12 Julho 2016
"Este clichê, como normalmente é compreendido, tende a banalizar o Concílio, principalmente por implicar, pelo menos para alguns comentadores, que os seus decretos são menos substanciais, mais contingentes, e que estão mais sujeitos à reforma ou, até mesmo, à rejeição do que aqueles decretos dos concílios doutrinários supostamente grandes do passado. O Vaticano II, como certas cervejas e refrigerantes, é um concílio “light” – sem níveis pesados de calorias!", escreve John W. O'Malley, padre jesuíta, doutor em História pela Universidade de Harvard e professor de Teologia da Georgetown University, de Washington, em artigo publicado por Revista America, edição de 18 a 25 de julho de 2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Desde que se iniciou o Concílio Vaticano II, ele vem sendo repetidamente descrito como um concílio pastoral. Esta descrição é, às vezes, feita com tanta insistência e sem pensar que a expressão “concílio pastoral” acabou se tornando um clichê. A palavra clichê implica que, embora possa muito bem expressar uma verdade, esta descrição banaliza o evento – no caso, o Concílio Vaticano II – e produz bocejos.
Os motivos para descrever o Vaticano II como um concílio pastoral são inquestionáveis. No dia em que foi aberto, 11 de outubro de 1962, o Papa João XXIII o caracterizou como tal. Em seu discurso inaugural, intitulado Gaudet Mater Ecclesia, ele disse aos prelados reunidos que este concílio deveria ser “de natureza predominantemente pastoral”. Os prelados ouviram a mensagem. Desse momento em diante, orador após orador, especialmente os da assim-chamada maioria, todos insistiram na natureza pastoral do evento, contrastando-o implicitamente com um concílio doutrinário, que presumivelmente seria mais sério.
Então, onde está o clichê? O que há de errado com a designação do Vaticano II como um concílio pastoral? Em resposta, digo que não há nada de errado com essa designação. Na verdade, quero defendê-la aqui. Mas antes de fazer isso, esta designação deve ser desconstruída. Uma vez desconstruída, ela poderá ser reconstruída e, em seguida, emergir com maior força e com um significado mais profundo.
Este clichê, como normalmente é compreendido, tende a banalizar o Concílio, principalmente por implicar, pelo menos para alguns comentadores, que os seus decretos são menos substanciais, mais contingentes, e que estão mais sujeitos à reforma ou, até mesmo, à rejeição do que aqueles decretos dos concílios doutrinários supostamente grandes do passado. O Vaticano II, como certas cervejas e refrigerantes, é um concílio “light” – sem níveis pesados de calorias!
E o que é ainda mais importante: este clichê desvia a nossa atenção daquilo que é absolutamente singular quanto à natureza pastoral deste Concílio. O Vaticano II foi pastoral em um modo tão radical quando comparado com os concílios anteriores que, antes de podermos usar corretamente esta expressão, devemos purificá-la do entendimento convencional, reconstituí-la nas suas amplitude e profundidade adequadas e só então deixá-la retornar ao seu lugar legítimo no mundo com a cabeça erguida.
Mas se julgarmos a dignidade e a seriedade de um concílio pelo número e importância dos seus decretos doutrinais, será que o Vaticano II não se se qualifica, realmente, como um concílio light ou não tão sério assim? Afinal de contas, ele não definiu uma única doutrina. No Vaticano II, inexistem dogmas no sentido de definições solenes, como a definição da infalibilidade papal feita no Vaticano I. Sim, isso é verdade. O Vaticano II não definiu uma única doutrina, mas isso não significa que ele não tenha sido um concílio magisterial ou doutrinal. (Todo dogma é uma doutrina, mas nem toda doutrina é um dogma.) O Concílio não definiu nenhuma doutrina porque adotou um modo de discurso diferente daquele discurso operativo nos concílios que produziram definições, de maneira mais notável o Vaticano I.
Com certeza, o fato de não definir uma única doutrina não significa necessariamente que os ensinamentos mais importantes do Concílio Vaticano II sejam menos vinculativos ou menos centrais para a religião cristã, já que foram solenemente aprovados pelo maior e mais diversificado encontro de prelados de toda a história da Igreja Católica e, em seguida, tendo sido solenemente ratificados pelo Sumo Pontífice, Paulo VI. Além disso, devemos lembrar que a Constituição sobre a Igreja e a Constituição sobre a Revelação Divina são documentos especificamente designados como “constituições dogmáticas”. Se, de fato, olharmos para o número e a importância dos ensinamentos do Vaticano II, este concílio é não um concílio “light”, muito pelo contrário.
Eis aqui alguns desses ensinamentos. Eu os apresento sem uma ordem em especial. Certamente, todavia, no topo destes ensinamentos conciliares está aquele segundo o qual o que Deus nos revelou em Jesus Cristo não é um conjunto de proposições, mas a sua própria pessoa. No mesmo documento sobre a revelação, o Concílio ensinou que a Bíblia é verdadeiramente infalível, mas somente naquilo que “serve para fazer o povo de Deus viver suas vidas em santidade e aumentar a sua fé”. As repercussões deste ensinamento são importantes. Levado a sério, ele remodela significativamente a forma como nós doravante devemos pensar sobre a doutrina, conforme tento mostrar abaixo.
Este ensinamento destaca de ensino e confere grande seriedade sobre um outro ensinamento do Concílio, repetido inúmeras vezes depois que apareceu pela primeira vez no documento Constituição Dogmática sobre a Igreja: que a finalidade da Igreja é promover a santidade de seus membros. Nenhum concílio anterior se deu ao trabalho de nos dizer isso. A santidade tornou-se um leitmotiv nos ensinamentos deste concílio, aparecendo sempre de novo em documentos subsequentes. Este ensinamento não é um ensinamento trivial.
A Constituição Dogmática sobre a Igreja também ensinou que a Igreja é constituída pelas pessoas que nela participam, de modo que o termo “povo de Deus” é uma expressão válida, fundamentalmente importante e, além disso, tradicional da realidade da Igreja. Visto que o povo de Deus está por toda parte sobre a face da terra, o Concílio ensinou que a Igreja está presente em todas as culturas e que precisa incorporar-se em cada uma delas. Porque o Concílio ensinou também que a liturgia sagrada é um ato de toda a comunidade no culto e, portanto, é essencialmente uma ação participativa, a liturgia tem de admitir dentro de si símbolos e costumes de todas as culturas.
Lex orandi, lex credendi – a norma da oração é a norma da fé. Por conseguinte, o Vaticano II ensinou que, enquanto a estrutura da Igreja é hierárquica, ela também é colegiada, isto é, participativa, como é a liturgia. Em particular, ele ensinou a doutrina tradicional, e que antes não havia sido expressa, de que os bispos, quando atuam como um corpo com e sob o Pontífice Romano, possuem a responsabilidade não só pelas suas dioceses como também pela Igreja em geral. Ensinou que, assim como o Romano Pontífice tem, pois, uma relação colegiada com os demais bispos, os bispos devem promover uma relação colegiada com os seus sacerdotes, e os sacerdotes com o seu povo.
O Vaticano II ensinou que, embora a Igreja tenha a importante responsabilidade de anunciar o Evangelho ao mundo, ela também tem a responsabilidade de esforçar-se pelo bem-estar do mundo como tal, ou trabalhar para o bem-estar da assim-chamada ordem temporal: preocupar-se com a justiça social, com as atrocidades da guerra moderna, com as bênçãos de paz e com o avanço de todos os aspectos da cultura humana. Ele ensinou que cabe aos católicos trabalhar com os demais, mesmo com os não crentes, para promover tais objetivos. Ao mesmo tempo, o Concílio Vaticano II ensinou que esta não é uma via de sentido único, mas assim como a Igreja se beneficia em sua relação com o mundo, o mundo se beneficia em sua relação com a Igreja. A Igreja deve, pois, ouvir o mundo e aprender com ele – eis um ensinamento notável e absolutamente inédito.
O Concílio ensinou que é dever da Igreja e de todos os católicos respeitar as crenças religiosas dos outros e trabalhar para a reconciliação entre as igrejas cristãs. Ensinou que a Igreja tem a difícil missão de buscar a reconciliação, mesmo junto às outras religiões, missão extremamente necessária no mundo atual. Nesse sentido, ele ensinou que, embora o anúncio seja a forma cristã privilegiada do discurso, o diálogo é também uma forma legítima e, em alguns casos, a forma mais adequada de agir.
Na ordem temporal, o Concílio ensinou a dignidade e a excelência da liberdade política. Ensinou o direito de as pessoas seguirem as próprias consciências na escolha da religião e, de forma mais ampla, ensinou, num de seus textos mais comoventes, sobre a dignidade da consciência: “A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser” (Constituição Pastoral Gaudium et Spes sobre a Igreja no Mundo Atual”, parág. 16).
O Concílio Vaticano II ensinou explicitamente que a graça e o Espírito Santo operam fora dos confins visíveis da Igreja Católica e que a salvação é, portanto, possível fora desses limites visíveis. Finalmente, o Concílio ensinou que “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (parág. 1).
Estes e outros ensinamentos do Concílio não são triviais. Eles não são de um nível secundário de importância. Não são banalidades ou um palavreado piedoso. É verdade que eles não são do mesmo nível constitutivo da crença cristã como são as doutrinas da Trindade e da Encarnação, mas são não obstante verdades da maior importância para a compreensão das implicações práticas dessas doutrinas para a nossa vida de cristãos. Se entendermos nesse sentido, elas se tornam verdades pastorais e ensinamentos pastorais.
“Ensinamentos pastorais” em oposição a quê? Qual a alternativa para “ensinamentos pastorais”? Seriam ensinamentos “doutrinários” (o que, na prática, seria uma tautologia evidente)? Seriam ensinamentos acadêmicos? Será que Deus revelou ensinamentos acadêmicos ou verdades acadêmicas? Acho difícil dar uma alternativa ao termo ensinamentos pastorais, especialmente se estamos de acordo com o documento Dei Verbum, segundo o qual o que Deus revelou foi aquilo que “serve para fazer o povo de Deus viver suas vidas em santidade e aumentar a sua fé”. Será que isso não significa que, por definição, todas as verdades cristãs são, de fato, verdades pastorais? Não estaríamos, assim, dizendo que o Vaticano II é um concílio pastoral por meio de seu magistério, por meio de sua doutrina? Acho que sim.
Quando, no documento sobre a revelação divina, o Concílio determinou que a verdade cristã, ou seja, a doutrina cristã, é o que ajuda as pessoas a serem santas, ele desmantelou tudo o que poderia ter sido válido na distinção clássica entre um concílio doutrinário e um concílio pastoral. O Vaticano II foi pastoral por meio dos seus ensinamentos, quer dizer: através da sua doutrina. Assim, o clichê de que o Vaticano II foi um concílio pastoral volta a nós justificado – justificado e radicalmente redefinido. Desconstruído, ele agora retorna reconstruído.
Quando, durante o primeiro ano do Concílio, o Cardeal Alfredo Ottaviani apresentou o esboço para o documento hoje infame “Sobre as Fontes da Revelação”, ele falou por apenas cinco minutos, usando este tempo menos para apresentar um texto destinado a consideração dos demais e mais para defendê-lo, mesmo antes de a discussão começar. Em parte, o cardeal falou: “Vocês ouviram muitas pessoas falarem sobre a ausência de um tom pastoral neste documento. Ora, eu digo que a primeira e mais fundamental tarefa pastoral é apresentar a doutrina correta (…) Ensinar corretamente é o fundamental para se ser pastoral”.
Eu concordo plenamente com essa afirmação, e ela nos remete ao momento presente. Está claro agora que modelo para as iniciativas do Papa Francisco em seu pontificado vem sendo, desde o primeiro instante, os ensinamentos do Concílio Vaticano II. Estas iniciativas têm sido repetidamente descritas, tanto por simpatizantes como pelos críticos, como pastorais ou, especialmente pelos críticos, como “unicamente pastorais”. Aqui retorna o clichê, mas não ainda em sua forma reconstruída.
Quando em meados de abril deste ano Francisco trouxe de volta com ele para o Vaticano doze refugiados muçulmanos da ilha de Lesbos, será que ele estava apenas realizando um ato compassivo, na esperança de que outros, especialmente os governos, se inspirassem e fizessem o mesmo? Não estaria ele também anunciando, através de um feito mais poderoso do que as palavras de qualquer encíclica, uma doutrina central para a mensagem cristã, uma doutrina da qual a nossa própria salvação depende e sobre cuja observância São Mateus nos diz no capítulo 25? “Eu era estrangeiro, e me receberam em sua casa”.
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Um clichê, um concílio e, por fim, o Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU