Morte na floresta: a vida e as consequências da pandemia para os povos indígenas. Entrevista especial com Aparecida Vilaça

Professora do Museu Nacional traça um panorama das consequências da pandemia e das políticas públicas, praticamente inexistentes, de apoio aos povos nativos

Foto: Funai CGIIRC/ Gleilson Miranda

Por: Ricardo Machado | 07 Agosto 2020

Há cem anos a população mundial não experimentava uma epidemia com o potencial do coronavírus. O que para a maior parte das gerações tem um ar de novidade e de exceção, para inúmeros povos indígenas trata-se de uma trágica repetição de uma história multissecular. “A minha geração, que é diferente da geração dos meus avós que pegaram e viveram a gripe espanhola, nunca tinha experimentado uma pandemia deste tipo, nesta intensidade de mortes, sem nenhum tipo de medicamento comprovado, sem vacinas, as pessoas trancadas. Isso é exatamente o que esses povos indígenas experimentaram por tantos séculos”, pontua a professora e pesquisadora Aparecida Vilaça, em entrevista por telefone à IHU On-Line.

Ao lado das demais populações marginalizadas, os povos indígenas estão no final da fila para o atendimento médico da covid-19, sem contar as dificuldades de deslocamento de regiões distantes das áreas urbanas. Além disso, o isolamento dos indígenas em hospitais tem consequências ainda mais devastadoras, uma vez que suas cosmologias baseiam-se em princípios distintos dos nossos. “Viver o luto é essencial para estas populações. Ter o corpo presente é essencial para as relações entre o mundo dos vivos e dos mortos, assim como é essencial estar perto dos doentes. A doença é um momento no qual as pessoas precisam ficar aterradas, no sentido de ancoradas ao seu mundo, em que essas relações e contatos com as pessoas são essenciais para dar substância, garantir um lugar nesse mundo dos vivos”, explica a pesquisadora.

Se a preocupação com os doentes e mortos da pandemia nas populações urbanas nunca foi algo central no âmbito federal, a julgar pelas parcas políticas públicas de controle da crise sanitária, para os povos indígenas a situação é ainda mais grave, constituindo-se como uma espécie de projeto genocida velado. “Historicamente os indígenas sempre foram vistos como diferentes e como ‘alvos’, sujeitos a serem eliminados, seja pela mira da espingarda, seja por surtos epidêmicos, até mesmo por roupas contaminadas jogadas de avião. Sempre houve o interesse de eliminar os índios de alguma forma, por vários motivos, entre eles porque são diferentes e, em nossa sociedade ocidental, a diferença precisa sempre ser erradicada, ou pela eliminação física ou pela transformação em um igual”, ressalta. Na entrevista a seguir, Aparecida Vilaça relata as consequências da pandemia para os povos da floresta.

Aparecida Vilaça (Foto: Divulgação/Todavia)

Aparecida Vilaça é graduada em Biologia com especialização em Ecologia, mestre e doutora em Antropologia Social no Museu Nacional na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Realizou pós-doutorado na Universidade de Cambridge, Inglaterra. Foi pesquisadora e professora visitante nas universidades de Bergen, Cambridge, Stanford e Universidad Autónoma de México, e, também, na École des Hautes Études en Sciences Sociales e na École Pratique des Hautes Études. É autora de diversos livros, dos quais destacamos Morte na Floresta (São Paulo: Todavia, 2020), lançado recentemente e que traz um panorama sobre a pandemia junto aos povos indígenas, e Paletó e eu: memória de meu pai indígena (São Paulo: Todavia, 2018).

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Em que sentido a pandemia da covid-19 impõe a nós, os brancos, o sofrimento que durante séculos temos impingido aos povos indígenas?

Aparecida Vilaça – Esta não é nossa primeira epidemia e, pelo que tudo indica, não será a última, considerando o desequilíbrio ambiental que leva a essas zoonoses. Desde o começo da invasão europeia, por volta dos anos 1560, já havia descrições dos jesuítas sobre surtos de varíola entre os povos indígenas. Segundo diversos relatos, nos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, houve várias epidemias de varíola, varicela, gripe e, mais recentemente, o HIV; todas epidemias levadas por nós a eles. Isso tudo é resultado dos maus-tratos e do desequilíbrio que causamos no mundo e cujas patologias são levadas a esses povos que não são cúmplices do que fazemos, mas se tornaram vítimas de nossos erros e formas de lidar com o mundo.

A minha geração, que é diferente da geração dos meus avós que viveram a gripe espanhola, nunca tinha experimentado uma pandemia deste tipo, nesta intensidade de mortes, sem nenhum tipo de medicamento comprovado, sem vacinas, as pessoas trancadas. Isso é exatamente o que esses povos indígenas experimentaram por tantos séculos. Por outro lado, para toda uma geração de indígenas, a epidemia de covid-19 é nova também, embora haja etnias que sofreram epidemias relativamente recentes, como os Wari’, com quem eu trabalho, que foram devastados no início dos anos 1960. Há pessoas muito assustadas, como o meu irmão Wari’, Abraão, que perguntou se não tínhamos um remédio e eu respondi que não. Essa geração de Wari’ está acostumada com o fato de que temos remédios para as nossas doenças e, consequentemente, para as deles. Então, agora, estamos todos juntos porque não tem medicamento para ninguém.

Mas só em certo sentido tem o mesmo impacto para eles e para nós. O que se nota é que os indígenas têm uma taxa de mortalidade muito maior, porque a maior parte deles vive no interior, em regiões de pouco acesso a um atendimento de saúde mais complexo. Além disso, toda ação governamental tem sido truncada e equivocada em relação aos indígenas, até o cúmulo de levarem centenas de caixas de cloroquina para eles tomarem, o que é algo criminoso, porque se trata de um medicamento com efeitos colaterais perigosíssimos e que está sendo administrado de maneira inconsequente.

Como abordo em Morte na floresta (São Paulo: Todavia, 2020), do ponto de vista da epidemia sim, somos todos indígenas, como disse o antropólogo Bruce Albert, mas também não somos, no sentido de que os indígenas estão, neste momento, sofrendo a epidemia ao lado das pessoas mais desfavorecidas economicamente. Eles estão no final da fila dos hospitais públicos, dos bancos, dos leitos de UTI. Na grande divisão interna de nossa sociedade, onde de um lado temos os mais favorecidos, que têm acesso a hospitais particulares e, de outro, os desfavorecidos, os indígenas estão com os últimos.

IHU On-Line – O auxílio emergencial ajuda as populações indígenas?

Aparecida Vilaça – Ajudaria caso esse auxílio tivesse sido levado a eles de uma outra forma. São pessoas que geralmente vivem longe das cidades. Há muitas pessoas doentes e incapacitadas de caçar ou ir à roça. O auxílio tornou-se algo importante para garantir esse sustento, mas para recebê-lo eles precisam se deslocar até as cidades. Para isso passam dias viajando de barco para depois fazerem fila em bancos e supermercados. Muitos acabaram se contaminando dessa forma, tanto que algumas notícias de jornal chamaram esse dinheiro de “auxílio da morte”.

IHU On-Line – O isolamento social é, por definição, um método comum nos povos indígenas, mas cada vez com mais dificuldades devido à restrição territorial. O que mais podemos aprender com os povos nativos sobre como lidar com essas pandemias?

Aparecida Vilaça – Embora os indígenas tenham aprendido com as experiências históricas das epidemias que em momentos de doença é importante procurar um local seguro, trata-se de um isolamento completamente diferente do que temos feito. A ideia de ficar sozinho, como é o caso de várias pessoas na cidade, para os indígenas é algo quase inconcebível, porque as relações são parte constitutiva da vida.

Isso de as pessoas serem hospitalizadas e necessitarem ficar sozinhas, tem sido, para os indígenas, um pesadelo. Ouvi um relato sobre o caso de um indígena que foi intubado e que, sozinho, arrancou os equipamentos de intubação e morreu. Em um podcast da Renata Lo Prete que foi ao ar em meados de julho e do qual participei, Alisson Munduruku fala que diante da morte do pai dele, um líder, a dor maior foi ele ter sido isolado e morrido sozinho, sem poder ser enterrado na própria aldeia. O fato de ele não ter sido velado por seus parentes causou uma dor muito grande, porque viver o luto é essencial para estas populações. Ter o corpo presente é essencial para as relações entre o mundo dos vivos e dos mortos. E também durante a doença. Estar perto dos parentes é uma forma de assegurar a possibilidade de cura, pois eles entendem que estar perto dos familiares e de pessoas saudáveis é uma forma de “fixá-los” neste mundo, de estarem presos e ancorados ao mundo dos vivos. A morte é muitas vezes considerada uma disputa entre dois povos: os vivos e os mortos ou outros espíritos, que também querem aquela pessoa para si. A morte, enquanto disputa de grupos sociais distintos, torna a ideia de isolamento de um doente algo gravíssimo.

O isolamento em grupo, e agora não estou mais falando de pessoas que estão hospitalizadas, é uma saída importante e que sempre ocorreu quando povos, ou seus remanescentes, se viram diante da necessidade de se isolar para se proteger. No caso da pandemia, isso passou a ser feito em ritmo de emergência, mas tarde demais. O governo não tomou qualquer providência no início. A covid-19 chegou à cidade pelo menos um mês antes de atingir a primeira população indígena. Nós sabíamos as dimensões da crise, ainda mais porque tínhamos notícias da China e dos países europeus assolados pela pandemia. Os indígenas, quando tinham vagas notícias, desconheciam completamente a dimensão dessa doença. Era o governo que, sabendo, deveria ter agido com rapidez. Mas não houve políticas públicas para evitar que isso chegasse às aldeias. Isso tudo com o agravante das invasões por grileiros, garimpeiros, madeireiros, que só fizeram crescer exponencialmente nesse período. Diversas terras indígenas estão cheias desses invasores, como é o caso dos territórios Yanomami. Além de levarem o vírus, tornam perigoso o trânsito entre os diferentes locais dentro do território, porque os indígenas podem sofrer represálias e assassinatos, como está ocorrendo.

IHU On-Line – Por que para a sobrevivência de uma etnia são necessárias “gentes” – xamãs, caçadores, pessoas para fazerem os rituais etc. – sem as quais sua continuidade está em risco? Como esta questão está ligada à impossibilidade da ideia de indivíduo nas cosmologias indígenas?

Aparecida Vilaça – A necessidade de gente de tipos diversos é real, mesmo que não esteja ligada a essas especializações. Entre muitos povos amazônicos todos são xamãs, ou podem agir como xamãs, todos os homens são caçadores e todas as mulheres plantam, de tal modo que não é a especialização que constitui a diversidade. O mais importante, em relação a essa ideia de indivíduo que você menciona, é que eles não pensam a possibilidade de uma pessoa sozinha, isolada. As pessoas estão sempre em relações, você é pensado como filho de tal pessoa, irmão de tal pessoa etc. As pessoas são concebidas por um intrincado de relações – há a parte pai, a parte filho, parte marido, parte irmão, parte cunhado –, tudo isso conforma as pessoas. No contexto dos povos indígenas, isso de ficar sozinho é impossível ou malvisto, pois a pessoa pode ser acusada de feitiçaria, por exemplo. Do ponto de vista de seus conterrâneos, a pessoa isolada é perigosa, porque está tendo outras relações, com outro tipo de gente que não os humanos. Por isso o problema do isolamento num momento de doença, porque é quando as pessoas precisam ficar aterradas, no sentido de ancoradas ao seu mundo, em que essas relações e contatos com as pessoas são essenciais para dar substância, garantir um lugar nesse mundo dos vivos. Não estou dizendo que o isolamento durante a doença não seja um sofrimento para nós, por estarmos sozinhos em um hospital ou em casa, doentes, sentindo dores, com febre. A questão é que a concepção do que é uma pessoa e o lugar das relações em sua constituição é diferente para nós e para eles.

IHU On-Line – Considerando as cosmologias dos povos nativos, como eles compreendem a origem das doenças e suas formas de tratamento?

Aparecida Vilaça – Evidentemente os muitos povos indígenas pensam a origem das doenças de formas variadas, de modo que há uma diferença interna importante. Contudo, é necessário perceber que a doença é concebida como algo que sempre vem de fora. Não há a ideia de que uma pessoa adoece porque está fraca, porque não estava se alimentando bem ou que a culpa seja da própria pessoa. Ao contrário, ela fica fraca e magra porque está doente. A doença é sempre fruto de uma má relação. Para os Wari’, povo com quem trabalho há 30 anos, e que vive no oeste do Estado de Rondônia, perto da fronteira com a Bolívia, muitas doenças estão ligadas à relação com os animais. Há alguns animais que não se pode comer, ou provocam doenças. Dos animais permitidos, eles devem ser rapidamente assados e comidos, porque os Wari’ sabem, e muitos povos indígenas também pensam assim, que os animais são humanos, embora só os xamãs possam vê-los em sua forma humana. Os animais, para os Wari’, são imortais, porque eles estão sempre revivendo. Se não forem logo assados e comidos, os animais vão se vingar causando doenças. O mesmo pode acontecer se o caçador for sovina e não distribuir sua caça – obedecendo a um conjunto de regras morais exigidas pelos animais. Se uma criança for maltratada, não for bem alimentada, corre o risco de ser levada, raptada, por um animal que vai pensar: “se vocês [os indígenas] não querem, eu quero”. Os animais impõem ao grupo uma moralidade específica.

Outra forma de doença é causada pela feitiçaria, geralmente feita por pessoas não relacionadas. Ela costuma levar as vítimas à morte, às vezes súbita, às vezes lenta. Há outras formas de morrer, às vezes de queda, ou de uma flechada, mas na maioria das vezes são causadas por agentes externos. Quando chegaram as epidemias dos brancos, as pessoas adoeciam e não entendiam o porquê, afinal não tinham feito nada transgressivo contra os animais, os espíritos, não viam sinais de feitiçaria e os xamãs não conseguiam curar. De um modo geral os xamãs tinham muito sucesso para curar as doenças, pela capacidade de negociar como os animais, com os espíritos, trazer a alma das pessoas que eles levavam. Com isso, elas se curavam. Com essas epidemias, as pessoas morriam em quantidade e os xamãs não conseguiam ver as causas das doenças. Davi Kopenawa diz que as epidemias eram, para os Yanomami, doenças que não conseguiam curar. Os Yanomami relacionam as epidemias à febre do ouro e à invasão de suas terras. O criador, Omama, sabia que esse metal era maléfico e por isso o escondeu dentro da terra, justamente esta que as pessoas estão cavoucando. A fumaça liberada pelo metal saído da terra causa as epidemias.

Cada grupo indígena tem uma explicação, um entendimento sobre as epidemias, que os atingiram em épocas e condições diferentes.

IHU On-Line – Como se caracteriza o genocídio dos povos indígenas no Brasil?

Aparecida Vilaça – Historicamente os indígenas sempre foram vistos como diferentes e como “alvos”, sujeitos a serem eliminados, seja pela mira da espingarda, seja por surtos epidêmicos, até mesmo por roupas contaminadas jogadas de avião. Sempre houve o interesse de eliminar os índios de alguma forma, por vários motivos, entre eles porque são diferentes e, em nossa sociedade ocidental, a diferença precisa sempre ser erradicada, ou pela eliminação física ou pela transformação em um igual. Trata-se, porém, não de um igual equivalente, mas um igual submisso, porque não é competição que as pessoas que promovem o extermínio querem. É uma aversão à diferença e os indígenas representam esta diferença. Além disso, há um agravante: os povos indígenas são usufrutuários de territórios, garantidos constitucionalmente, que sempre foram cobiçados. A perseguição a esses grupos sempre se deu por interesses econômicos, aliados ao ódio à diferença.

Os Wari’, nos anos 1950, contam que os seringueiros avançaram nos territórios deles, na madrugada, propositadamente quando as pessoas estavam dormindo, com metralhadoras e exterminaram vilas inteiras. Há relatos, feitos por dom Roberto Arruda, bispo de Guajará-Mirim, que participou dos primeiros contatos com os Wari’ em 1961, de que as pessoas enviadas pelos seringalistas para matar os índios jogavam bebês para o alto e os deixavam cair sobre um facão para serem cortados ao meio. E esse é somente um tipo de crueldade que se fazia com esses povos além de metralhá-los. É uma política de extermínio que é também um etnocídio, em que se acaba com um povo, com uma língua, com uma etnia.

O respeito aos indígenas tornou-se garantia legal com a Constituição de 1988, mas com a chegada do governo que assumiu no início de 2019, volta-se ao período anterior. Mesmo sob a vigência da Constituição, existe uma série de procedimentos infralegais, como instruções normativas, que são totalmente desrespeitosas e que visam ao extermínio desses povos. Há vários representantes do atual governo que falaram abertamente e fizeram uma série de declarações defendendo que os indígenas devem ser assimilados, catequizados, o que é uma visão do início do século passado e que foi superada há muitos anos. A importância dessas culturas e da diversidade, além do direito de exercerem sua autonomia, é algo que está constituído e solidificado. À parte as instruções normativas, o discurso das pessoas do governo em relação às terras indígenas, incentivando o garimpo, sinalizando que as invasões serão legalizadas, está promovendo uma onda de desrespeito e assassinatos que, pelo menos há meio século, não se via de forma tão agressiva. Estamos em um momento muito grave de retrocesso.

IHU On-Line – Quando a ação do governo contra esses povos não é operacional é, deliberadamente, por uma inoperância nociva, como foram os vetos do presidente ao auxílio emergencial aos povos indígenas, encaminhados ao Congresso em 8 de julho...

Aparecida Vilaça – É uma coisa escandalosa. Para começar, nos últimos anos tem sido cada vez maior a redução dos recursos de distritos sanitários indígenas, isto é, as unidades de saúde desses povos. Nesse momento de crise, eles [os indígenas] se veem sem leitos, sem médicos suficientes, sem recursos para transporte das pessoas doentes. A situação é absolutamente grave. A saída que os próprios indígenas têm encontrado é de associação com entidades civis, com organizações não governamentais ou mesmo com determinadas pessoas conhecidas, como Sebastião Salgado, para lançar campanhas de pedido de ajuda. Doentes, não estão podendo trabalhar – na roça, caçando ou em outros trabalhos –, aqueles saudáveis não conseguem suprir a todos e não estão podendo se deslocar até a cidade para não se contaminarem. Eles precisam que os mantimentos e material de higiene cheguem a eles, algo que não está sendo efetivado. O Projeto de Lei 1142/2020, que previa ações de auxílio emergencial a povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais, foi sancionado pelo presidente com 13 vetos, o que incluía, até mesmo, o direito ao acesso à água potável. A ignorância sobre a situação indígena que predomina na esfera institucional federal, principalmente no Ministério da Saúde, presume que eles têm acesso à água potável, mas esquecem de muitos casos em que isso não existe. A queda da barragem em Mariana, em Minas Gerais, por exemplo, afetou todo o Rio Doce, onde vivem os Krenak, cuja água não é mais potável. Nesse momento de crise, os indígenas precisam ter acesso à água potável, lavar as mãos, o corpo, além de ter o que comer. De modo que precisam que os auxílios cheguem a eles sem terem que se deslocar até a cidade, arriscando serem contaminados, para obtê-los.

São as associações entre os indígenas e a sociedade civil que estão fazendo a diferença hoje. Para quem me pergunta como ajudar, eu sempre indico visitarem a página do Instituto Socioambiental sobre covid-19, onde há dados numéricos atualizados diariamente sobre a infecção entre indígenas, e buscar a seção que apresenta as iniciativas indígenas, com os links para estas associações, que explicam seus trabalhos e fazem prestações de contas sobre os recursos doados. Desta forma, algumas pessoas das associações podem comprar mantimentos e levar às aldeias para que estes indígenas continuem isolados. Até a segunda metade de julho, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib informa que ocorreram 544 mortes entre indígenas e que a epidemia já atingiu 137 povos.

IHU On-Line – Do ponto de vista de projeto político, o que as atitudes do Executivo federal indicam?

Aparecida Vilaça – Essas atitudes indicam um interesse na expropriação e no uso dos territórios indígenas. Isso é feito por meio de um discurso truncado, com afirmações de que o interesse dos indígenas é viver na cidade, que não podem ser esquecidos na floresta. Trata-se de um argumento falso, contestado pelas principais lideranças indígenas e por todas as vozes indígenas que se manifestaram sobre isso. Desde a campanha presidencial há um discurso explícito e claro de desprezo e desrespeito aos indígenas. Um preconceito tacanho e criminoso, que vai do presidente ao ministro do Meio Ambiente, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, o ministro interino da Saúde, dentre outros.

As consequências são o desmonte dos órgãos públicos de preservação da floresta, o que é essencial para a sobrevivência dos indígenas, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - Ibama e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio, que realizam ações diretas contra o desmatamento. Embora pareça que os órgãos ambientais estejam sendo mantidos, trata-se de uma espécie de maquiagem para a destruição que ocorre simultaneamente. A existência desses órgãos é essencial para a proteção dos povos indígenas; sem território eles não podem viver, porque a vida deles está ancorada nestes territórios. Desmonta-se também a Funai, Fundação Nacional do Índio, importante órgão de proteção aos direitos indígenas e ao bem-estar indígena. Os cargos de chefia das diferentes sedes estão sendo paulatinamente trocados por pessoas sem nenhuma experiência com indígenas. Fica parecendo que está tudo certo, que os órgãos governamentais estão sendo mantidos, que há preocupação do governo com a preservação do meio ambiente e dos indígenas, mas eles estão sendo corroídos por dentro, impossibilitados de exercer as suas funções públicas, aquelas para as quais foram criados.

Além disso, há censuras de todo tipo aos funcionários desses órgãos como um todo, como se viu no caso da demissão do diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - Inpe, na proibição da divulgação dos dados sobre desmatamento. Até os indígenas estão sendo censurados, como no caso das ameaças aos Yanomami que denunciaram o despejo de cloroquina nas aldeias.

IHU On-Line – O que significa para os indígenas “virar branco” e como isso se distingue radicalmente da perspectiva proposta por nossos governantes e seu projeto de espoliação?

Aparecida Vilaça – O interesse dos indígenas por nós não é exatamente pelo nosso modo de vida, porque eles reprovam muito nossa moralidade, isto é, a forma como nos relacionamos uns com os outros, nossa avareza, o fato de existirem pessoas famintas ao lado de abastadas, que as ignoram. Mas é claro que eles se interessam por nossas tecnologias, coisas que querem levar para as aldeias, no sentido de fazer mudanças na vida deles, mas totalmente ancoradas em suas terras, seus modos de vida. O fato de o indígena querer usar óculos escuros ou usar nossas roupas não tem a ver com o fato de ele quer virar branco ou, muito menos, um atestado de que não é mais indígena. Os indígenas falam isso toda hora, questionam a visão dos outros de que “se eu estudo numa faculdade e uso roupa e bolsa, eu não sou indígena?”, “tenho minha língua, meus parentes na aldeia!”. Não existe projeto nem desejo dos indígenas de “virar branco”, como um processo gradual de transformação; é uma ideia absolutamente equivocada. É interessante que para nós não vale essa lógica que tentam aplicar aos índios. Usamos calças jeans que têm origem norte-americana, nossas crianças aprendem inglês na escola, e nem por isso dizemos que as pessoas estão virando norte-americanas. Estão apenas se aproveitando coisas que outras culturas oferecem para trazê-las para dentro, para o seu próprio mundo. Os indígenas fazem a mesma coisa, querem ter acesso às coisas, mas querem continuar a viver no mundo deles, que é bastante distinto do nosso, sobretudo em termos relacionais e morais.

Queria finalizar dizendo que embora o meu livro Morte na floresta traga informações que são tristes e falam desse tempo de terror que estamos vivendo e que os indígenas vivenciam há cinco séculos, o último capítulo do livro é o capítulo da esperança. Ali tento mostrar o que os indígenas estão falando sobre as epidemias, sobre a destruição da natureza, com vozes como Davi Kopenawa, Ailton Krenak e Raoni, advertindo-nos sobre o que estamos fazendo e como isso nos leva a um beco sem saída. A situação em que colocamos nossa Terra, o aquecimento global e as consequentes migrações e todos os problemas de pobreza extrema, guerras e disputas, transformam o planeta e as relações sociais em relações doentias. Os indígenas estão dizendo que há outros modos de fazer, de equilibrar, de se relacionar com os outros seres, porque nós estamos todos juntos. Não adianta a pessoa dizer que não tem nada a ver com a morte das abelhas porque mora na cidade e não vê abelhas, porque está tudo junto, o extermínio das abelhas implica uma cadeia de relações, e ao final é a própria plantação de soja ou milho, a monocultura, enfim, que vai sofrer. Não há possibilidade de uma agricultura não sustentável, que não pense no equilíbrio do ambiente como um todo, simplesmente porque está fadada ao insucesso a médio e longo prazos.

Estamos perdendo a noção de ecossistema, de que tudo está interligado, porque setorizamos tudo e acreditamos na ideia de que somos capazes de submeter e explorar a natureza, mas isso tem que parar. O que o planeta nos mostra é que a exploração tem limites e que eles foram atingidos. Temos que ter atenção para o que os povos indígenas, não só do Brasil, mas de vários lugares, estão falando, de que estamos completamente equivocados em nossa relação com a natureza e com as outras pessoas, especialmente aquelas diferentes de nós, e que devemos mudar. A discussão do último capítulo gira em torno dessa possibilidade de reconexão e dos caminhos que podemos tomar, claramente expressos nos ensinamentos indígenas. Aqueles que sobreviverem, poderiam aproveitar a pandemia como um ensinamento, traumático que seja, para que a gente, finalmente, procure agir e mudar o curso das coisas. Se tivermos tempo de reverter tudo isso, é claro. Mas no ponto em que estamos, só nos resta tentar, com urgência.

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