"Historicamente, o direito e a antropologia são construídos na mentalidade moderna tendo como batuta o racionalismo do iluminismo do século XVIII que molda nos dias atuais comportamentos das sociedades que se edificam sob a influência positivista e relativista numa espécie de sequencia e de convivência às vezes paralelas por serem paradoxais e outra vezes concomitantes, pois se cruzam em transversais de diferenças, porém, complementares no sentido holístico da ocidentalidade".
O artigo é de José Dalvo Santiago da Cruz, doutor em linguística, mestre em Educação, especialista em Antropologia na Amazônia e graduado em Filosofia. É amazonense de Humaitá/Am, tem 56 anos de idade e, atualmente, está aposentado como professor após ter atuado em colégios, faculdades e universidade públicos e particulares em Manaus e em outras cidades do interior do Estado do Amazonas.
Este artigo discute possíveis interlocuções da antropologia com o direito por meio da metodologia bibliográfica porque não se trata de pesquisa de campo, portanto, limitando-se a discutir conceitos, categorias, postulados filosóficos e teorias da literatura das citadas áreas de conhecimento. O referencial teórico foi o do funcionalismo sociológico e antropológico cunhado respectivamente por Durkheim (2002) e Malinowski (1978). No direito, adotou-se o postulado do inglês Lionel Hart (1976) e do iluminista francês Barão Charles de Secondat Montesquieu (2000). Além de enfoques específicos das áreas em pauta, também se evocou a teoria do reconhecimento do canadense Charles Taylor (2000) por sua pertinência na abordagem da construção histórica e da participação de minorias sociais no Estado democrático de direito contemporâneo. O texto está composto de três abordagens afins e interarticuladas, a saber: a contextualização histórica na qual se realiza uma abordagem descritiva crítica da construção da antropologia e do direito contemporâneos com inflexões saídas do positivismo retilíneo evolucionista para o relativismo cultural sob a batuta das ciências da natureza. Em seguida, se apresenta brevemente categorias epistemológicas da antropologia e do direito advindas do funcionalismo pautado na neutralidade científica e na imparcialidade forense. Na última seção, se faz uma análise transversal entre o direito e a antropologia acerca da possibilidade de interlocuções epistemológicas e pragmáticas na conjuntura social com eficácia para atender construir racionalmente a “paz perpétua” proposta por Kant. Na conclusão se diz a respeito da possibilidade de interlocução num tom imperioso para o agente forense porque sua necessidade de entender os fenômenos sociais fomentados por lógicas culturais analisadas e teorizadas pelo etnólogo sob pena de sua prática se avizinhar à obsolescência tornando-se, assim, ineficaz.
A etologia contemporânea teoriza algumas propriedades comuns entre os seres vivos animais e vegetais e, dentre tais condições em tom imperiosas, estão a interdependência para a procriação e a sobrevivência desses seres denotando, assim, a condição de vida social que, no caso humano, produz a hominização por meio da cultura e da História de casa sociedade em sua respectiva matriz civilizatória.
Este artigo trata de interlocuções entre a antropologia social e a prática forense na civilização ocidental em contraponto a ontologias não ocidentais a exemplo das indígenas da Amazônia legal onde não há Estado e, portanto, inexiste a prática forense nos moldes ocidentais norteado na seguinte questão: sendo o Brasil um país multicultural e composto não somente por culturas e etnias diversas, mas por civilizações diferentes, como a prática forense dos iguais perante a lei se relaciona nessa conjuntura socialmente desigual e étnico-culturalmente diversificada?
A discussão se faz pertinente e substancializa-se de uma devida importância pelo próprio status quo sociocultural e histórico diversificado brasileiro que também contempla em seu ordenamento legal em vigência sociedades de culturas não ocidentais requerendo para tanto subsídios teóricos e conceituais antropológicos com propósitos de enriquecimento e de eficácia na ordem pragmática forense.
Ou seja, mesmo com objetos e em sentidos diferentes, o direito enquanto área de conhecimento acadêmico e prática estatal situado no poder judiciário tratam os diferentes em uma equidade por força de sua própria natureza etimológica do jus enquanto o reto. Porém, ao longo da construção da própria mentalidade ocidental, o retilíneo inflectiu por conta da Física precisamente a partir de 1908 quando da publicação do primeiro artigo de Albert Einstein acerca da relatividade entre o espaço e o tempo mudando a maneira ontológica ocidental e, obviamente, influenciando as demais áreas de conhecimento que, no caso da antropologia, a partir dos anos 1920 se vale da incipiente (posteriormente decisiva) teoria funcionalista britânica cunhada pelo polonês naturalizado inglês Bronislau Malinowski (1884-1942) denominada de trabalho de campo, ou pesquisa participativa, na qual ele descreve a necessidade de o pesquisador entrar na vida do pesquisado e daí se depara que cada sociedade tem a sua própria cultura em decorrência da sua própria contingência histórica (e humana) desfazendo, assim, a retilinearidade adensada pelo positivismo e até então aceita como válida para explicar a evolução humana por meio do que se convencionou evolucionismo social embasado nas dicotomias desenvolvimento X atraso, progresso X arcaico, moderno X medievo.
Por considerar a hominização resultados contínuos da História e da cultura, adotou-se a teoria do reconhecimento de autoria do canadense Charles Taylor (2000) por transitar nas duas áreas de conhecimento aqui consideradas cenários em diálogos (direito e antropologia) na incondicional produção histórica seguindo os passos do psicólogo filósofo francês Michel Foucault (1999, p. 507) em que pertinentemente explana a respeito da História como a mãe de todas as ciências porque é nela que os fatos em conotação de eventos se dão na substância da ontologia humana no sentido institucional e epistemológico, ou seja, aqui se diz que é por meio da antropologia e de suas epistemologias afins (sociologia, psicanálise, linguística) que se pode aproximar do fenômeno social encaixado na cultura que, por sua vez, se faz na História que condiciona o humano à contingência.
Ou seja, neste artigo, o direito é tratado na perspectiva da construção histórica concebido sob a influência do iluminista Montesquieu para quem “A justiça e a injustiça não fazem parte do mundo natural” (2002, p. 23). Ou seja, a concepção de direito é histórica e antes da História há a moral e sobre ela o homem se hominizou construindo culturas e delas criou ideologias fomentando, assim, as sociedades de classes e de estratos sendo obrigado a criar o ente chamado Estado para organizar, disciplinar e reverter erros de comportamentos em exemplos para a necessária e imperiosa harmonia na linguagem kantiana chamada de “Paz Perpétua”.
A metodologia foi a bibliográfica porque a discussão se limita a abordagens conceituais baseadas em postulados e em teorias antropológicas e do direito num cunho filosófico por força do próprio propósito de verificar a possibilidade de interlocução entre as supracitadas áreas epistemológicas que, grosso modo, bebem em fontes comuns da filosofia desde os gregos (Aristóteles, especificamente) até os contemporâneos a exemplo do já citado Taylor, Foucault e de psicanalistas como o Freud e Jacques Lacan que tratam de aspectos da natureza humana nas culturas e nas civilizações pertinentes e funcionais à antropologia social na figura da etnologia e do direito na prática da criminologia crítica e de outras áreas tal como a da violência doméstica que pode ter a sua fomentação irreversível na matriz ontológica ocidental patriarcal cristã que, com a modernização e a conquista de direitos das minorias [1] nos estados democráticos, a mulher se tornou independente indo de encontro àquela estrutura machista de dependência dando outro termo funcional ao homem numa equidade com a mulher nos dias atuais
Para efeitos didáticos, o texto está composto de três seções de conteúdos complementares em subsequência a fim de construir a discussão em seus propósitos de abordagens históricas e culturais no sentido antropológico do direito, a saber: aspectos históricos na qual se faz uma breve abordagem da construção da mentalidade e da civilização ocidental, aspectos epistemológicos do direito e da antropologia e, por último, interlocuções entre ambos.
À guisa de conclusão se chegou à possibilidade de diálogos funcionais da antropologia com o direito tanto no sentido epistemológico como no pragmático porque ambos têm por finalidade a compreensão de fenômenos sociais para aplicá-la em seus respectivos expedientes práticos em orientações de melhorias da vida social e no combate a comportamentos impróprios do convívio social tanto na dimensão legítima (cultural) como na legal.
A humanidade é diversificada e se percebe como tal desde tempos remotos descritos por Heródoto. Porém, suas diferenças culturais passam a ser objeto de estudo a partir boom comercial da Grécia clássica, por volta do século VI a. C., que atraiu para a região da Ásia Menor e do mediterrâneo diferentes culturas levando os filósofos pré-socráticos a se perguntar acerca da origem da pluralidade física e cultural humana resultado na descoberta (ou criação) do logos distintamente da narração mítica, ou seja, enquanto o primeiro se constitui pela pergunta entre contraditórios compondo o silogismo a segunda somente descreve sem tem crítico.
Daí, a História humana se fez por meio da crítica adensando a razão como instrumento de construções epistemológicas resultado nas ciências do século XVII e nas revoluções do seguinte especificamente na revolução francesa (1789), na industrial inglesa (1760-70) e na da independência dos Estados Unidos da América (1776) substanciando a nova morfologia social do ocidente pautado em classes sociais e no Estado civil desvinculando-se, assim, da moral cristã no sentido clerical tornando-o ente secular e laico inaugurando, assim, a instituição dual econômica e política composta da tri-participação proposta pelo iluminista Montesquieu ainda na revolução que iniciou a Era contemporânea com a queda da monarquia déspota dando lugar ao que se denominou de Estado democrático numa alusão à Grécia nos tempos clássicos.
Assim, a revolução de 1789 contribui com a modernidade contemporânea por meio da constituição estatal tripartite (executivo, legislativo e judiciário), a industrial inglesa impõe a morfologia de classe e de estratos sociais e a independência estadunidense com a premissa da liberdade como categoria imperativa num Estado em concomitância com as necessidades e exigências dos segmentos da sociedade em geral.
A partir da compreensão histórica da formatação do Estado democrático pode-se perceber as construções sociais e culturais no ocidente já com o Estado como constituinte político com base econômica no liberalismo contemporâneo dos iluministas do século XVIII num paradoxo em que o economista escocês Adam Smith (1723-1790) propunha a mínima participação do Estado na trivialidade econômica ao mesmo tempo em que a burguesia crescia em importância na economia e se infiltravam na participação nas próprias decisões políticas, tal como se experimenta nos dias atuais.
De cunho filosófico, a liberdade é o bem maior da humanidade não somente no sentido social, mas – sobretudo – no existencial, pois o Estado proíbe até o suicídio considerando detentor da liberdade dos indivíduos condicionando-a aos que bem se comportarem sob o crivo da moral, da legalidade e da legitimidade, portanto, o direito que trata de ordenamento jurídico tem como seu objeto específico a liberdade e não propriamente a edificação de leis e suas conexões no sistema jurídico, ou seja, todos expedientes circunscritos no direito em suas diferentes abordagens, construções e práticas circunscrevem-se na liberdade ou na perda dela como pena por meio do bolso, embargo ou segregação.
Em concomitância, como dito acima, a sociedade moderna contemporânea se configura, se adensa e se constitui em classes e em estratos forçando a desigualdade como complementação da diversidade étnico-cultural cabendo ao Estado contemplar na dimensão legal a todos baseando-se no afixo latino do jus fazendo-se necessárias alguns esclarecimentos teóricos a respeito da composição social, cultural, étnica e de minorias sociais cabendo, então, à antropologia a construção e a cunhagem desses conceitos que, com tais, são historicamente construídos nas realidades dos grupos sociais.
Voltando um pouco, no século XVIII, a humanidade ocidental se vinculou ao projeto de modernidade que tinham (e tem ainda) a sua orientação racional nas ciências advindas do logos dos pré-socráticos. Daí, por retomada, os modernos utilizaram o rigor da filosofia social para entender a degradação social da época com propósitos pragmáticos de reconstruir a sociedade no novo molde democrático, porém, com rigor científico eficaz análogo ao das ciências biológicas e exatas protagonizado pelo francês Auguste Comte que havia estudado engenharia e medicina originando, assim, a sociologia saindo então do postulado filosófico social para a teoria científica acerca dos fenômenos da sociedade do século XVIII, sobretudo, a francesa que se encontrava em reconstrução.
A ciência criada por Comte tem consonância com o iluminismo de caráter universal com funções ideológicas contextualizados nas políticas mercantilistas da época como preâmbulo do imperialismo bélico funcional da hegemonia econômica e política que persistiu até os dias atuais valendo ressaltar o período da guerra fria (1947-1991) com a queda do muro de Berlim que fomentou movimentos sociais protagonizados por minorias sociais sedimentados desde os anos 1950 que influenciaram sobremaneira inflexões políticas de consequências em ordenamentos jurídicos contemporâneos por meio do que Taylor (2000) denomina de políticas de reconhecimento.
Algumas correntes da política contemporânea giram em torno da necessidade, por vezes da exigência, de reconhecimento. Pode-se dizer que essa necessidade é uma das forças propulsoras dos movimentos políticos nacionalistas. E a exigência vem para o primeiro plano, de uma série de maneiras, na política contemporânea, em favor de grupos minoritários ou "subalternos", em algumas modalidades de feminismo e naquilo que se chama política do multiculturalismo.
A exigência de reconhecimento assume nesses casos caráter de urgência dados os supostos vínculos entre reconhecimento e identidade, em que "identidade" designa algo como uma compreensão de quem somos, de nossas características de difamatórias fundamentais como seres humanos. A tese é de que nossa identidade é moldada em parte pelo reconhecimento ou por sua ausência, frequentemente pelo reconhecimento errôneo por parte dos outros, de modo que uma pessoa ou grupo de pessoas pode sofrer reais danos, uma real distorção, se as pessoas ou sociedades ao redor deles lhes devolverem um quadro de si mesmas redutor, desmerecedor ou desprezível. O não-reconhecimento ou o reconhecimento errôneo podem causar danos, podem ser uma forma de opressão, aprisionando alguém numa modalidade de ser falsa, distorcida e redutora (TAYLOR, 2000, p. 241).
A política de reconhecimento vem como instrumento de ordenamento jurídico na conjuntura multicultural contemporânea que somente se faz presente em Estados e sociedades democráticas porque nelas as minorias têm espaço e voz de reivindicarem direitos históricos baseados em suas tradições como direitos inalienáveis a exemplo do que ocorreu no Canadá em 1971 em que o Estado reconheceu aquela sociedade multicultural em resposta a reivindicações de minorias sociais.
No Brasil, a constituição de 1988 reconheceu direitos dos povos indígenas à cultura materna e outros predicativos como escola diferenciada, medicina tradicional e ocupação do território tradicionalmente ocupado por seus ancestrais.
Porém, esses reconhecimentos não foram postos numa trilha positivista e nem de ordem natural, pois se deram como resultado de movimentos sociais de minorias que se adensaram em torno de agendas adversas das políticas adotadas no auge do liberalismo econômico político contra a guerra do Vietnã (1955-1975) e contra a guerra fria (op. cit.) demonstrando a presença grega por meio da luta de classes e a guerra pela hegemonia política com interesse em mercados consumidores no mundo contemporâneo: o logos como premissa do contraditório, portanto, da busca pelo poder como relação na concepção foucaultiana.
É com essas inflexões que o mundo sai das esteiras do positivismo evolucionista e unilateral para a pluralidade concomitante com a imposição social ideológica do Estado democrático de direito após a 2ª guerra mundial por meio da criação da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945 e da declaração universal dos direitos humanos em 1948 como paradigma do modelo político estatal da modernidade.
Ou seja, o direito é construção histórica, os jus-contratualistas do século XVIII se opuseram aos jusnaturalistas renascentistas influenciando o Estado, suas políticas e relações entre os poderes e a sociedade civil em sua composição multissegmentária e plurilateral sedimentado até os dias atuais e, mesmo com problemas circunstanciais porque fazem parte da contingência, perfaz e sobrevive em seus lastros adensados e firmes resistentes às fricções das políticas compostas de contraditórios e de divergências ideológicas.
Ou seja, a civilização ocidental é construída em diferentes Eras, mas tem duas matrizes cientificas e ideológicas básicas e molares que perduraram e atuam até os dias atuais, a saber o positivismo de orientação evolucionista e linear em contrapartida e seguido do relatividade que influenciou o relativismo cultural e ideológico que sustenta a diversidade humana em sua construção ontológica.
Na marcação entre as duas vertentes científicas e ideológicas acima mencionadas, torna- se factível perceber que elas de fato estão presentes nos dias atuais tanto na perspectiva cientifica como na ideológica que influencia aquela primeira definindo e sedimentando a maneira de pensar da sociedade, portanto, novamente evocando Foucault (op. cit.), a produção científica é ideológica não restando nada que não sofra influência ideológica, inclusive o Estado em seus três poderes e esferas.
Etimologicamente, episteme deriva do grego que significa conhecimento que semanticamente recebe o neologismo de teoria do conhecimento na filosofia como uma corrente filosófica que analisa criticamente a ciência em sua essência cognitiva, SUS métodos e metodologias, além de sua funcionalidade em relação às demandas sociais ao longo da construção humana ocidental.
A antropologia se ocupa da cultura como sistema simbólico que molda os indivíduos em espaço coletivo em suas maneiras de pensar e de se comportar. Nesse sentido, cultura é a culinária, o mito, a religião, a economia, a educação, a política, o gênero, as artes. A cultura é a maneira de ser de cada grupo social que se constroem em movimentos de heranças e de influências externas processadas na contingência histórica de cada grupo.
Já o direito trata da liberdade individual e coletiva dos indivíduos definidas por meio racional político baseado na legitimidade do Estado que constrói a legislação em concomitância com reivindicações sociais homologando institutos de proteção da sociedade em geral. O direito, portanto, é uma área de conhecimento e prática estatal de atuação sobre e em concomitância com a sociedade em seus diferentes segmentos.
Assim, enquanto a antropologia trata do comportamento humano em sociedade na dimensão singular, o direito trata do comportamento humano em sociedade no geral, de modo impessoal não personalizando os agentes em condição de réu, de julgador, de acusador e de defensor. Por conseguinte, ambas atuam em sentidos opostos, pois enquanto a antropologia parte do singular para a teorização de ordem mundial, o direito trata do geral da lei para todos de forma igualitária, ou seja, do geral para o particular.
Embora sejam duas perspectivas epistemológicas paradoxais, o direito e a antropologia pragmaticamente se convergem na encruzilhada do ser humano porque o primeiro se faz na cultura e a segunda se ocupa da descoberta das lógicas que movem a cultura enquanto sistema simbólico [2].
A antropologia é conhecimento prático construído na convivência com os indivíduos em suas trivialidades e o direito também é advindo de fenômenos sociais situados culturalmente, portanto, cabe ao agente do direito perceber minimamente as lógicas culturais para entender o que é normal ou anormal do ponto de vista da cultura que delimita a fronteira entre o legítimo e o legal.
Nesse sentido, o filósofo inglês Lionel Hart (1996) sugere em suas normas primárias e secundárias relações pelas quais o direito se distancie da moral que é prática emocional e o agente da lei não pode agir emocionalmente sob pena de comprometer a sua ação de defesa, de acusação e de julgamento tendo, portanto, a razão como sua ferramenta de trabalho na seara da imparcialidade que o cientista social usa na nomenclatura da neutralidade ideológica.
Nesse ínterim, a antropologia sugere ao direito o seu instrumento de trabalho que é a alteridade que se constitui da percepção de si por meio do outro culturalmente diferente, portanto, ao se perceber por meio do outro o agente do direito pode perceber que o ilícito é culturalmente diferente, mas que nem assim faculta ao réu o direito de agir ilicitamente tal como o caso de um índio que pode alagar ter cometido um assassinato porque a sua cultura permite distintamente da lei brasileira que o proibi e configurando-o crime.
Ora, é o caso do laudo antropológico [3] que dirá se o assassinato é algo danoso na cultura materna do réu, mas que deve prevalecer a lei brasileira, pois como tutelados, os índios são submetidos ao ordenamento jurídico nacional, pois moram dentro do território brasileiro, embora tenham o direito de viver em sua cultura materna.
Outro caso de relevância no diálogo entre antropologia e direito é o do infanticídio que se trata do sacrifício de um dos gêmeos no momento de seu nascimento praticado em algumas culturas indígenas no Brasil tendo em seu contraponto a configuração de crime triplamente qualificado que consiste do assassinato de criança, incapaz e sem defesa, porém, o artigo 231 da CF/88 diz que os índios têm o direito de viverem em suas culturas maternas deixando um nó a ser normatizado por meio de lei complementar essa situação paradoxal entre o direito singular dos índios à sua cultura materna e o ordenamento jurídico brasileiro que criminaliza um ato cultural.
Assim, mesmo que a antropologia e o direito se constituam epistemologicamente por objetos e metodologias distintas, se encontram na pragmática da necessidade funcional da ciência em prol da sociedade, tal como Dewey, o pai do pragmatismo almejava ao procurar sistematizar o conhecimento acadêmico à medida das prioridades sociais evitando, assim, desperdício de tempo e acumulação de conhecimentos obsoletos adquiridos pelos estudantes enquanto na vida escolar e acadêmica.
Como área de conhecimento, a antropologia subsidia demais áreas pragmáticas a exemplo da forense que se serve de conhecimentos de outras ciências para eficazmente aplicar seus parâmetros de justiça a fim de afastar qualquer dúvida a respeito da consistência epistemológica da construção da lei e de sua respectiva aplicação.
Dizendo de maneira diferente e com enfoque prático, a influência da teoria da relatividade de Einstein subsiste nos dias atuais em tom forte e irreversível a constatar que a criminologia crítica se constitui em si numa área multidisciplinar valendo dizer que dentre as disciplinas que a constituem estão a antropologia e a psicanálise como instrumento de análise sobre lógicas invisíveis e leis imperiosas nas estruturas da cultura a exemplo que Freud (1996) diz em um de seus livros de que “A vida psíquica é uma contínua luta do inconsciente contra a civilização”, pois o inconsciente é pulsão e impulso e nele não há regras morais e nem legais, portanto, ao agente forense é fundamental que entenda lógicas e leis da inconsciência humana porque elas ditam normas na sociedade e é nesse entourage que tais agentes atuam.
Com a queda do muro de Berlim (1991) e o adensamento de movimentos sociais construídos desde os anos 1930, a perspectiva científica positivista sofreu reveses diante da latência relativista advinda da teoria da relatividade de Einstein descambando para a ideologia, portanto, a ideia evolucionista persistente no positivismo ideológico perdeu espaço para o relativismo cultural mantendo o valor sublime à vida e à liberdade intocável independentemente de cultura, pois tais premissas se encontram em qualquer percepção humana de existência.
Ou seja, o que se via como um mosaico estático retilíneo e evolucionista nas ciências e nas ideologias, caiu por terra com o advento de constatações da etnologia que dar suporte à antropologia social por meio da pesquisa participativa em grupos não ocidentais e, posteriormente, na antropologia de grupos urbanos em que a alteridade é um caminho para o entendimento humano, seja na trivialidade social no trabalho, na escola, na rua; seja no divã: a humanidade é diversificada em sua essência e cabe às ciências construir instrumentos e vias de entendimento para propor e promover convivências pacíficas ou ao menos minimamente conflituosas.
Nesse contexto está a prática forense como um dos instrumentos de amenização, de prevenção e de recuperação de danos por conta de prejuízos materiais e imateriais derivados de conflitos sociais transformados em litígio. Ou seja, como agente da ordem coercitiva estatal, o sistema forense deve se inserir na mentalidade relativista sob pena de suas ações se tornarem obsoletas e ineficazes, pois na sociedade atual pululam segmentos distintos em diferentes aspectos e reivindicações a exemplo da questão de gêneros, étnicas, religiosas, de classes, de categorias profissionais, de faixa etária, etc. cabendo ao Estado por meio de políticas públicas atender a essas reivindicações por meio de políticas de reconhecimento a fim de contemplar direitos universais das minorias sociais historicamente marginalizadas em decorrência da mentalidade positivista evolucionista de ações excludentes numa proposta falaciosa de “primeiro fazer o bolo e depois distribuí-lo” enquanto as pessoas não querem o bolo pronto, mas reivindicam suas participações em sua confecção.
Ao direito cabe uma formação humanista omnilateral a fim de evitar lacunas na percepção contemporânea da sociedade que é fomentada por lógicas culturais imateriais estudadas pelos etnólogos que as teorizam e numa proposição iluminista universalizam no sentido de acessibilidade às sociedades contemporâneas pretensamente aplicando o ideal da “paz perpétua” kantiana.
O que se trouxe neste breve texto foi uma singela discussão acerca de possíveis diálogos entre a antropologia e o direito, mais especificamente a respeito da funcionalidade da antropologia para a prática forense num mundo socioculturalmente diversificado num intento de fomentar a ação da tolerância por meio do entendimento do outro como diferente, mas não inimigo e nem ser de outra dimensão ontológica, pois a cultura é diferente, mas o ser continua sendo humano.
Historicamente, o direito e a antropologia são construídos na mentalidade moderna tendo como batuta o racionalismo do iluminismo do século XVIII que molda nos dias atuais comportamentos das sociedades que se edificam sob a influência positivista e relativista numa espécie de sequencia e de convivência às vezes paralelas por serem paradoxais e outra vezes concomitantes, pois se cruzam em transversais de diferenças, porém, complementares no sentido holístico da ocidentalidade.
A sociedade contemporânea é protagonizada por diferentes agentes com pautas distintas e, até, antagônicas cabendo ao agente forense a percepção panóptica das realidades, pois o social não é mais aquele objeto estático como postulava o positivismo a respeito do fato social independente, coercitivo e coletivo à Durkheim, pois além de ser externo e independente ele tem a pertinência weberiana da “ação social” em que o indivíduo se faz agente ativo na construção das realidades sociais e culturais por ser ideológico e, assim, agir em busca de consecuções de seus interesses juntamente com outrem que compartilham com seus ideais.
A seguir orientações de Hart (op. cit), cabe ao direito se manter distante dos valores morais, porém, a moral é parte da formação e da constituição humana, por conseguinte, ao agente forense precisa estar atento porque não pode se desvencilhar dela por completo, pois moral, cultura, ideologia e História compõem o amalgama sine quo non humano.
[1] As minorias devem ser compreendidas no contexto da expansão do poder do Estado-nação, o qual, hegemonizado por determinado grupo, não só define a cidadania, a história e a cultura de um país, como também impede que determinadas pessoas protagonizem a construção da comunidade imaginada nacional (Williams, 1989). O que está em jogo nesse contexto são relações de poder e não quantidades. Uma minoria corresponde a um coletivo que, mesmo majoritário, não detém a supremacia na história da conformação de uma coletividade mais abrangente. Em geral, as minorias precisam adaptar-se ou lutar por seus direitos em face dos que definem o ambiente econômico, jurídico-legal, político e cultural mais amplo. A consciência de que elas devem conquistar seu próprio espaço-cidadão é um dos fatos políticos mais ricos dos circuitos políticos globalizados (RIBEIRO, 2012, p. 219).
[2] Etimologicamente, símbolo significa ligação, liame, portanto, cultura é ideia na prática, é abstração na prática.
[3] A Procuradoria Geral da República, PGR, sentiu a necessidade de interagir com a Associação Brasileira de Antropologia, para que a ABA indicasse antropólogos para a realização de laudos antropológicos em questões judiciais envolvendo terras indígenas (LARAIA, 1994). Na gestão da Profª Drª Manuela Carneiro da Cunha, Presidente da Associação Brasileira de Antropologia (1986-1988), foi firmado um termo de cooperação, que mais tarde se transformou em acordo, para que os antropólogos sejam indicados pela ABA. Tem sido dada preferência aos antropólogos que têm titulação acadêmica e conhecem o grupo étnico a ser investigado (HELM, 2009, p. 4).
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