01 Setembro 2020
“O mais importante na questão litúrgica da tradução do ‘pro multis’ é a pergunta teológica e soteriológica de fundo: quem e como é este Deus que nos salva a todos /a muitos por Jesus?”, escreve o frei Michael Patrick Moore, doutor em teologia e professor da Universidade Católica de Córdoba, Argentina, em artigo publicado por Religión Digital, 31-08-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Suponhamos que, por um momento e em uma merecida pausa de seu trabalho criativo e recriador, o Pai Eterno decida se conectar à internet – ou vive hiperconectado? – para ver o que seus homens (da igreja) estão fazendo. Leitor assíduo do Religión Digital, algumas notas/postagens desses últimos dias chamam a sua atenção.
Ele vê tudo simultaneamente, em um eterno presente, sem ter que recorrer à história como precisamos fazer os mortais comuns, onde falam de uma nova tradução do missal italiano, que reflete uma discussão intraeclesial de mais de meio século (na última edição do problema). É, em primeiro lugar, a tradução mais correta do latim dos antigos missais para as palavras ‘pro multis’ que aparecem na liturgia eucarística, no momento da consagração do vinho. Não tendo estudado teologia ou fluente em latim – não há registro de que o Pai Eterno tenha frequentado alguma das Pontifícias Universidades para fazer estudos superiores – e não entendendo muito de que se trata, decidiu, por intercessão do Espírito Santo, chamar o seu Filho, para ver se consegue lançar alguma luz sobre o assunto. E então, em um diálogo intra-trinitário fluido, o Pai lhe pergunta se ele havia dito ‘pro multis’, ‘pro vobis’ ou ‘hyper pollôn’, em qualquer caso; especificamente, se em sua intencionalidade ele quis dizer que iria derramar seu sangue ‘por muitos’ ou ‘por todos’.
Após uma pausa comemorativa, o Segundo dos Três responde que não falava latim ou grego – pelas razões socioeconômicas da Encarnação – mas aramaico. E que, além disso, depois de tanto tempo, não lembrava com milímetros de exatidão as palavras ditas naquela noite memorável e emocionante, pelas quais não soube dizer se as que hoje se conservam no texto sagrado são as que saíram de sua boca ou pertencem à memória interpretativa de alguns de seus companheiros seguidores. Lamentando não ter podido elucidar demais as perguntas do Pai, o Filho se retira, por intercessão do Espírito Santo, para continuar conversando sobre poesia e profecia com o recém-chegado ex-bispo de São Félix de Araguaia. Um pouco menos onisciente, mas não mais preocupado com isso, o Pai se desconecta da rede e vai atrás do Filho para encontrar pessoalmente o famoso Pedro Casaldáliga.
Não tenho a certeza se o diálogo intra-trinitário que acabo de transcrever foi real ou o imaginei, vítima do choque e da perplexidade que também me causaram ler e tentar compreender estas questões – e que saibam que fui a uma Pontifícia Universidade para estudar teologia... embora eu tenha voltado com mais perguntas do que respostas.
Deixando de lado – pelo menos por um momento – as ironias, como crente e como teólogo a questão levanta esses pontos de reflexão que, sem dúvida, mereceriam um desenvolvimento argumentativo justificado. Espero que esta enumeração sirva pelo menos:
Existe um problema complexo de tradução. A formulação final em espanhol – ou italiano – é a tradução do latim, que traduziu o grego, que traduziu palavras faladas em aramaico. E, independentemente do que digam as comissões litúrgicas, toda tradução sempre tem alguma interpretação. Como traduzir o grego ‘hyper pollôn’? A maioria dos estudiosos afirma que esta expressão obedece a um semitismo inclusivo: não significa ‘muitos’, mas ‘todos’. Comparando com outros textos, eles destacam que na Escritura ‘por muitos’ é usado como equivalente a ‘por todos’. A razão para essa troca entre ‘muitos’ e ‘todos’ é porque o fundo semítico da palavra ‘polloi’ (muitos) é o termo hebraico ‘rabbim’ e o aramaico ‘saggi'in’, que significa ‘muitos’, mas não exclui a totalidade – como em castelhano – mas são equivalentes a ela.
Os textos evangélicos que narram esses eventos tal e como os temos hoje parecem refletir mais as celebrações litúrgicas da Igreja primitiva (segunda metade do primeiro século) do que a Última Ceia de Jesus. Não é possível alcançar a ipsissima verba Iesu. Nem mesmo a ipsissima gesta Iesu. A atual pesquisa histórica sobre Jesus é mais modesta e está “satisfeita” em atingir a ipsissima intentio Iesu. Visto como um todo e da totalidade da pregação e ação de Jesus, acho que é evidente que sua vida – seu sangue derramado – foi dado para a salvação de todos os homens (muito provavelmente, na vida de Jesus houve um processo gradual de abertura e universalização com relação aos destinatários de sua missão).
Não quero ser redutor na minha abordagem, mas parece-me que, em última análise, o que está em jogo e penso que é o mais importante sobre o assunto é a imagem de Deus que está de fundo e ao mesmo tempo se configura através da discussão litúrgica. Ou seja, a questão teológica e soteriológica: quem é esse Deus que salva a muitos ou por completo / em Jesus? Claro, com isso, espiamos o Mistério final e só podemos balbuciar respostas. Neste ponto, a minha posição é de princípio – e de fim: Deus é Aquele que nos ama sempre e a todos. Isso se manifesta de maneira particular e definitiva na vida, morte e ressurreição de Jesus, na qual se oferece a plenitude da revelação e da salvação. Deus se revela salvando-nos em Jesus e nos salva revelando-se nele de uma forma insuperável. Por parte do homem, a liberdade de aceitar ou não o que é oferecido permanece um desafio.
Se o que, em última instância, se tenta definir é a intenção salvadora de Deus (revelada em Jesus Cristo), quem pode reivindicar definitivamente o direito à última interpretação? Pode ser reservado para as diferentes opiniões e aparentes disputas entre os papas: Paulo VI, João Paulo II, Ratzinger-Bento XVI e Francisco? Saliento apenas que nisso, como em tantas questões polêmicas, ainda há um longo caminho a percorrer para uma reflexão mais sinodal e conjunta entre o magistério hierárquico, os teólogos e o sensus fidelium (cf. DV 8).
Imaginemos, por fim, que, um pouco mais tarde, depois de uma agradável conversa com dom Pedro, o Pai Eterno – antes de dormir – se reconecte à internet e leia o que acabei de escrever. Ele certamente sentirá que ainda não entendeu nada. É compreensível e não preocupante, porque a teologia é para nós. Nesse caso, talvez siga navegando mais um pouco neste portal, veja a seguinte charge e a compartilhe como mensagem de encerramento de tudo isto, com um leve e carinhoso sorriso.
Charge: Cortés | Religión Digital
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O Pai eterno, o ‘pro multis’ do Filho e a internet do Espírito. Artigo de Michael P. Moore - Instituto Humanitas Unisinos - IHU