01 Setembro 2020
“No entanto, Bento XVI escolheu o caminho oposto, como, aliás, o fizera em muitas outras ocasiões e por diversos motivos (e K. Wojtyla antes dele): ia do centro para a periferia, minando, assim, a reciprocidade entre o primado da Sé Romana e a colegialidade dos sucessores dos apóstolos colocados à frente das Igrejas, verdade proclamada pelo Vaticano II”, escreve Jesús Martínez Gordo, padre e teólogo da diocese de Bilbao, em artigo publicado por Religión Digital, 30-08-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Em 28 de agosto, uma comissão da Conferência Episcopal Italiana entregou a Francisco uma cópia do novo missal. O Papa agradeceu o gesto, destacando a importância do trabalho realizado e a continuidade na aplicação do Vaticano II. O referido missal, que será obrigatório na Itália a partir de 04 de abril de 2021, Domingo de Páscoa, apresenta, entre outros, um detalhe que não passou despercebido, pelo menos entre nós: mantém a expressão “derramado por vós e por todos” na consagração do vinho.
Há muita tinta escrita nos últimos anos sobre o assunto. Talvez, por isso, valha a pena recordar mais uma vez o que significa recuperar tal tradução nos tempos eclesiais atuais: a meu ver, uma importante advertência aos partidários, neste e em outros assuntos, de uma leitura involutiva da reforma, que, aprovada na sala conciliar, ratificada e promovida por Paulo VI e “recebida” pela grande maioria do povo de Deus, foi torpedeada – desde os primeiros momentos – pelo teólogo J. Ratzinger, posteriormente prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e papa Bento XVI; emérito hoje.
É conhecido o diagnóstico que o cardeal J. Ratzinger fez da reforma litúrgica de Paulo VI: “causou danos gravíssimos”, pois, ao romper radicalmente com a tradição, propiciou a impressão de que é possível uma recriação da mesma “ex novo” (J. Ratzinger, "Mi vida. Autobiografia", Madrid, 2006).
Também são conhecidas as autorizações posteriores do papa Bento XVI para celebrar a Missa em latim (Exortação pós-sinodal “Sacramentum caritatis”, de fevereiro de 2007) e para recuperar a liturgia romana anterior à reforma promovida por Paulo VI em 1970 (Carta Apostólica “Summorum Pontificum”, de julho de 2007).
E também se conhece a surpreendente “reforma” da reforma litúrgica, em que se envolveu – e, neste sentido, (contra)reforma – revendo a fórmula de consagração do vinho até então vigente e, por extensão, o seu compromisso com uma tradução literal da missa do rito romano para as línguas vernáculas.
A expressão ‘pro multis’ foi traduzida após o Concílio Vaticano II pela grande maioria das conferências episcopais do mundo como ‘por todos’: em alemão ‘für Alle’, em inglês ‘for all’, em espanhol ‘por todos los hombres’, em francês ‘pour la multitude’, em italiano ‘per tutti’ e em basco ‘guztientzat’.
No entanto, em 24 de abril de 2012, o site da Conferência Episcopal Alemã publicou uma carta de Bento XVI, datada de 14 de abril de 2012, na qual pedia aos bispos alemães (após a aprovação de uma nova edição do missal, do ‘Gotteslob’) que seguiria o texto latino e adotaria a expressão ‘für Viele’ (por muitos) em vez de ‘für Alle’ (por todos): “este é o meu sangue derramado por vocês e por muitos”.
Foi uma decisão que não surpreendeu os conhecedores da trajetória teológica do papa Bento XVI, que se envolveu por várias décadas (e sem muito sucesso durante o pontificado de João Paulo II) em traduzir o ‘pro multis’ como ‘por muitos’.
As referências normativas mais próximas a este texto papal foram a Instrução “Liturgiam authenticam” (2001) da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, bem como uma carta da mesma Congregação (2006) na qual foi especificamente dirigida a tradução da expressão ‘pro multis’.
Na Instrução “Liturgiam authenticam” foi lembrado que o rito romano “tem um estilo e uma estrutura próprios que devem ser respeitados tanto quanto possível também nas traduções”. Por isso, recomendou cuidar da exatidão dos textos latinos nas diferentes línguas vernáculas e relegar tudo o que fosse criatividade.
Desde o primeiro momento, esta Instrução foi desqualificada e ignorada pela grande maioria das Conferências Episcopais do mundo e, mesmo, por um importante setor da própria Cúria Vaticana, como se pode verificar na encíclica “Ecclesia de Eucharistia” (2003) e na carta de João Paulo II aos sacerdotes na Quinta-feira Santa de 2005.
Especificamente, no número 2 da encíclica “Ecclesia de Eucharistia” de João Paulo II era possível ler, quando se recordavam as palavras de Jesus para a consagração do vinho: “Tomai todos e bebei, pois este é o cálice do meu sangue, sangue da nova e eterna aliança, que será derramado por vós e por todos os homens para a remissão dos pecados (cf. Mc 14,24; Lc 22,20; 1 Cor 11,25)”. Foi um texto em que – como se pôde constatar – foi recuperado o ‘por todos’, reconhecendo as traduções presentes nos missais pós-conciliares.
E no número 4 da carta que João Paulo II dirigiu aos sacerdotes na Quinta-feira Santa de 2005 (a última, antes de sua morte), dizia: ‘Hoc est enim corpus meum quod pro vobis tradetur’. O corpo e o sangue de Cristo foram dados para a salvação do homem, de todo o homem e de todos os homens. É uma salvação integral e ao mesmo tempo universal, porque ninguém, a menos que a rejeite livremente, está excluído do poder salvador do sangue de Cristo: ‘qui pro vobis et pro multis effundetur’. É um sacrifício oferecido por 'muitos', como diz o texto bíblico (Mc 14,24; Mt 26,28; cf. Is 53,11-12), com uma expressão tipicamente semítica, que indica a multidão a que chega a salvação alcançada pelo único Cristo e, ao mesmo tempo, pela totalidade dos homens aos quais foi oferecida: é sangue 'derramado por ti e por todos', como explicam acertadamente algumas traduções. Com efeito, a carne de Cristo é dada 'para a vida do mundo' (Jo 6,51; cf. 1 Jo 2, 2)”.
O fato de esta carta (que dá uma posição clara a favor de ‘por todos’) não ter sido previamente submetida ao parecer da Congregação para a Doutrina da Fé provocou um protesto do cardeal J. Ratzinger em uma reunião tempestuosa dos chefes de alguns dicastérios da Cúria do Vaticano.
Assim sendo e uma vez eleito Papa, não foi surpreendente que a tradução do ‘pro multis’ se tornasse em um dos objetivos da (contra)reforma litúrgica com a qual sempre esteve comprometido o prefeito da Congregação para a Doutrina da fé de João Paulo II.
O primeiro sinal durante o pontificado de Bento XVI foi a já citada carta da Congregação para o Culto Divino de 2006. Neste texto foi recordado, em primeiro lugar, que a fórmula consagratória então em vigor (‘por todos’) aderiu à ortodoxia e era válida, além de coerente, com os “princípios que regem a tradução dos textos litúrgicos para as línguas modernas”. Era evidente que com este reconhecimento eles queriam superar qualquer dúvida sobre a reforma litúrgica empreendida por Paulo VI na aplicação do Concílio Vaticano II.
Porém, a Congregação para o Culto Divino defendeu, em um segundo momento, a necessidade de alteração da tradução baseando-se, para isso, na “equivalência formal” ou literal, ao invés da “equivalência estrutural” ou dinâmica (ou seja, mais atenta ao significado) até então prevalecente. Foi uma decisão baseada em um suposto “empobrecimento litúrgico” causado pela aplicação da dita “equivalência estrutural ou dinâmica”. Por isso, pediu que as traduções “interpretativas” fossem evitadas e que as literais fossem favorecidas.
Foi uma decisão baseada num diagnóstico e numa argumentação não partilhada por muitos padres, teólogos, bispos e – sobretudo, e surpreendentemente – por boa parte das Conferências Episcopais do mundo. Por isso foi respondido e ignorado, apesar de que algumas Conferências Episcopais o aplicassem sem maiores problemas: Espanha, Hungria, Estados Unidos e algumas da América Latina.
Com a carta dirigida ao presidente da Conferência Episcopal Alemã em abril de 2012, Bento XVI tentou superar essa relutância. E se era verdade que o fazia em tom que procurava convencer, não era menos verdade que se tratava de uma decisão que seria exigida pela Cúria Vaticana a partir de sua publicação.
Bento XVI lembrou, em primeiro lugar, como foi informado pelo Presidente da Conferência Episcopal Alemã, em sua visita de 15 de março de 2012, que ainda não havia consenso entre os bispos de língua alemã sobre a tradução das palavras ‘pro multis’. Houve bispos (a maioria dos austríacos e uma boa parte dos alemães) que queriam manter o ‘por todos’ na nova edição do “Gotteslob”, apesar do fato de a Conferência Episcopal Alemã ter concordado majoritariamente com ‘por muitos’, como desejava a Santa Sé.
Em seguida, ele apresentou seu compromisso de falar por escrito sobre este importante assunto para “evitar uma divisão no lugar mais íntimo de nossa oração”.
“Nos anos 1960 – recordou Bento XVI – quando o missal romano, a cargo dos bispos, teve que ser traduzido para o alemão, havia um consenso exegético sobre o fato de que o termo 'os muitos', 'muitos', em Isaías 53, 11s., era uma forma expressiva hebraica de indicar o todo, 'tudo'. A palavra 'muitos' nos relatos da instituição de Mateus e de Marcos foi, portanto, considerada um semitismo e teve que ser traduzida por ‘todos’. Isso também se estendeu à tradução do texto latino, onde ‘pro multis’, por meio dos relatos dos Evangelhos, se referia a Isaías 53 e, portanto, teve que ser traduzido como ‘por todos’”.
No entanto, prosseguia o papa Ratzinger, esse consenso exegético desmoronou. Já não existia.
É verdade que nos tempos imediatamente posteriores ao Concílio se entendia que a Bíblia e os textos litúrgicos estavam tão distantes do mundo e do pensamento das pessoas que, mesmo traduzidos, continuariam incompreensíveis por todos os que participavam das funções litúrgicas. Portanto, considerou-se necessária a tradução de interpretação para amenizar as dificuldades e aproximar a celebração. Eles queriam ir para o substancial, deixando a preocupação com a literalidade em segundo plano. Este tem sido um critério de tradução justificado até hoje.
Não obstante, Bento XVI continuou em primeira pessoa, ao pronunciar as orações litúrgicas em várias línguas, observou “que às vezes quase não há semelhanças entre as diferentes traduções, e que o texto comum em que se baseiam é, muitas vezes, apenas distantemente reconhecível”. Este problema vem acompanhado de “banalizações que constituem perdas reais”. Por isso, a experiência me diz, a cada dia com maior clareza, “que, como orientação para a tradução, o princípio da correspondência, não literal, mas estrutural, tem seus limites”. Obviamente, esta situação não me leva a prescrever um “verbalismo unilateral”, mas a colocar em primeiro plano (conforme a Instrução “Liturgiam authenticam”) “o princípio da correspondência literal”.
Faço isso porque quero que a Palavra sagrada surja “o mais possível por si mesma, também com seu afastamento e com as perguntas que isso acarreta”. E porque é necessário recordar a competência da Igreja no “trabalho de interpretação para que – dentro dos limites do nosso respectivo entendimento – chegue até nós a mensagem que o Senhor nos destinou”.
Este foi o diagnóstico pessoal do papa J. Ratzinger para enquadrar a decisão da Santa Sé para que na nova tradução do missal a expressão ‘pro multis’ fosse traduzida como tal, sem ser interpretada. “A tradução interpretativa ‘por todos’ deve ser substituída pela tradução simples ‘por muitos’”.
Assumo – continuou o Papa – que há pessoas para quem esta tradução questiona que Cristo morreu por todos ou que se perguntam se a Igreja não está destruindo o patrimônio do Concílio e modificando sua doutrina. Daí a importância de uma catequese que explique o que está em jogo nesta decisão e que realce, de modo particular, “a universalidade da salvação que chega” em Jesus.
No centro desta catequese, deve-se ter em mente que “na sociedade de hoje temos a sensação de que não somos ‘muitos’, mas muito poucos, uma pequena massa que continua diminuindo. E, sem embargo, somos ‘muitos’: ‘Depois disso, eu vi uma multidão enorme, impossível de contar, composta por pessoas de todas as nações, famílias, povos e línguas’ (Ap. 7, 9). Somos muitos e representamos a todos. Portanto, as palavras ‘muitos’ e ‘todos’ caminham juntas e se referem umas às outras em responsabilidade e promessa”.
Os debates (antes e depois) desses pronunciamentos do Papa e da Congregação para o Culto Divino foram coletados por Francesco Pieri (professor de Grego Bíblico e Patrologia na Faculdade Teológica de Emilia-Romagna) em um artigo publicado em Il Regno – Attualità 10 (2012) 297-301 (“Per una moltitudine. Sulla traduzione delle parole eucaristiche”) e expandido em um livro (Dehoniana Libri, 2012).
No livro citado, Francesco Pieri recordava – a meu ver, acertadamente – que, por trás do problema linguístico, havia outro, de enorme relevância teológica e pastoral: na tradução proposta pelo Papa e pela Cúria Vaticana havia o risco de propiciar uma compreensão gnóstica, calvinista ou jansenista da vontade salvífica de Deus, uma vez que poderia estar implícito que havia pessoas que foram excluídas, pois a universalidade da salvação não foi devidamente destacada.
Esta foi a razão pela qual muitas conferências episcopais nacionais relutaram em receber a decisão adotada por Roma ou de se fazerem de surdas. Especificamente, a Igreja italiana, apesar de ter um episcopado muito moderado e bastante alinhado com a cúpula do Vaticano, também não aceitou a ordem. Assim, por exemplo, Bruno Forte (Arcebispo de Chieti-Vasto), falando na Assembleia Geral da Conferência Episcopal Italiana (novembro de 2010), argumentou que a alternativa ‘por muitos-por todos’ era teologicamente fundamentada, mas sutil demais para explicar às pessoas. Por isso, declarou-se favorável a “manter a tradução em uso”, ou seja, ‘por todos’.
Uma vez que a proposta do Vaticano foi posta em votação, apenas 11 dos 187 bispos presentes optaram pela fórmula ‘por muitos’, sendo uma anedota menor que o Arcebispo de Chieti-Vasto se manifestou dois anos depois (“Corriere della Sera”, 26 Agosto de 2012) a favor de ‘por muitos’ porque lhe parecia que embora fosse verdade que ‘por todos’ enfatizava o destino universal da salvação oferecida em Cristo, o ‘por muitos’ era mais sensível à livre escolha de cada um e, portanto, mais respeitoso com a dignidade das pessoas.
Em todo o caso, a decisão de J. Ratzinger reabriu diversos debates referentes não só à entidade da questão dogmática em jogo, mas também ao procedimento seguido e à questionável idoneidade da decisão papal.
O método usado. O Conselho reconheceu às “autoridades eclesiásticas territoriais” a competência sobre a tradução e adaptação dos textos litúrgicos, correspondendo a Santa Sé ao seu consentimento, depois de feitas as observações e correções que considerou pertinentes (SC 40).
No entanto, Bento XVI escolheu o caminho oposto, como, aliás, o fizera em muitas outras ocasiões e por diversos motivos (e K. Wojtyla antes dele): ia do centro para a periferia, minando, assim, a reciprocidade entre o primado da Sé Romana e a colegialidade dos sucessores dos apóstolos colocados à frente das Igrejas, verdade proclamada pelo Vaticano II.
Como se vê, foi uma decisão (e um modo de proceder) que pôs em risco a necessária complementaridade entre os princípios “petrino” e “paulino” e que desvalorizou o patrimônio apostólico da Igreja de Roma e a estrutura profunda do catolicismo.
Uma decisão de idoneidade duvidosa. Mas, além disso, a aposta do papa J. Ratzinger pela tradução literal ignorou ou não levou em conta que a expressão ‘por muitos’ ressoava de forma diferente em nossos ouvidos e nos dos destinatários dos Evangelhos de Marcos e Mateus. Assim, por exemplo, havia línguas em que ‘muitos’ se opunham, em alguns casos, a ‘poucos’ e, em outros, a ‘todos’. Houve até expressões em que poderiam ser equivalentes como ‘não poucos’ ou ‘não todos’.
Mas havia mais. F. Pieri lembrou, citando o estudioso bíblico Albert Vanhoye, que “a palavra hebraica ‘rabbim’ significa apenas que, de fato, existe ‘um grande número’, sem especificar se corresponde ou não ao todo”.
A surpreendente posição do papa J. Ratzinger evidenciou, mais uma vez, que o problema doméstico número um da Igreja Católica permaneceu (também em seu pontificado) o da colegialidade de todos os bispos no governo eclesial presidido, é claro, que, em um modelo de comunhão, pelo sucessor de Pedro. E, com ele, a inadmissibilidade (sendo muito branda) de impor uma recepção pessoal e (contra)reformista ao resto da Igreja Católica ou, pelo menos, à grande maioria do povo de Deus.
Felizmente, isso é o que começou a ser corrigido no pontificado de Francisco, ainda que alguns (montados em suas “verdades inegociáveis”) lhe neguem o pão e o sal. Goste ou não, ainda há um longo caminho a percorrer na recepção do Vaticano II. Também em relação a uma primeira recepção da liturgia, que, no vernáculo e ‘por todos’, há muito tempo dá sinais – obviamente evidentes – de esgotamento e insignificância e, portanto, de uma urgente e nova reforma, isto é, de uma (contra)reforma como superação daquela liderada por Paulo VI e nos antípodas, claro, daquela defendida por J. Ratzinger.
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Por todos ou por muitos? A contrarreforma litúrgica de Bento XVI. Artigo de Jesús Martínez Gordo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU