17 Janeiro 2011
Alerta vermelho. É a frase que poderia resumir o acontecido na Bolívia na última semana. Bem-aventurado seja o “gasolinaço” se se transformar em ponto de inflexão capaz de reverter a crescente tendência superestrutural governamental de decidir de cima sem contar com os de baixo, adotando a velha cultura política do poder que considera que governar é tarefa de quem supostamente “sabe e tem razão”, que é coisa de iluminado.. Mas a revolução é tarefa dos povos, de maiorias conscientes, organizadas, discutindo e definindo seu projeto na medida que o vão construindo.
A reportagem é de Isabel Rauber, publicada no sítio Rebelión, 03-01-2011. A tradução é de Anne Ledur.
Os povos não estão somente para aceitar, apoiar, convalidar ou materializar (executar) ideias e decisões, mas, acima de tudo, para protagonizá-las. Isso quer dizer: participar do processo de tomada de decisões e da realização posterior das mesmas, compartilhando as responsabilidades.
Se se tivesse discutido o problema do preço da gasolina e petróleo, etc., com as organizações sociais, se se tivesse consensuado uma medida e os passos para sua implementação, nada do ocorrido tivesse passado, não sei qual teria sido a proposta, mas os resultados teriam sido diferentes. Ninguém sai protestar contra o que foi concordado.
Os protagonistas não podem – nem querem – inteirar-se de sua história pelos jornais. Não é com resoluções e decretos que se impulsiona uma revolução democrática e cultural, a chave está na participação. Trata-se de um processo marcado pela construção coletiva e requer levar os ritmos que essa construção – e tomada de consciência – coletiva demandam. Quando se pretende acelerá-lo, passando por cima da participação popular, o que se evidenciava como um êxito ou acerto possível no médio prazo, se torna um imediato fracasso.
A prova está à vista: apostando na consulta e participação dos de baixo, certamente o caminho pode ser mais longo e os ritmos mais lentos, mas, a longo prazo, será mais efetivo, profundo e radical. Essa sabedoria não saiu das universidades, se forjou na experiência de luta dos povos. Em suas práticas, eles delinearam e construíram as novas lógicas da transformação social desde baixo, quer dizer, das revoluções democrático-culturais caracterizadas por apelar ao desenvolvimento da consciência, da organização e da participação dos de baixo de modo permanente. E isso não se consegue com cursos ou conferências. É, acima de tudo, um resultado da participação dos de baixo em todo o processo de mudanças: do diagnóstico e das definições até a implementação e controle das decisões. Essas já não são tarefas de um grupo de dirigentes, mas responsabilidade compartilhada de todos/as.
O povo consciente, participante e protagonista das decisões sairia igualmente às ruas, mas – nesse caso – para reafirmar as medidas do governo, que seriam suas medidas, e para pedir o aprofundamento revolucionário do processo.
O ocorrido na Bolívia em consequência ao “gasolinaço” não corresponde com nenhuma dessas alternativas, mas também não significa um repúdio ao governo, que seguem considerando sujo. É, sim, um grito e uma manifestação contra uma tênue, mas crescente, forma de governar que vinha se mostrando, em algumas decisões, que pretende desconhecer o povo como protagonista central do processo e suplantá-lo na tomada de decisões fundamentais, reencarnando o pior da herança política burguesa-colonial.
Um governante revolucionário não se define como tal pelo currículo, nem por ser “honrado e bom” em comparação com os governantes tradicionais do sistema; mesmo que essas qualidades se requerem elementalmente, sua projeção vai mais adiante do pessoal: se relaciona diretamente com sua capacidade de pôr os espaços de poder em função da transformação revolucionária, abrindo as portas do governo ao povo, construindo um novo tipo de institucionalidade, de legalidade e legitimidade baseada na participação do povo na tomada de decisões políticas (embasamento da assembleia constituinte).
A tarefa titânica dos governantes revolucionários não consiste em substituir ao povo, em em “tirar de suas cabeças” boas leis, muito menos para demonstrar que são mais inteligentes que todos, que têm razão e que, por ele, “sabem governar”. Impulsionar revoluções desde os governos passa a fazer desses uma ferramenta política revolucionária: desenvolver a consciência política, abrir a gestão à participação dos movimentos indígenas, dos movimentos sociais e sindicais, dos setores populares, construindo mecanismos coletivos e estabelecendo papéis e responsabilidades diferenciados para cogovernar o país.
As revoluções que vêm de baixo, as que se geram dos povos, desde a raiz dos problemas, apostam na mudança que nasce das consciências dos povos e se constrói em sua ação protagônica. Nada tem a ver com métodos que pretendem impulsionar o processo com decretos e resoluções geradas de cima por muito bem intencionadas e certeiras que essas puderam resultar.
Não se avança com medidas superestruturais por muito justas e razoáveis que essas sejam. Tem que construir protagonismo popular coletivo e isso só se pode conseguir passo a passo. A aprendizagem – como o ensinamento – começa nas práticas cotidianas. Educar no novo significa desenvolver novas práticas, dar o exemplo. Essa é a chave pedagógica vital das revoluções que vêm de baixo.
Essas só podem aprofundar-se amarradas à construção e ao fortalecimento do sujeito coletivo e das mesmas, o ator sociopolítico capaz de traí-las e impulsioná-las permanentemente para objetivos radicalmente superiores. A tarefa fundamental do instrumento político nesses tempos consiste por ele, precisamente, em desenvolver o trabalho político, cultural e ideológico necessário para que promover o desenvolvimento da consciência política do conjunto de atores sociais e políticos do campo popular, em abrir canais institucionais e não-institucionais para a participação consciente, organizada e crescente do conjunto dos atores revolucionários, assim como também criar âmbitos para reflexões críticas coletivas do processo de mudança, de modo a ir fortalecendo as consciências, crescendo coletivamente.
Na Bolívia, o povo não saiu às ruas a repudiar seu governo, mas – junto com a medida – à imposição, às decisões não-consultadas, ao distanciamento entre governantes e movimentos indígenas, campesinos e sociais que vinha se evidenciando como tendência e que se cristaliza agora contundentemente com essa medida do chamado “gasolinaço”. O povo não saiu para se opor a Evo, mas para dizer-lhe NÃO a qualquer tentativa de governar sem sua participação, para pedir-lhe retificação e reconhecimento. E, em um ato de humildade que evidencia tanto sua grande sabedoria como suas raízes, Evo retificou. E repassando sua promessa de Tihuanaku, retirou os decretos e reiterou suas decisão de “mandar obedecendo”, que – em sentido estrito – não significa nem mandar, nem obedecer, mas governar juntos, construir em conjunto as medidas fundamentais, e compartilhar as responsabilidades das decisões e de sua implementação.
E não é que isso seja necessariamente garantia de êxito nem evite cometer erros ou equivocar-se, mas quando os povos fracassam tendo consciência de que poderia ocorrer, sabendo que que se poderia perder, o fracasso pode parecer um triunfo, um crescimento coletivo, um novo aprendizado e um fortalecimento que os dinamize e impulsione a buscar concretizar seus objetivos por outras vias. Algo assim como: “Bom, se por aí não saiu o assunto, por onde e como vamos consegui-lo?” A situação se apresenta diferente quando há participação consciente de quando não já: Os povos avançam conforme tomam consciência do fracasso ou celebram o triunfo, e isso depende de sua participação nas decisões; quando fracassam sem consciência do que estavam fazendo, a frustração é profunda.
As revoluções são idênticas à participação protagônica de seus povos; diretamente proporcionais a ela. Se, por exemplo, se aplica essa simples equação aos processos populares revolucionários em curso às medidas governamentais e seus procedimentos, os resultados saltam à vista: a menor participação popular, menor conteúdo e alcance revolucionário, menos revolução. Conclusão: o nó górdio estratégico dos processos revolucionários não está enraizado na pertinência das revoluções governamentais nem na sabedoria dos governantes e seu entorno, mas na vontade popular, em sua consciência e organização para participar das definições e soluções, impulsioná-las e sustentá-las.
No terreno político, está claro que saber é poder. Enquanto o saber procedente de técnicos e especialistas é restrito, reduzido a elites e minorias, seu poder também é escasso e reduzido, cotado a cargos e funções, ao que se denomina comumente de “trabalho profissional”. Por isso, sem negar o valor do trabalho de especialistas e assessores, os resultados e as propostas de seus estudos necessitam ser sempre reavaliadas (quando construídas) com o povo, com os movimentos indígenas, sindicais e sociais, com o campo popular todo. Só em um processo articulado, conjunto, é possível transformar as propostas de funcionários, especialistas ou técnicos em decisão política revolucionária de governo e povo. Em processos político-revolucionários como o que vive a Bolívia hoje, a administração pública – que é a administração do público - não pode ficar emaranhada nos papéis dos funcionários públicos; é tema e tarefa da militância sociopolítica dos povos nas ruas das cidades, nos campos, nas minas...
Os que têm a responsabilidade de governar têm a prerrogativa de propôr mudanças e a obrigação de que suas propostas tenham fundamentos sólidos. Isso não está posto em discussão. Mas a outra face do processo, a fundamental, que o dá sentido e projeção revolucionária, consiste no seguinte: para que o saber produzido acima seja, ao mesmo tempo, poder abaixo, há que se construir com os de baixo e se constituir em saber/poder do povo. Essa é a tarefa política por excelência de quem tem responsabilidades de governo em processos revolucionários.
Evidenciar isso e colocá-lo sobre o tapete é uma das tarefas de ensinamento mais importantes e transcendentes dos acontecimentos resultantes do “gasolinaço”: o povo reivindicou seu protagonismo, falou com seu líder em sua linguagem de resistência e luta, e Evo respondeu como militante. Consciente de que retificar é sábio, escutou e compreendeu a mensagem se seus companheiros e rapidamente revogou as resoluções e decretos, e voltou a pôr à agenda política governamental um tema chave: governar para o povo implica governar com o povo. E com isso, Evo tirava outra lição: para impulsionar uma revolução que venha de baixo, não basta “ter costas largas”, mas os pés no chão, mas o coração com o povo e a cabeça esclarecida de suas responsabilidades como governante revolucionário capaz de levar os povos a protagonizar a sua história.
Fica claro, então, que o tema aberto com o “gasolinaço” não está limitado a economistas, nem especialistas, nem jornalistas, pertence ao povo. É o povo – em sua diversidade de identidades, nacionalidades e culturas – que tem o poder de mudar a história e construí-la a sua imagem em semelhança.
Por isso, a dias de comemorar um novo aniversário da constituição do primeiro governo indoamericano no nosso continente, é possível exclamar, com força e vitalidade:
Jallalla, povos da Bolívia! Jallalla, Evo!
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A pedagogia das revoluções que vêm de baixo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU