15 Setembro 2020
"O batismo por si só confere a maior dignidade que existe, ou seja, a própria divindade", escreve David M. Knight, padre aposentado da Diocese de Memphis, nos EUA, doutor em Teologia, líder do Immersed in Christ, um movimento para o crescimento espiritual baseado nos cinco mistérios do batismo, ex-jesuíta e 50 anos de experiência ministerial em 19 países e 40 livros publicados, em artigo publicado por La Croix International, 10-09-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o artigo.
Oscar V. Cruz, arcebispo emérito das Filipinas, passou para a plenitude da vida no mês passado, depois de sucumbir ao coronavírus.
Dez anos atrás, quando eu descobri o blog dele – OVCRUZ, JCD – eu não tinha nem ideia de quanta credibilidade o seu nome dá àquilo que ele escreveu sobre os pretensiosos títulos dos bispos.
O arcebispo Cruz foi presidente da Conferência dos Bispos das Filipinas e da Federação das Conferências Episcopais da Ásia.
Em seu funeral, ele foi descrito como um “ativista que lutou não apenas a partir do púlpito” e como “um santo que se juntou a nós em piquetes contra o jogo ilegal e a prostituição, defendendo a justiça social e os direitos das mulheres. Ele se irritava porque estava apaixonado, porque amava o mundo e a Igreja, irritado com o jeito como as coisas eram. Era uma ira nascida da esperança”.
Em seu blog, o arcebispo destacou que, no momento em que alguém se torna bispo, as iniciais D.D. são automaticamente anexadas ao seu nome. Elas significam “Doutor em Divindade” [Doctor Divinitas]. Então, ele perguntou: “O título realmente significa o que diz? E do que se trata esse doutorado?”
Tão falso quanto as fantasias de um baile de máscaras
Se o título for apenas honorário em seu significado, responde ele, mas automático na outorga, então ele beira o sacrilégio. Mas, se o título for realmente deliberado e intencional, então as iniciais são uma mentira.
As pessoas presumem que o título foi conferido por uma universidade onde o bispo obteve um doutorado, ou pelo menos recebeu um doutorado honoris causa. A verdade é que tais títulos absolutamente não servem para nada.
A maioria dos bispos não estudou teologia sequer um único semestre depois de deixar o seminário, e nenhuma universidade os homenageou com um doutorado honorário.
Todos os nossos atuais títulos e paramentos eclesiásticos são tão falsos quanto as fantasias de um baile de máscaras. Deveríamos chamá-los por aquilo que eles são.
Essa é a horrível distorção chamada clericalismo, que o Papa Francisco condena como “uma atitude que tende a diminuir e desvalorizar a graça batismal que o Espírito Santo coloca no coração do nosso povo”.
Essas práticas distorcem a verdade de que a maior razão para reverenciar alguém é a graça do batismo, o favor de compartilhar a própria vida divina de Deus. Nenhuma posição na Igreja pode agregar qualquer dignidade maior do que essa.
John Dalberg-Acton, conhecido pelo princípio “todo o poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente”, escreveu nessa sua mesma carta ao bispo Mandell Creighton em 1887: “Não há pior heresia do que a de que o cargo santifica o seu detentor”.
Podemos expandir isso nos seguintes termos: “Não há pior heresia do que a de que os leigos não são iguais pelo batismo ao clero ordenado”: ou: “Não há pior heresia do que a de que o próprio clero ordenado deve ser dividido por categoria em Reverendos, Reverendíssimos e Mui Reverendíssimos, em clara contradição à verdade de que só o batismo confere a maior dignidade que existe, que é a própria divindade”.
De onde é que vieram esses títulos?
Eu gostaria de poder fazer seis perguntas a cada bispo do mundo. Como não posso, exorto todos os que lerem este artigo a pedirem a seus próprios bispos que lhes respondam. (eu perguntei ao meu).
1. Quando esses títulos apareceram pela primeira vez na Igreja? Certamente não durante a vida dos apóstolos.
2. Por que foram adotados? Havia então, ou há agora, qualquer motivação religiosa ou espiritual para usá-los?
3. Que efeito tem o uso desses títulos sobre a imagem da Igreja implantada tanto no clero quanto no laicato?
4. Onde nos Evangelhos Jesus fala sobre o uso desses títulos?
5. Qual a importância deles? Não é um pouco fanático ficar tão preocupado com algumas palavras? Não são apenas detalhes “cosméticos” que não têm nenhum efeito real sobre nada?
6. Quem realmente deseja manter ou parar de usar esses títulos na Igreja hoje, e por quê? É o estilo de vida dessas pessoas que queremos imitar?
Alguns pensamentos que eu sugeriria em resposta às perguntas:
Quando? Acho que é seguro presumir que esses títulos apareceram pela primeira vez depois que Constantino tornou a Igreja parte do establishment e deu aos bispos o status de autoridades seculares.
Por quê? Um primeiro palpite é que foi simplesmente para imitar o protocolo da corte imperial.
Alguém consegue imaginar uma motivação que não seja contrária ao exemplo e ao ensino de Jesus? Se pensarmos que, assim como no Exército, esses títulos promovem a obediência à autoridade eclesiástica, o uso desses meios mundanos para alcançar esse fim não nos desvia da motivação baseada na fé?
Se respeitamos e obedecemos aos bispos por timor reverentialis, pelo “temor reverencial” que suas vestes e títulos criam em nós, quão conscientes somos da ação de Deus neles?
Que efeito esses títulos têm? Eles fazem a Igreja parecer ter consciência de classe? Ou pomposa? Não causam divisão entre o clero ao designar alguns como “mais elevados” do que outros?
O que Jesus diria?
Obviamente, esses títulos proclamam que os padres não são uma irmandade de iguais. Existem os “Reverendíssimos”, os “Mui Reverendíssimos” e os meros “Reverendos”, todos claramente distintos, tanto dos padres acima deles, quanto dos diáconos e leigos abaixo deles. Esse é um efeito que Jesus deseja? É sequer aquilo que o bispo deseja?
Onde Jesus fala sobre títulos? Em Mateus 23,2, ele diz:
“Os escribas e os fariseus (...) gostam do lugar de honra nos banquetes e dos primeiros assentos nas sinagogas, de serem cumprimentados nas praças públicas e de serem chamados de ‘rabi’. Quanto a vós, não vos façais chamar de ‘rabi’, pois um só é vosso Mestre e todos vós sóis irmãos. Não chameis a ninguém na terra de ‘pai’, pois um só é vosso Pai, aquele que está nos céus. Não deixeis que vos chamem de ‘guia’, pois um só é o vosso Guia, o Cristo. Pelo contrário, o maior dentre vós deve ser aquele que vos serve. Quem se exaltar será humilhado, e quem se humilhar será exaltado.”
Alguém pode argumentar honestamente que isso não se aplica a títulos como “Excelência” e “Reverendíssimo” (para os bispos), “Eminência” (para os cardeais) e “Reverendíssimo” para dignitários inferiores?
Podemos, possivelmente, nos defender contra a acusação de que os católicos – especialmente a hierarquia –, de forma consciente, deliberada e explícita, vão contra a letra e, acima de tudo, vão contra o espírito desse ensinamento de Jesus?
Nossa lista gradativa de títulos nos faz pensar em Marcos 9,33, quando Jesus pergunta aos seus discípulos: “Sobre o que discutíeis pelo caminho?”. Marcos diz que eles “ficaram calados, porque pelo caminho tinham discutido quem era o maior”. Então, Jesus se sentou, chamou os Doze e lhe disse: “Se alguém quiser ser o primeiro, seja o último de todos, aquele que serve a todos”.
Mas, se Jesus tivesse pensado da mesma forma que aqueles que defendem esses títulos parecem pensar, ele teria dito:
“Não haverá discussões. Todos vós sabereis precisamente quem é superior e inferior. Todos vocês deveis receber o título de ‘Reverendo’, para mostrar que sois maiores do que meus seguidores comuns.
“Mas alguns de vós serão chamados de ‘Reverendíssimos’, para mostrar que o vosso cargo em particular vos torna maiores do que os outros. E aqueles que são encarregados das Igrejas locais como bispos serão chamados de ‘Mui Reverendíssimos’, porque são maiores do que todos.”
“Que não haja divisão entre vós. A vossa unidade se baseará na aceitação da desigualdade claramente definida, o que vos tornará uma ‘Igreja hierárquica’.
“Aqueles de vós que desejam subir podem buscar promoção para um cargo mais importante, e, quando conseguirdes, vosso título dirá exatamente onde estais.”
Cuidado com a língua!
Por mais chocante – ou até blasfemo – que pareça colocar essas palavras nos lábios de Jesus, é patentemente inegável que isso é exatamente o que o protocolo da Igreja está nos dizendo hoje.
E isso contribui mais para formar a imagem da Igreja nas mentes das pessoas do que todas as palavras de Jesus e as palavras de teólogos juntas.
Qual a importância delas? Não seriam apenas detalhes “cosméticos” que não têm nenhum efeito significativo sobre nada?
A libertação das mulheres não nos ensinou nada?
As mulheres gritaram e protestaram fortemente até que aceitássemos que aquela “linguagem sexista” – como o costume secular de usar o pronome masculino para designar mulheres e homens indiscriminadamente – realmente tivessem um efeito sobre a forma como percebemos as mulheres.
Elas achavam que valia a pena montar barricadas para fazer algumas pequenas mudanças na língua inglesa.
Eu estou tão velho que sequer me lembro de quando a sociedade polida aceitou algumas palavras irrepetíveis para designar os negros. Use-as hoje, e as pessoas ficarão horrorizadas. Qualquer funcionário público que fizesse isso seria demitido.
Vamos continuar dizendo que o vocabulário não é importante na Igreja?
Quem quer manter ou não os títulos?
Quem na Igreja hoje realmente deseja manter, e quem deseja mudar, esses títulos?
O Papa Francisco, por exemplo, parece ser contra eles. Ele assina as suas encíclicas simplesmente como “Franciscus”. Ele encerrou uma carta aos seus próprios padres de Roma apenas assim: “Fraternalmente, Francisco”.
O cardeal Paul-Émile Leger, de Montreal, sugeriu durante o Concílio Vaticano II (1962-1965) que os bispos considerassem o seguinte:
“Um conjunto de regulamentos relativos às insígnias, ornamentos e títulos que nós [bispos] frequentemente usamos contra a nossa vontade e que são prejudiciais ao nosso ministério pastoral. (...) O uso contínuo do antigo esplendor é um obstáculo ao espírito do Evangelho.
“Talvez esse esplendor fosse considerado necessário quando alguns bispos também possuíam autoridade secular. Mas na nossa época (...) tal exibição não se encaixa mais no padrão normal da vida pública e está fora de sintonia com o nosso espírito” (“Council Speeches of Vatican II”, orgs. Kung et al., Paulist Press, 1964, pp. 114-115).
Os 40 bispos que assinaram o “Pacto das Catacumbas” poucos dias antes do encerramento do Concílio, depois de celebrar uma missa nas Catacumbas de Santa Domitila, desafiaram seus “irmãos bispos” e se comprometeram a viver uma “vida de pobreza” e a rejeitar todos os símbolos e privilégios de poder.
Dois dos 13 compromissos específicos eram:
“Recusamos ser chamados, oralmente ou por escrito, com nomes e títulos que signifiquem a grandeza e o poder (Eminência, Excelência, Monsenhor...). Preferimos ser chamados com o nome evangélico de Padre. Cf. Mt 20,25-28; 23,6-11; Jo 13,12-15.”
“Tornados às nossas dioceses respectivas, daremos a conhecer aos nossos diocesanos a nossa resolução, rogando-lhes ajudar-nos por sua compreensão, seu concurso e suas preces.”
Finalmente, Jesus rezou para que todos os cristãos fossem “um” – como o Pai, o Filho e o Espírito são um (cf. João 17,21).
O Prefácio da Santíssima Trindade descreve Deus como “três Pessoas, na mesma natureza e igual majestade”. Portanto, para ser um como o Pai, o Filho e o Espírito são um, devemos reconhecer todos os cristãos como iguais em dignidade e tomar cuidado para não cercar ninguém com mais esplendor do que os outros.
Eu acredito que haja apenas uma resposta para essas seis perguntas: “Haja entre vós o mesmo sentir e pensar que no Cristo Jesus. Ele, existindo em forma divina, não se apegou ao ser igual a Deus, mas despojou-se, assumindo a forma de escravo” (Filipenses 2,5).
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