05 Junho 2020
“O lar tornou-se um lugar sagrado no qual as mulheres assumiram deveres sacerdotais, transformando as refeições da família em celebrações eucarísticas.”
O comentário é de Tina Beattie, teóloga inglesa e professora de Estudos Católicos na Universidade de Roehampton, em Londres, em artigo publicado por The Tablet, 04-06-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No fim de semana passado, o cardeal Vincent Nichols criticou a recusa do governo [britânico] em permitir que as igrejas reabram para o culto público. Mas, para muitas mulheres, a crise do coronavírus já rompeu sua dependência de uma forma tradicional de vida da Igreja mediada por um sacerdócio exclusivamente masculino.
Algumas semanas antes do confinamento, pediram-me para contribuir com um pequeno artigo para a revista cristã Reform, oferecendo uma perspectiva católica sobre o tema “Este é o meu corpo. Realmente?”.
O editor Steve Tomkins me contatou recentemente, perguntando se eu queria ajustar o meu parágrafo final antes de imprimir o texto, à luz de como as coisas haviam mudado. Eu pedi que ele retirasse essa parte, porque eu não tenho ideia do que diria agora.
Aqui está como eu terminava aquele artigo:
“... a presença real de Cristo na missa exige a minha presença real. Nestes dias de culto televisionado e do individualismo de uma espiritualidade que resiste às dimensões comunitárias do culto, há um profundo desejo em mim de ir aonde os outros estão reunidos e de estar realmente presente naquele lugar onde o eterno mistério de Cristo se torna realmente presente no tempo e no lugar da Eucaristia. Aqui, a matéria é divinizada pela graça, a eternidade rompe a cronologia, e o corpo de Cristo reúne e redime toda a Criação – até mesmo eu”.
Eu li essas palavras agora – escritas com tanta confiança há três meses – e me dei conta de que essa crise me aproximou da fronteira da Igreja Católica do que em qualquer outro momento desde a minha conversão em 1986. Foi uma jornada difícil, mas, pela primeira vez, eu me sinto uma forasteira. Eu nunca me arrependi de me tornar católica – pertencer a esta vasta tradição mudou o meu modo de estar no mundo, me deu um grupo inspirador e eclético de amigos queridos e me fez sentir parte de uma comunidade mundial –, mas eu me pergunto se estou prestes a me tornar uma daquelas pessoas que, como descreve a socióloga Grace Davie, “creem sem pertencer”. Eu sei que não estou sozinha ao ter esse sentimento de deslocamento e alienação.
Fiquei particularmente interessado nas conversas que ocorreram entre os grupos de mulheres católicas durante a crise. Seu impacto sobre as mulheres e o seu significado para o papel que as mulheres podem desempenhar na Igreja que emerge da pandemia é uma questão negligenciada – por exemplo, as mulheres sequer foram mencionadas em artigos recentes da The Tablet sobre como será o catolicismo pós-Covid.
No entanto, este tem sido um período de intenso diálogo e atividade entre as mulheres católicas, com o surgimento de muitas questões desafiadoras e intuições criativas.
No confinamento com o meu marido não católico, eu pessoalmente não criei uma vida litúrgica alternativa no nosso lar, e a oração foi um pouco uma luta solitária. No entanto, fiquei fascinada ao observar o surgimento de uma Igreja verdadeiramente doméstica, com a dissolução das fronteiras entre a vida litúrgica formal da Igreja mediada por um sacerdócio exclusivamente masculino e um mundo doméstico mais informal de liturgias caseiras e rituais improvisados, muitas vezes presididos por mulheres.
Como escreve a socióloga italiana Paola Lazzarini [disponível aqui, em italiano], “se o anúncio pascal não tivesse surgido a partir das nossas casas, o silêncio teria encoberto o Aleluia”.
O lar tornou-se um lugar sagrado no qual as mulheres assumiram deveres sacerdotais, transformando as refeições da família em celebrações eucarísticas ou encontrando suas próprias maneiras de participar ativamente ou de criar liturgias transmitidas ao vivo.
Algumas mulheres gostam da informalidade de assistir às liturgias no conforto das suas casas, talvez enquanto desfrutam de uma xícara de café. Algumas se somam à Comunhão do padre com um pão caseiro e uma taça de vinho; outras aproveitam a oportunidade para fazer um zapping virtual e experimentar muitas formas diferentes de missa.
Mas há um tema recorrente. As liturgias oficiais transmitidas ao vivo expõem mais do que nunca como a Eucaristia está centrada no homem. As mulheres tornaram-se quase totalmente supérfluas pela mudança para as missas virtuais. Várias mulheres dizem que simplesmente desligam a transmissão ao vivo depois da Liturgia da Palavra, porque, nas palavras de uma delas, “parece ser apenas um homem fazendo algo do qual eu absolutamente não faço parte”. Outra descreveu “a absoluta falta de vozes femininas” como “esquisita”, acrescentando: “Eu geralmente não percebo isso tanto quando estou em uma igreja cheia de mulheres (mesmo que em silêncio)”. Outra mulher, que fez um comentário semelhante, disse: “Estou testemunhando o quão surda a hierarquia local pode ser diante do silenciamento das mulheres na Igreja”.
Muitas mulheres disseram como fez diferença quando o padre foi sensível o suficiente para incorporar as vozes das mulheres na liturgia – através de leituras, hinos e orações gravados, por exemplo. A perda da participação nos corais durante a missa tem sido uma fonte profunda de tristeza para muitas mulheres, principalmente porque esse aspecto do culto provavelmente será restringido por muito tempo, visto que cantar juntos é uma poderosa forma de espalhar o vírus.
Eu assisti apenas duas missas transmitidas ao vivo. A primeira foi uma missa papal na Casa Santa Marta, com a participação de um pequeno grupo socialmente distanciado de homens de terno e de freiras de hábitos pretos. Achei o Papa Francisco inspirador, mas me senti alienada e até mesmo irritada com aquela congregação não representativa. Um contraste notável foi quando, na Páscoa, o Papa Francisco estava sozinho no vazio úmido e chuvoso da Praça São Pedro.
Uma mulher resumiu eloquentemente o que aquele momento significava: “Eu vivi um belo momento de fé quando assisti o Papa Francisco liderando a Liturgia da Páscoa e, especialmente, o seu momento na Praça de São Pedro – vazia, escura, chuvosa. Esse foi provavelmente o momento em que eu me senti completamente unida a ele, à Igreja sofredora, a um mundo sofredor – unida em Cristo... Um momento importante na minha jornada de fé. Ainda estou lidando com a plenitude do significado pessoal disso para mim”.
A minha segunda experiência de transmissão ao vivo foi assistir a um padre rezando uma missa na frente de uma câmera fixa em uma catedral. Eu pensei em como ele parecia solitário – uma figura solitária em uma igreja vazia rezando a missa em um abismo. Senti uma imensa tristeza – nestes dias de declínio de vocações, o sacerdócio certamente é algo bastante solitário, sem contar a carga adicional de isolamento social. Mas, quando chegou o momento de o sacerdote tomar a Comunhão, senti-me totalmente descolada e excluída. Qual era o sentido, afinal, de assistir a esse ritual solitário? Em benefício de quem ele estava sendo feito?
Sara Parvis escreveu de forma comovente na The Tablet recentemente sobre o seu sentimento de luto pelo fechamento de igrejas e a sua fome pela Eucaristia. Ela também descreveu o impacto da exclusão das mulheres. Apesar do seu apreço pelo “luminoso testemunho” dos frades dominicanos locais, ela experimentou o Tríduo Pascal como “uma espécie de fantasia clericalista: nenhum leigo e, sobretudo, nenhuma mulher”.
O luto e a fome de Sara Parvis são compartilhados por muitos, mas muitos também sentem uma profunda ansiedade diante de campanhas zelosas que exigem que as igrejas sejam reabertas e que o culto público seja reiniciado, enquanto muitos cientistas ainda aconselham que não é realmente seguro fazer isso. Alguns apontam que, quando os números são restritos, apenas os mais persistentes tendem a conseguir entrar nos ritos, enquanto os vulneráveis e os idosos têm menor probabilidade de arriscar a participação.
Uma mulher observou que “parece haver uma divisão – ultraconservadores fisicamente mais visíveis do que o resto de nós na nossa comunidade de fé”. Desafios vastamente complexos estão à nossa frente, enquanto a Igreja tenta responder a qualquer que seja o “novo normal”.
Eu me identifico mais de perto com aqueles que estão descobrindo que um profundo senso de cura e alegria da natureza emergiu com a cessação forçada de grande parte da atividade humana. Uma mulher observou que “a riqueza desta primavera [no hemisfério Norte] alimentou a minha fé, quase mais do que qualquer outra coisa”.
Eu me vi vagando por prados repletos de flores silvestres, sentindo-me viva com o som do canto dos pássaros, ou olhando para as estrelas do céu noturno de Londres, e me perguntei por que as pessoas pensam que precisam estar dentro de uma igreja para rezar. Não se trata do meu protestantismo latente reafirmando a si mesmo, mas sim um profundo questionamento do que mais importa para mim na minha fé católica.
Eu aprecio o senso elevado de sacramentalidade da Criação, que eu devo não apenas à Laudato si’, mas sim a muitos anos de estudo da teologia católica e de participação da Eucaristia. Existe uma rica materialidade no catolicismo – uma afirmação abrangente da vida corporal e sensual – que eu ainda sinto como a diferença fundamental entre a minha formação protestante e a minha fé católica. A crença na presença real de Cristo na Eucaristia é uma expressão importante disso, mas pertence a um sentido mais amplo do Cristo cósmico que santifica toda a criação.
Durante os últimos meses, as mulheres tornaram-se sacerdotes da casa e sacerdotes da Criação – reunindo seu povo em volta da mesa para celebrações eucarísticas, consagrando a Criação ao Criador em caminhadas debaixo da luz do sol e do canto dos pássaros e cuidando da melhor maneira possível dos solitários, dos pobres, dos doentes e dos enlutados, assim como das suas próprias famílias, com todo o sentimento de impotência e humildade que todos sentimos durante o confinamento.
Quando isso acabar, as mulheres católicas não serão empurradas de volta para os bancos para desempenhar papéis de submissão e subserviência a uma elite clerical. Embora seus líderes pareçam estar preocupados com a questão de quando os fiéis poderão entrar novamente nas igrejas para se ajoelhar e fazer suas orações em bancos desinfetados, temos visto uma grande liberação de energia entre as mulheres na Igreja. Se essa energia e criatividade não forem aproveitadas, elas se dissiparão ou encontrarão outros destinos mais acolhedores.
Uma mulher disse que, após o confinamento, ela pode não querer gastar seu tempo “assistindo outras pessoas (principalmente homens) fazendo rituais, quando eu posso participar e me desafiar a crescer através da oração, do estudo e tentar viver a Palavra de Deus. Não vou abandonar a Igreja como tal, mas eu me alimento melhor em outros lugares”.
É um sentimento ecoado por muitas mulheres que encontraram novos alimentos frescos no estudo e na oração nas últimas semanas e agora estão questionando sua relação formal com a Igreja pela primeira vez.
O que isso significa para a Igreja pós-Covid? Paola Lazzarini afirma de forma concisa e vigorosa: “Voltar à missa é uma alegria, mas, se isso se traduzir em reduzir mais uma vez o povo de Deus a espectadores, considerando esses últimos meses como um parêntese vazio a ser esquecido às pressas, então isso seria um pecado, propriamente dito, uma oportunidade desperdiçada e, por causa disso, triste e míope. Nós, mulheres, não recomeçamos. Nós seguimos em frente".
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As mulheres e a Igreja pós-pandemia. Artigo de Tina Beattie - Instituto Humanitas Unisinos - IHU