31 Julho 2020
À primeira vista, a gravura de 1609 (veja abaixo) parece bastante direta: um professor está posicionado em um púlpito elevado na frente de uma sala de aula. Três bancos na frente de longas mesas, cheias com cerca de 15 jovens estudantes do sexo masculino, formam uma figura em forma de U na frente dele. As crianças parecem contorcidas e distraídas. Algumas têm livros abertos; a maioria, não.
O comentário é de Mike Jordan Laskey, gerente de comunicações da Conferência Jesuíta em Washington, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado em National Catholic Reporter, 30-07-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Mas, olhando um pouco mais de perto, fica claro que um desses alunos não se encaixa. Trata-se de um homem de 30 e poucos anos sentado no lado mais próximo do banco à direita. Suas mãos estão abertas, e ele recebe a atenção extasiada de um aluno sentado perto dele. Ele não parece estar prestando atenção ao professor, talvez perdido em seus pensamentos. Há uma auréola sobre a cabeça dele.
Inácio frequenta aulas de Gramática em Barcelona para aprender o latim de que precisa para seus estudos. Obra de Peter Paul Rubens (1577 - 1640)
Embaixo da imagem, há uma legenda em latim: “Em Barcelona, para que pudesse se instruir para salvar almas, ele se aplica para aprender os primeiros elementos da Gramática, mas é distraído pelo Demônio, que tenta, em vão, afastar a sua mente dos estudos para as alegrias das coisas celestiais”.
“Ele”, aqui, é Iñigo López de Oñaz y Loyola, ou, como é conhecido hoje, Santo Inácio de Loyola, cuja festa é nesta sexta-feira, 31 de julho. Apesar de todas as grandes coisas que Inácio fez, como escrever os Exercícios Espirituais e fundar a Companhia de Jesus, eu simplesmente não consigo deixar de pensar nessa cena dele como estudante, sentado em uma sala de aula com crianças duas décadas mais novas, distraído pelo diabo.
Inácio passou dois anos nessa sala de aula de Gramática, estudando latim com o mestre Jerónimo Ardévol. Três anos antes, enquanto servia como soldado, uma bala de canhão havia esmagado sua perna na Batalha de Pamplona. Ele experimentou uma conversão religiosa que mudou a sua vida durante a sua longa convalescença, uma centelha de zelo que levou à primeira redação dos Exercícios Espirituais e a uma subsequente decisão de navegar até a Terra Santa, onde ele poderia viver seus dias trabalhando para converter os não cristãos para a fé.
De acordo com a biografia escrita pelo padre jesuíta George Traub e Debra Mooney, Inácio só estava na Terra Santa há algumas semanas quando as autoridades eclesiais lhe disseram para voltar para a Europa. Repreendido, Inácio decidiu que precisava de uma educação mais formal antes que pudesse “ajudar as almas”. A fim de se matricular em uma universidade, porém, ele primeiro precisava aprender algumas coisas básicas. Sem algo parecido com o Ensino de Jovens e Adultos na época, isso significava frequentar a escola básica.
Eu me pergunto o que passou pela cabeça de Inácio em seu primeiro dia naquela sala de aula. Será que ele se sentiu tolo ou envergonhado? Ou ele tinha tanta certeza do caminho a que Deus o estava chamando que ele se sentou ao lado das crianças sem pensar duas vezes?
Eu sei como eu me sentiria naquela situação: muito bem, porque eu teria saído imediatamente da sala e ido fazer uma caminhada ou tirar uma soneca. De modo algum eu me humilharia daquele jeito. Se Inácio fosse como eu, ele teria desistido naquele momento e provavelmente desaparecido na obscuridade. Sua decisão de seguir em frente – e não apenas por um semestre ou dois – é uma ilustração vívida da humildade de Inácio.
A humildade é uma virtude que nem sempre é bem compreendida. Costuma significar uma pessoa reservada, reticente (“dizer que você não é muito talentoso quando sabe muito bem que é”, nas palavras do teólogo Frederick Buechner) ou “talentoso, mas também quieto ou tímido”. Uma pessoa humilde pode ser essas coisas, mas elas não são sinônimos de humildade.
Inácio certamente não era uma pessoa “encolhida”. A sua própria versão de humildade me lembra uma citação do clássico espiritual de Dag Hammarskjöld, “Markings”: “A humildade é tanto o oposto da auto-humilhação quanto da autoexaltação. Ser humilde não é fazer comparações”, escreve ele. “Seguro em sua realidade, o ‘eu’ não é nem melhor nem pior, nem maior nem menor do que qualquer outra coisa no universo.”
Inácio na sala de aula em Barcelona não se incomodava com comparações; ele não olhava ao redor na sala, via as crianças zombando e dizia: “De jeito nenhum, eu não posso ficar aqui com elas!”. Ele se sentia seguro em seu chamado a fazer algo grande por Cristo e faria o que fosse preciso para seguir esse chamado.
Sua humildade permitia que ele visse a si mesmo claramente, como um filho talentoso de Deus, com muito a oferecer, que também tinha muito o que aprender antes de poder cumprir sua missão.
Concordar em aprender ao lado de crianças não é o único elemento da humildade de Inácio nessa história. Também fico comovido pelo modo como ele decidiu começar de novo depois de enfrentar o desencorajamento na Terra Santa. Ele se sentiu irritado e pronto para ir até os franciscanos de lá e dizer: “Não tão rápido!”. Mas Inácio admitiu que estava errado e que tinha que voltar atrás e mudar um pouco de rumo.
Seu caminho é um ótimo modelo para todos nós hoje, especialmente para os que estão encarregados de algum tipo de liderança. Tente algo ousado e novo, erre uma tentativa, admita seu erro, permaneça comprometido com o seu sonho, mesmo que possa ser tentador parar nesse momento, dê um passo para trás para aprender mais e tente algo ousado novamente – desta vez, moldado pela sua experiência.
Nesta festa de Santo Inácio, estou rezando e pedindo mais de humildade de estilo inaciana na minha vida familiar e profissional – e não uma minimização dos meus dons, mas sim uma abertura para admitir meus defeitos e uma recusa a deixar que um potencial embaraço me impeça de aprender algo novo e de tentar novamente.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Aprendendo humildade com Santo Inácio, o aluno de 33 anos na escola básica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU