Por: André | 22 Janeiro 2012
O principal desafio que a humanidade enfrenta nos tempos atuais diante da crise multidimensional do capitalismo é a construção de uma nova civilização a partir da ativa participação das grandes massas populares, defende a filósofa argentina e educadora popular Isabel Rauber.
Não se trata de uma mudança de sistema, explica, mas de um desafio muito mais ambicioso que aponta para uma mudança substancial de modo de vida, o que “requer a constante transformação dos sujeitos da mudança” que se constroem “nas lutas e resistências concretas não apenas no plano territorial local, mas também global”.
Embora este processo necessite de uma longa transição, Rauber considera que “construir uma civilização que ultrapasse o que foi construído até agora não é tarefa de poucos nem de escolhidos; requer a participação de toda a humanidade, ao menos da maioria absoluta, e isto reclama a sucessão concatenada de processos histórico-concretos que vão abrindo canais para a participação em diversas dimensões, criando e embalando ao mesmo tempo novas práticas de inter-relacionamento humano no social, político, econômico e cultural. Neste sentido, os atuais processos de lutas sociais, e as experiências dos governos radicalmente transformadores, constituem laboratórios do novo mundo que podem nos ajudar a crescer coletivamente em saberes, caso formos capazes de dar seguimento e nos apropriar criticamente das experiências. Elas constituem, ao mesmo tempo, fontes de inspiração para a vida. E a bússola está no agir-pensar constante dos movimentos”.
Em conversa com o Observatório Sociopolítico Latino-americano na cidade de Buenos Aires, esta cientista social bate pé firme no ímpeto do agir que vêm protagonizando os movimentos sociais no despontar do século XXI, cujo eixo articulador é a luta pela vida. “Eles têm claro que – afirma – em seu estágio atual, a continuidade da lógica de produção e acumulação do capital ameaça toda a humanidade. E esta ameaça se resume e expressa na contradição antagônica vida-morte, ao mesmo tempo que caracteriza o problema fundamental do tempo atual, e resume e articula, além disso, novas contradições sociais”.
Rauber é doutora em Filosofia pela Universidade de Havana, diretora da revista Pasado y Presente Siglo XXI e coordenadora da rede de pesquisa do mesmo nome. Além disso, é pesquisadora adjunta do Centro de Estudos sobre América, coordenadora do Laboratório de Pensamento Argentino do Centro Cultural Caras e Caretas de Buenos Aires, professora da Universidade Nacional de Lanús, professora adjunta da Universidade de Havana, membro do Conselho Científico Assessor da Central de Trabalhadores de Cuba (CTC) e integrante do Fórum do Terceiro Mundo e do Fórum Mundial das Alternativas. Também é pesquisadora da Unesco em temas de gênero, pobreza urbana e processos de transformação social, assim como assessora da Central de Trabalhadores da Argentina (CTA). Especializou-se em estudos de sociologia política, análise de conjuntura, memória histórica, ensaios filosóficos e estudos antropológicos de movimentos sociais, de bairro, sindicais, indígenas e de gênero. Publicou artigos, resenhas e cerca de 20 livros na América Latina.
É pesquisadora convidada do Centro de Estudos Tricontinental (Cetri) de Lovaine La-Neuve, colabora com o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento de Genebra, e dirige o Programa de Formação Sociopolítica a Distância (Profosd). Entre suas obras mais recentes estão: Dos pasos adelante, uno atrás. Lógicas de superación de la civilización regida por el capital (2010); Cayo Hueso, estampas del barrio (2010); Miradas desde abajo (2008); Sujetos políticos (2006); Movimiento social y repercusiones políticas, articulaciones (2004).
Sua atividade acadêmica e de pesquisa esteve dedicada a sistematizar e conceitualizar as experiências dos movimentos sociais e indígenas latino-americanos em busca e construção de uma civilização de baixo para cima.
A entrevista é de Fernando Arellano Ortiz e está publicada no sítio argentino Cronicon, 12-01-2012. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Em seu livro Dos pasos adelante, uno atrás você defende que nesta crise civilizatória do capitalismo estão dadas as condições para uma transição que permite mudar o sistema. Esta crise capitalista será a oportunidade para começar este processo de transformação?
Eu deixei de falar de mudança de sistema para propor uma mudança civilizatória. Poder-se-ia pensar que é a mesma coisa, mas não é, porque uma mudança civilizatória implica uma transformação das lógicas profundas que vêm dominando a civilização atual, e o que aprendemos do socialismo do século XX foi a colocação de uma alternativa que ultrapasse o capitalismo e certamente podemos dizer que, bem ou mal, o conseguiu no sentido de que houve várias revoluções, mas ficaram reféns da lógica da competição econômica do capitalismo. Pensou-se que fazer a revolução passava por apropriar-se dos meios de produção por parte do Estado, reduzindo o poder das personificações institucionais, sem ver outras arestas, sem contemplar a hegemonia, simplesmente tendo uma visão institucionalista e economicista do poder e isso automaticamente produziria a libertação humana. A história não funciona assim e o que houve foi uma mudança de donos que não modificou a lógica. Por isso eu creio que o problema não é superar o capitalismo, mas superar toda a civilização do capital; o desafio é maior. Nós vivemos uma civilização desumanizada no sentido de que promove uma alienação muito grande dos seres humanos porque somos cada vez mais objetos de consumo. Cada vez vivemos menos para nós e muito mais para o mercado.
Mas isto tocou fundo...
Não, nunca toca fundo, se aprofunda cada vez mais, isto não acaba espontaneamente. O ser humano está tão alienado que segue se autoflagelando para responder às questões que são consideradas normais e não se pensa nos “como” e nos “para que”. A humanidade não vai se dar conta de tudo o que está passando: guerras, destruição da natureza, etc., porque para dar-se conta teria que ter as ferramentas culturais e não as tem. E aqueles que querem mudar o mundo em vez de estar simplesmente na rua deveriam dedicar-se a conscientizar. E não quero dizer que estar na rua seja uma besteira porque às vezes é preciso estar nela, mas é preciso avançar na concreção do pensamento estratégico, no sentido de Paulo Freire, não enfiar conceitos mas tratar de raciocinar e discutir as realidades. O problema do mundo é a inexistência de uma humanidade consciente para o qual temos que encontrar um novo modo de vida entre todos e todas, e isso não se consegue por decreto, mas é preciso construí-lo, por isso a construção do poder se dá de baixo para cima. Ou seja, temos que mudar o modo de produção e de reprodução e isso deve ser pensado, deve ser inventado, e é uma caminhada de muitos anos. Mas, além disso, a humanidade tem que saber por que o faz para querer fazê-lo.
Embora o capitalismo não vá cair por si só, uma maneira de reproduzir-se não são as próprias crises e as guerras que ele mesmo provoca?
Evidentemente que sim, mas sobretudo porque a humanidade segue os ditames do mercado. O que necessitamos é uma superação real, histórica, civilizatória. Não necessitamos de atos, requeremos construir um novo tipo de produção e reprodução que não é apenas econômica, mas que é também cultural, com a natureza e com os seres humanos. Implantar a solidariedade não se pode fazer com o mercado, razão pela qual é preciso começar por desprezar o consumismo de maneira autônoma e conscientemente, e esse é um processo de muitos anos.
Mas para isso não se requer a irrupção de um novo sujeito político?
O sujeito político vai se construindo. A primeira pessoa que assume uma atitude crítica já está na mudança civilizatória, como é um processo de vários anos, quem pode dizer em que grau nos encontramos. Toda a tomada de consciência que está se produzindo em relação ao respeito à natureza é parte dessa mudança, é uma acumulação que de repente dá um estalo e a humanidade evolui. Em todo este processo ocorrem os governos populares, as revoluções democráticas, tudo é parte do mesmo.
Falando da luta político-ideológica na América Latina, o caso da revolução cubana constitui um elemento de mudança da lógica capitalista?
Eu creio que Cuba é a última revolução da tipologia do século XX. A revolução cubana, do ponto de vista de modelo paradigmático na América Latina, é a primeira e a última do século precedente, no sentido de que passa pela tomada do poder, pela estatização, que, além disso, depois tem que rever para poder enfrentar as condições atuais porque já não se adapta ao sistema-mundo. A revolução cubana se vê obrigada a discutir sobre a realidade do mercado, o diálogo internacional e frente à voragem de contradições da qual esteve fora durante o tempo em que pertenceu ao bloco socialista. Esse período que foi maravilhoso, com todos os defeitos que teve, eu o experimentei e posso testemunhar do que é viver sem as leis do mercado e do dinheiro, é extraordinário, porque o diálogo entre as pessoas sem as leis do mercado e do dinheiro é extraordinário, porque o diálogo entre as pessoas não é mediado pelo interesse. Tive o privilégio histórico de ter vivido esse suspiro da história, vou tê-lo como anseio sempre, porque assim como vi as deficiências, vi também a injeção de espiritualidade. Além disso, Cuba tem muito presente a questão da libertação do ponto de vista do ideário martiano (de José Martí), no sentido de ser cultos para ser livres.
Concorda em que a América Latina, com exceção de alguns países centro-americanos, México e Colômbia, está historicamente em seu melhor momento político?
Eu creio que sim, porque como nunca antes consignas do passado como a integração estão plenamente vigentes. Creio que estamos no sentido do que temos que fazer, questionando as lógicas do sistema. Estão se abrindo pistas, independentemente de se triunfaremos. Há um trânsito rumo a uma racionalidade diferente e triunfaremos quando o mundo for diferente. Não me inquieta neste processo da caminhada que estes governos populares da América Latina se reelejam ou não; o que me interessa é se apontam e fortalecem o sujeito coletivo e posso dizer que todos o estão fazendo. Nesse sentido, a revolução cubana sempre teve claro a participação do sujeito, uma participação sui generis porque está organizada de forma vertical, mas que de qualquer maneira se deu o tempo para ouvir as opiniões do povo e por isso aí está Cuba.
Os movimentos sociais na América Latina tiveram um papel predominante na ascensão de governos populares?
Eu creio que os movimentos sociais tiveram um papel fundamental nas lutas contra o neoliberalismo, que são as lutas contra o sistema que há, são as resistências pela vida. Estes últimos 30 anos têm a ver com a constituição da nova mentalidade dos movimentos sociais, pondo ênfase na defesa da vida não pelo fim da exploração como ocorria nos anos 1970. Evidentemente que na luta pela defesa da vida está o fim da exploração, isso dá uma nova tônica muito forte aos movimentos e um entroncamento político muito sério que os partidos políticos não conseguem mudar nem entender porque seguem aferrados ao fato de que o problema é o pulso eleitoral, que representam, ou fazer a revolução como uma tarefa partidária, quando isso já é coisa do passado. Por sua vez, os movimentos sociais cresceram e amadureceram com outra lógica e aprenderam que a vida deve ser defendida em todos os âmbitos e essa defesa é o primeiro e último ato político da história, ao passo que os partidos não compreendem isso, e com sua mentalidade muito estreita consideram que o objetivo é a militância em suas fileiras. Por isso se pode afirmar que os movimentos sufragaram o caminho da chegada dos governos populares porque foram protagonistas de resistências e lutas dos povos. Depois há diferenças nos processos com ritmos, histórias e disputas diferentes, como ocorre, por exemplo, nos casos do Equador e da Bolívia. Enquanto houver tensões nestes processos políticos implica que há diálogo, que há debate.
Efetivamente, nos casos da Bolívia e do Equador há uma permanente tensão e até rupturas entre os governos de Morales e Correa com os movimentos indígenas e sociais...
Sim, é que a constituição do sujeito é permanente, faz parte da caminhada, por isso é importante ter presente que o fato de ter constituído governo reclama como nunca antes continuar na disputa da construção social, cultural, econômica e política do novo, incluindo os setores no processo de mudança e transformação que é e será sempre, ao mesmo tempo e em primeiro lugar, um processo de transformação. A instalação de um governo popular supõe a conformação de novas interrelações sociais e o surgimento de novas contradições, conflitos, afinidades e interações de forças e interesses sociais, econômicos, culturais e políticos de acordo com a nova realidade política e institucional. Em seu conjunto, estas configuram um novo mapa sociopolítico que define novas tarefas e desafios para os atores sociais, agora claramente confrontados em sua matriz política ou sociopolítica.
Você assinalou que a esquerda necessita de uma autotransformação igual àquela ocorrida na Igreja católica com o Concílio Vaticano II. Até onde deve apontar essa transformação da esquerda?
Isto implica uma mentalidade muito aberta, uma construção em meio à conjuntura, porque o sujeito não se constrói apenas no acontecimento, é preciso penetrar no sujeito, e o político e o intelectual se situam fora, é preciso estar atentos às suas contradições e às suas mudanças. É por isso que a esquerda necessita de um Concílio Vaticano II para dar-se conta de que é o povo que faz as mudanças e não os mil ou 10 mil militantes que estão nos partidos, que é fundamental trabalhar com as pessoas, desde as pessoas para as pessoas. É preciso abrir as portas, é preciso sair da cripta partidária e será preciso ver quais são as formas novas, e se estão dispostos a escutar se é possível construir uma condução coletiva. É indispensável tirar as viseiras instaladas sistematicamente pelo capital, romper com as fragmentações das realidades e consciências. Para que o humanismo tenha possibilidades de triunfar sobre a barbárie é preciso lutar para construir uma nova consciência coletiva diferente daquela embalada pelo capitalismo e para isso a esquerda pode contribuir se mudar a concepção e a ação política, acabando com seu distanciamento hierarquizado e substituindo-o pelo diálogo permanente, pela aprendizagem mútua, pela horizontalidade nas decisões e pelo controle popular.
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“A mudança civilizatória que a humanidade necessita não é apenas econômica, mas também cultural”, afirma filósofa e educadora popular argentina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU