ziegler,J. (2006), Das Imperium der Schande, Pantheon, Munique.

 

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